A profecia da gentileza fraterna

 

Arte: Fábio Vasconcelos

 

Volta e meia surge na humanidade algum sujeito sui generis com uma bata surradinha, sandálias gastas, e barba que há muito ultrapassou o status de “por fazer”. Ainda que a aparência não agrade, e esses até admitam, suas mensagens ultrapassam os tempos e se cristalizam em formas ideais de vivência. No dia da Gentileza, pretendemos traçar um comparativo descompromissado entre a vivência e cortesia de Francisco de Assis, e José Datrino, mais conhecido como “Profeta Gentileza”. 

Em linhas gerais, José era um “sujeito comum”. Tinha constituído família, criava os seus cinco filhos, e possuía uma pequena frota de caminhões. Seus objetivos de vida mudariam por ocasião de um incêndio em um grande circo na cidade de Niterói, Rio de Janeiro, que dizimou diversas pessoas, e logicamente, muitas crianças. O mesmo dirigiu-se para lá em um de seus caminhões, e sobre as cinzas do circo jazido, estabeleceu morada durante quatro anos. Ali, de forma voluntária, consolava as pessoas que haviam perdido seus entes queridos, recebendo a alcunha de “Agradecido” ou “Gentileza”.

Percebemos aqui um forte encontro com a figura do outro, de forma desinteressada, bondosa, compassiva, que ajuda-o a construir seu novo destino. Situação semelhante teria acontecido com Francisco ao encontrar-se com o leproso. Ao apear do cavalo, e beijar-lhe, destitui-se de si (como pessoa e como sujeito Assisiense) para ser-com e para-o-outro. Essa manifestação de gentileza, uma vez apenas ocasional, mas ao mesmo tempo, exigia um grande esforço físico e mental, seria sua filosofia de vida a partir de então.

Saindo da sua morada nada convencional, o agora Profeta Gentileza passa a percorrer as ruas do Rio de Janeiro, marcando presença nos locais e transportes públicos, sempre levando mensagens de bondade e amor às pessoas que cruzavam seu caminho. Seu espírito criativo materializou tais mensagens na forma de distribuição de flores pelas ruas, e pelos famosos 56 murais com inscrições de palavras conclamando as pessoas ao cultivo da bondade no coração e pelo próximo, também criticando, em uma linguagem quase própria, o sistema que exclui e produz injustiças.

Vale destacar que Gentileza possuía um olhar contemplativo que o permitia enxergar as raízes do que causava as inconsistências sociais. Ele entendia que essas raízes não brotavam dos mecanismos de poder em si, mas sim de uma instância anterior e particular, ou seja, da corrupção interior do ser humano. A transformação do indivíduo transformaria o sistema. Ele contempla um espaço e contexto fundamentalmente urbano, o qual já conhecia bem. Por conhecer este espaço, sabia quais eram suas contradições, e suas condições de acolhimento das pessoas. A cidade constitui-se no lugar onde as disputas pessoais, profissionais e econômicas imperam. Um espaço onde as pessoas esperam potencializar suas condições de vivência material, mas que ao mesmo tempo, perdem sua qualidade de vida. Onde moram todos, e ao mesmo tempo, se pode ter o sentimento de solidão e desamparo. Um espaço cada vez mais polarizado e indiferente ao diálogo, encontrando ressonância também no espaço virtual, onde as pessoas podem dilatar ódio através de suas opiniões e preconceitos.

Na obra “Manaus de 1920-1967 : a cidade doce e dura em excesso”, de José Aldemir, o autor destaca a cidade como o lugar da pressa, da efemeridade, do transitório, da inconstância, do sentido de vida perdido: a correria pelos afazeres e responsabilidades marcam uma vida que fragmenta o ser humano de si mesmo, e ao mesmo tempo prejudica sua relação com os demais. Uma vida que gira em torno do lucro e da contrapartida que torna a ideia de puxirum, por exemplo, um absurdo.

“Não existe amor em SP” – Criolo

Francisco também conhecia a cidade, sabia o que era ter uma vida confortável, estável, saudável, bem diferente e distante dos leprosos e miseráveis que por ali vagavam. Sabia que a cidade o reconhecia por ser um Bernardone, mas cultivava o desejo de ser mais, e competiria-literalmente- para ser um nobre cavaleiro. Mas frente a isso, Francisco era uma contradição. Sua riqueza e desejo de ser mais não o impedia de ser cortês e gentil, mesmo que jovem e gastador. Estes aspectos se potencializariam mais tarde, mas a cidade não o aceitaria como outrora.

Francisco e Gentileza revolucionaram a si mesmos antes de mais nada. Virar as páginas da existência muda a concepção de Francisco e Gentileza a respeito do outro. Este passa a ser valorizado como é, suas diferenças são aceitas, os excluídos encontram conforto. É um verdadeiro “descer” ao nível dos homens, e encontrá-los abandonados, confusos e sem direção, e ao mesmo tempo provocar-lhes, mais com atitudes do que com palavras, a transformar suas relações. 

Após a irmã Morte ter se encontrado com Gentileza, a Prefeitura do Rio de Janeiro -em atitude nada gentil- mandou pintar seus murais de cinza (que inspirou a música “Gentileza”, de Marisa Monte), o que gerou uma série de iniciativas para a restauração e preservação dessas mensagens. Graças a estas atitudes – e a tinta óleo que ele usava- os murais foram restaurados e tombados. O artista transcende a materialidade, é verdade, mas esta é de suma importância para manter vivas as mensagens de paz, amor e convite à mudança de estruturas, mensagens que Francisco também passou através de sua vivência fraterna e cortês, e de sua criatividade. 

A gentileza não é esperada de muitos espaços e pessoas – e dependendo de nosso estado de humor, nem de nós mesmos – mas é importante atentar para nossas atitudes dentro de nossas próprias redes de relações, em nossa forma de comunicar, de exigir, de consumir, de compreender o outro, seja ele humano ou não humano. Ser gentil é promover o encontro, a alegria e a partilha em todos os momentos da vida, para que não deixemos ninguém pintar de cinza nossa boa vontade. 

 

Arte: Fábio Vasconcelos

 

“O mundo é uma escola
A vida é um circo
‘Amor’ palavra que liberta
Já dizia o profeta”…

Marisa Monte

 

Michel Albuquerque Maciel, possui graduação em Filosofia pela Faculdade Salesiana Dom Bosco (FSDB, Manaus – AM)

 

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