Para concluir o mês de outubro, mês que a Igreja dedica às Missões, deixa eu contar umas curiosidades sobre alguns “Dons” que foram partilhados conosco nestas terras missionárias da Amazônia.
Para início de conversa…
Desde o nosso primeiro contato, na escola, com história do Brasil, já aprendemos que quando a esquadra de Pedro Álvares Cabral aportou por estas bandas, no dia 22 de abril de 1500, vieram nela comerciantes, cientistas, militares e, é claro, religiosos. O fato é: até mesmo os não amantes de história sabem que a colonização brasileira, feita pelos portugueses, caminha lado a lado com as missões religiosas. Ainda que a região Amazônica tenha tido o seu processo de ocupação e colonização tardia, para cá, também, vieram os mesmos personagens que já por alguns anos caminhavam, exploravam e ocupavam este imenso território que hoje chamamos de Brasil. No entanto, este processo que aconteceu para as bandas de cá, trouxe, de modo especial os “padres vestidos de marrom e uma corda branca na cintura.”[1]
Os “padres de marrom” “pras bandas de cá”.
A presença franciscana na região amazônica, que se inicia com a chegada dos frades menores em 1614, é marcada por uma longa história de luta e de trabalho junto aos povos indígenas. A missão franciscana na Amazônia é estabelecida pelo trabalho de evangelização e de educação, sendo os frades menores um dos principais responsáveis a construir os primeiros educandários na região.
A “Congregação dos Frades Menores de São Francisco de Assis” (nome dado ao grupo naquele período) foi a responsável em estruturar e alavancar a educação da região do Baixo Amazonas. Seu legado ainda é evidente através das escolas centenárias que ainda hoje formam, no ensino fundamental e médio, parcela considerável de crianças e jovens da região, como por exemplo, as escolas Santa Clara e São Francisco em Santarém; São José e São Francisco em Óbidos; Imaculada Conceição e São Francisco em Monte Alegre.
No início do século XX, a presença dos frades menores, ganhou força a partir de 1903, ano em que os frades foram convidados a assumir a Prelazia de Santarém. Com uma área que abrangia quase metade do estado do Pará, a Prelazia de Santarém representava não apenas o desafio geográfico, mas também o desafio missionário.
Entre 1907 e 1957, cerca de 80 frades foram enviados à região que, na sua maioria, eram alemães, vindos das províncias franciscanas de Santo Antônio do Brasil e Província da Imaculada Conceição do Brasil, regiões nordeste e sudeste respectivamente. Aos poucos, os frades alemães foram ocupando a região e iniciando a missão na prelazia de Santarém. Sobre esta missão, Frei Verâncio Willeke O.F.M escreveu:
A missão não surgiu de um dia para o outro, do nada. O seu desenvolvimento encerra fases de grandes esforços e grandes penúrias, de suores derramados e de ingentes sacrifícios; fases de esperanças, sucessos e até de glórias, mas também de desânimos, de desilusões, de enganos e desenganos.[2]
A missão de educar precisava continuar, mas havia uma necessidade ainda maior: a de evangelizar nas diferentes formas possíveis, a fim de alcançar a todos e de maneira efetiva. Os “padres de marrom” estavam dispostos a isso e por isso não demorou muito para a Igreja fazer de alguns, bispos e, verdadeiramente, pastores de um rebanho na Amazônia.
Seis “padres de Marrom” e com solidéu na cabeça
Desde Dom Frederico Costa até Dom Irineu Roman, são onze bispos que passaram pela prelazia, diocese, e agora, a arquidiocese de Santarém. Por um século (1907 a 2007) foram seis bispos franciscanos que assumiram a missão e a evangelização nesta área da querida Amazônia. O que segue, não são fatos novos, ou resultado de uma longa e aprofundada pesquisa, são apenas curiosidades sobre estes seis homens que, sem dúvida, foram “Dons” partilhados por Deus com a gente.
Dom Amando Bahlmann, OFM
O primeiro franciscano a ser feito bispo foi Frei Amando e este trouxe para a missão, o “dom” da educação. Frei Amando foi um dos principais responsáveis pela revolução educacional que aconteceu na região. O alemão da cidade de Bartmansholte, que em 1908 foi consagrado bispo por ordem do papa Pio X, trabalhou por mais de 30 anos como prelado de Santarém e deixou uma vasta herança de serviços prestados à região.
Frei Amando, diferentemente de seus irmãos de ordem religiosa, tinha o costume de escrever aquilo que achava mais importante em sua vida e missão e ia guardando em folhas avulsas. Este amontoado de anotações, deu origem ao livro “Memórias inacabadas”, lançado em 1995. O livro fez parte das comemorações em alusão à presença franciscana na Amazônia. A obra é uma preciosidade para pesquisa porque é um relato do próprio Dom Amando, sobretudo, das suas dificuldades em conseguir religiosos para tomarem conta das obras educacionais. Em virtude dessa dificuldade, ele, juntamente com a Madre Imaculada, fundaram a Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição Conceição da Mãe de Deus.
Dom Amando era um apaixonado pelos povos nativos; queria conhecê-los de perto e oferecê-los o que tinha de melhor. Foi um dos principais apoiadores do famoso missionário Hugo Mense, fundador da Missão São Francisco do Rio Cururu. Missão entre o povo Munduruku que ainda existe até os dias de hoje.
Dom Eduardo Herberhold, OFM
Frei Eduardo trouxe para a missão o “dom” da partilha. Alemão nascido em Lippstadt dia 28 de junho de 1872, foi um jovem estudioso e amante da oração e dos esportes. Chegou ao Brasil no dia em 1894 e tornou-se bispo auxiliar de Santarém em 1928. Era o bispo que gostava de tocar violino e cantar, sempre elevando a Deus suas preces através dos sons que sussurrava quase que constantemente.
Dom Eduardo ficou conhecido entre os irmãos, como o bispo da partilha. Mesmo um pequeno pedaço de pão, partilhava com alegria com aquele que lhe pedia. Em suas missões pela Amazônia, enfrentou muitas dificuldades, mas sempre se manteve firme, especialmente através de sua devoção à Nossa Senhora. Mesmo os poucos centavos que recebia de amigos, era destinado a construção de capelas. De forma regular, visitava os doentes e aprisionados. Seu lema de vida era “Tudo se faça na caridade”. Na velhice e já doente e muito debilitado, Dom Eduardo, continuava fazendo visitas aos mais necessitados. Se alguém lhe perguntava o porquê daquilo, a resposta era a de sempre: “Tudo se faça na caridade”.
Dom Anselmo Pietrula, OFM
Frei Anselmo trouxe para a missão o “dom” da esperança. Anselmo se tornou bispo de Santarém quando os frades alemães já eram poucos, mas ele tinha esperança de que esta região poderia continuar sendo servida pelos franciscanos. Em 1941, Dom Anselmo Pietrulla, fez um apelo ao Ministro Geral da Ordem dos Frades Menores, solicitando o envio de missionários para a região. Ele sugeriu buscar estes missionários nas províncias franciscanas dos Estados Unidos, àquela época muito ricas em número de vocações. Seu pedido foi atendido, e naquele mesmo ano, em meados do mês de junho, os primeiros frades norte-americanos começaram a chegar à Amazônia.
Dom Anselmo sempre viu a missão como uma fonte de esperança e nunca se abateu com os desafios. Ele inaugurou e fortaleceu muitas obras sociais na prelazia. Destaco o ano de 1943, ocasião em que o Hospital São José, construído por Dom Amando, foi fechado. Triste, mas esperançoso, Dom Anselmo criou ali então, o “Ginásio Dom Amando”, em homenagem ao seu antecessor. Mais tarde, os frades decidem fundar o Colégio Dom Amando, sendo hoje, um dos educandários mais tradicionais do Oeste Paraense.
Frei Anselmo, que via esperança em tudo, quis também que outras pessoas tivessem este mesmo sentimento. Com esta vontade, idealizou o asilo São Vicente de Paulo, que a quase 75 anos oferece esperança e dias melhores para aqueles que precisam de cuidados na velhice.
Dom Floriano Loewenau, OFM
Frei Floriano trouxe para a missão o “dom” do serviço. Dom Floriano foi o quarto frade prelado de Santarém e primeiro prelado de Óbidos, onde permaneceu até 1973. Em Santarém, ele serviu por sete anos. Era um homem à frente do seu tempo e um dos grandes entusiastas na reorganização da Igreja no Baixo Amazonas. Na nova configuração e com a criação da prelazia de Óbidos, era preciso um bispo que conhecesse a realidade e que servisse a nova prelazia com entusiasmo. Não foi difícil achar um nome para tão importante missão.
Dom Floriano de fato serviu a todos e se empenhou na construção de escolas, hospitais, oficinas profissionalizantes e igrejas nas cidades que compunham a nova prelazia. Com seu dinamismo e competência, desenvolveu notáveis trabalhos em prol da educação do município, fundando o primeiro Curso Secundário de Óbidos, com o apoio das Irmãs da Congregação Missionária da Imaculada Conceição. Foi responsável também pela edificação da escola Profissional São Francisco, que tinha por objetivo a preparação dos jovens para o mercado de trabalho.
Era conhecido como um homem engajado, um verdadeiro operário. As obras de Dom Floriano foram determinantes para o desenvolvimento da cidade de Óbidos, que até hoje conta com muitos dos serviços instituídos durante a sua missão como bispo.
Dom Tiago Ryan, OFM
Frei James Ryan trouxe para a missão o “dom” do amor. Agora com o nome brasileiro, Frei Tiago chegou à Prelazia, no dia 25 de junho de 1943. Ele foi um dos primeiros quatro frades Norte Americanos que chegaram na Amazônia a convite de Dom Anselmo. Jovem carismático e empenhado em todos os serviços, destacou-se por seu amor aos amazônidas. Líder nato, foi eleito Bispo de Santarém, em janeiro de 1958.
Dom Tiago era o pastor amoroso de todos. Ele queria conhecer a todos e todos lhe conheciam. Com a realização do grande sonho que foi a Rádio Rural, ele chegava à casa de todos através do programa, “A Voz do Pastor”. O programa era sua conversa diária, com as famílias católicas da região. Dom Tiago, marcou história, está no imaginário popular, principalmente ribeirinho, como um grande Pastor. Ao meio-dia, quando todos descansam após o almoço, era hora de ouvir a palavra de Deus, a música de abertura do programa, ainda hoje, sempre que ouvida, trás nostalgia àqueles que viveram esta época. Mesmo diante do imenso território, Dom Tiago, não deixou de cuidar de nenhuma de suas ovelhas amadas, e fez isso como ninguém, através do rádio.
Entre tantos outros serviços de amor prestados à seu povo, Dom Tiago Ryan foi um dos responsáveis pela criação da Pastoral do Menor em Santarém. Em 1982, Dom Tiago, pediu à Coordenação Diocesana de Pastoral para fazer um contato com as crianças e adolescentes que trabalhavam nas ruas da cidade para ver de perto a situação em que viviam. Foi a partir desta iniciativa que Irmão Ronald David Hein, cidadão norte americano, da Congregação de Santa Cruz, junto com alguns membros da Associação dos Educadores Católicos (AEC) iniciaram um trabalho junto a doze (12) crianças e adolescentes engraxates. O trabalho ao longo dos tempos foi tomando proporções e o número de adolescentes foi aumentando. A semente plantada por Dom Tiago, germinou e ainda em hoje, dá frutos. Dom Tiago, morreu em sua cidade natal, Chicago, mas está sepultado na Matriz de Nossa Senhora da Conceição em Santarém, a qual ele se referia “minha cidade”.
Dom Lino Wombommel, OFM
Frei Lino trouxe para a missão o “dom” do acolhimento e da humildade. Reconhecido por todos como um homem simples e de gestos singelos, Dom Lino desenvolveu na Diocese de Santarém um trabalho de base. Era um grande admirador de seu antecessor e quis colocar em prática aquilo que o Documento de Santarém estabeleceu em 1972. Dom Lino foi um dos principais responsáveis pela formação das muitas lideranças leigas, homens, mulheres e jovens que eram animados pela constante presença do bispo entre eles.
Dom Lino era um amante da juventude. Nos anos 80, ajudou a organizar a Pastoral da Juventude que até hoje colhe frutos daqueles trabalhos idealizados por ele. Com a chegada da tecnologia, e sempre consultando os jovens sobre novos projetos, idealizou e fundou a TV Encontro. Dom Lino era conhecido como um homem de muito conhecimento e inteligência. Era um poliglota que falava até japonês, mas nunca deixou de lado a simplicidade que havia aprendido com os amazônidas. Era o bispo simples…Simples desde a forma de se vestir até a forma de falar. Um Franciscano raiz…
Dom Lino faleceu no dia 6 de agosto de 2007, sendo o último membro da Ordem dos Frades Menores, os “padres de marrom” e com solidéu na cabeça que foram “Dons” para a diocese de Santarém durante cem anos.
Eduardo Campos de Almeida*
*Jufrista. Membro do Grupo de Teatro Franciscano Kabi-Kaxi. Graduado em História pela Universidade Federal do Oeste do Pará e e especialista em Literatura Africana.
[1] Arthur J. Burkus no livro “Bells above the Amazon” traduzido para a Língua Portuguesa pela Editora Vozes com o título “Sinos às margens do Cururu”.
[2] Willeke O.F.M, Frei Venâncio. Missões Franciscanas no Brasil (1500/1975). Ed. Vozes, pag. 171