Cartas entre amazônidas: Palavras de amizade, luta e esperança que unem Chicago e Santarém

Primeira Carta: Em fraterna amizade pela floresta que somos!

Santarém-Pará-Amazônia-Brasil, 5 de setembro de 2021

Querido amigo Frei Erlison, 

Espero que esta te encontre bem aí nas terras do Tio Sam. Saudade enorme das nossas aventuras no barco Mackenzie rs. Por aqui, seguimos lutando para melhorar.  Hoje, como sabes, celebra-se o dia da Amazônia. Aliás, dei um google para pesquisar sobre os marcos dessa data e encontrei a seguinte descrição: “lei federal 11.621/2007 institui 5 de setembro como o dia da Amazônia com o objetivo de conscientizar a população sobre a importância da maior reserva natural do planeta”. Mas, o que é/ quem é a floresta? Tu que estás convivendo com os norte-americanos, como eles enxergam o “pulmão do mundo”?

E por falar em pulmão, mano, como está a pandemia por aí? Aqui, o corona tem encontrado aliados que o fortalecem diariamente. O primeiro é o usurpador que invadiu o planalto central. Como tu (e todo o mundo) já sabe, no Brasil o enfrentamento à pandemia não se dá de forma coordenada pelo ministério da saúde. Inclusive, nesses últimos dias, alguns veículos da imprensa divulgaram que o quarto ministro da saúde havia pedido demissão, mas Marcelo Queiroga negou essa informação. Por outro lado, o que fica impossível de negar é a postura negacionista do desgoverno que, independentemente de quem assume o ministério da saúde, joga nas costas dos cidadãos a responsabilidade de combater a pandemia. Outro dia, Queiroga chegou a dizer que o uso de máscara “vai da consciência de cada um”. Já pensou, uma doença mundial tendo de ser enfrentada a partir da consciência individual?

Enquanto isso, a aplicação das vacinas segue aos trancos e barrancos. Aqui na área urbana de Santarém, que é onde a imprensa cobre, a imunização já chegou aos adolescentes de até 12 anos. Mas, sob o argumento de que o imunizante Pfizer necessita de local com ar condicionado, o prefeito começou a vacinação desta faixa etária com apenas dois pontos. Aí não deu outra: adolescentes e seus responsáveis se aglomeraram em filas quilométricas, que se movimentavam a passos de jabuti, sob o sol escaldante do nosso vibrante verão amazônico. Uma pergunta começou a circular: por que as vacinas não são disponibilizadas nas unidades básicas de saúde, já que todas elas têm ao menos uma sala com ar condicionado? Depois de muita reclamação nas redes sociais, esses pontos foram ampliados para quatro e, num deles, a vacinação também passou a ser aplicada no período noturno. Ufa! Depois de tanta bola fora, enfim, a prefeitura fez um golzinho! Na marra, mas fez.

Já na zona rural de Santarém, a imunização segue na retranca. No Projeto de Assentamento Agroextrativista Lago Grande, na comunidade Novo Paraíso, a primeira dose da vacina ainda está sendo aplicada nas pessoas de 50 anos. Na comunidade Cabeceira do Marco, avançou um pouquinho – quem tem 45 anos já está sendo imunizado com a primeira dose. E essa é a realidade de centenas de comunidades rurais e ribeirinhas em tantos outros municípios em que a vacina chega na velocidade da canoa a remo.

Mas, sabe o que continua chegando na Amazônia na maior agilidade? A motosserra e o fogo. Segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), a Amazônia Legal perdeu 10.476 km² de floresta entre agosto de 2020 e julho de 2021, a taxa é 57% maior que a da temporada passada, sendo a pior dos últimos dez anos (Disponível em: https://imazon.org.br).  A floresta vai virando cinza e depois vira pasto para a pecuária e campos de soja. O vírus da exploração e da ganância avança sem qualquer enfrentamento por parte dos órgãos de fiscalização e controle ambiental. Aliás, não por acaso, esses órgãos foram os primeiros a sofrerem desmonte na (indi)gestão Bolsonaro. Os grileiros, latifundiários, garimpeiros, madeireiros, sojeiros, e toda a trupe de saqueadores da Amazônia, são influenciados pelo discurso destruidor do presidente e sentem-se “autorizados” a desmatar, matar rios, bichos e ameaçar gente para levarem a cabo seus negócios.

Às vésperas do 7 de setembro, Bolsonaro conclama seus apoiadores a irem às ruas para legitimar seu objetivo de dar um golpe de estado. Em adesão a esse chamamento, o SIRSAN (Sindicato Rural de Santarém) lançou nota nas redes sociais convocando ruralistas de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos a paralisarem suas atividades e somarem ao ato em prol da democracia. Apesar de parecer cômica e contraditória a mensagem expressa na nota, os ruralistas são bem conscientes que o apoio a Bolsonaro representa a defesa dos interesses do agronegócio. O que essa turma não entende é que sem floresta não tem chuva, não tem água, não tem agricultura e, consequentemente, não tem negócio.

Enfim, mano, falo de algumas das tristes faces das realidades amazônicas para destacar que não tem como lutar em defesa da Amazônia, sem lutar pela proteção dos povos originários e tradicionais que a preservam. Se os moradores da Paulista, do Leblon ou de Chicago realmente entendessem que a Amazônia não é somente o pulmão, mas o coração do mundo, não haveria uma única mídia que não estivesse falando diuturnamente contra o famigerado marco temporal. Os povos indígenas travam uma luta de Davi contra Golias em Brasília para defender um patrimônio planetário. Que a força dos encantados os levem a acertar a pedra da conscientização na cabeça de quem tem espaço, voz e instrumento de mobilização para fortalecer as ações de sensibilização a quem tem poder de decisão.

Apesar dessas notícias nada suaves, despeço-me com a esperança de quem faz da luta sua batalha diária. No próximo 7 de setembro, vamos mais uma vez às ruas no Grito dos excluídos e excluídas denunciar a volta do Brasil ao mapa da fome, a botija de gás a mais de cem reais, o litro de gasolina a mais de 7 reais, o desemprego galopante, a rachadinha da familícia Bolsonaro. Mas, também vamos seguir anunciando o que todos nós amazônidas sabemos bem: nós somos a floresta! Defendê-la é defender a nossa própria vida. E espero que as reflexões que emergem nesse 5 de setembro levem as pessoas do mundo inteiro a também entenderem que a proteção da Amazônia não é mais modismo ou discurso politicamente correto, é sinônimo de inteligência, é questão de sobrevivência. A crise climática está aí e pode provar.

Um beijo com gosto de vinho de cupuaçu com farinha de mandioca.

Sara Pereira. 

Graduada em Letras e Direito. Mestranda em Ciências da Sociedade na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), atua como educadora na Ong Fase. 

 

Fotos: Erlison Campos e Sara Pereira

A resposta: Manter acesa a esperança 

Chicago, Illinois – Estados Unidos, 06 de Setembro de 2021.

Minha querida Sara Pereira,

Me emociono com os detalhes de sua carta e consigo imaginar você escrevendo, não deixando passar nenhum detalhe. Sim, apesar dos pesares, posso dizer que estou bem. Com saudades das nossas conversas e risadas altas, mesmo diante de alguma “cuíra” que a vida nos apresenta. Esses dias mesmo, eu estava falando sobre as comemorações do Dia da Amazônia. Mas, se não é fácil explicar esta data comemorativa para nós brasileiros, imagina explicar para os gringos de cá. As últimas notícias sobre a Amazônia por aqui é sobre desmatamento e exploração ilegal de madeira, queimadas, garimpo ilegal, retrocesso na demarcação das terras indígenas, corrupção no Ministério da Agricultura, Meio Ambiente etc… “É isso que estão comemorando?” – os gringos me perguntam! 

“Pra banda de cá”, são poucos aqueles que enxergam a Amazônia como área importante para o planeta. A maioria não vê a Amazônia nem como coração, nem como pulmão, nem como qualquer outro órgão que possa metaforizar a sua importância. Ainda se tem a ideia que a Amazônia é fonte de riquezas (o que é verdade), mas ao falar de riquezas eles pensam em minério, madeira, tráfico de animais etc, eles não pensam em povos, culturas, histórias, vidas. Não, a Amazônia para o povo da terra do Tio Sam não significa a mesma coisa que significa para nós.

Nossa região ficou bastante conhecida quando faltou oxigênio na cidade de Manaus. Todos os meios de comunicação nos Estados Unidos falaram sobre isto. Um exemplo que eles não conhecem sobre nós é o fato de chamarem Manaus de estado e Amazonas de região. Não diferentemente daí, a Pandemia continua ceifando vidas por aqui. E se podemos dar nomes a culpados no Brasil, por aqui também é bem conhecido o nome do culpado de tudo isso. A vacina deveria ter chegado mais cedo, mas o ex-presidente não estava interessado nisso. Felizmente ele, entre choros e velas, deixou a casa branca e seu sucessor cuidou de investir em vacinas. De novembro de 2020 até fevereiro de 2021, vivemos um caos por aqui. Em alguns dias quase batemos o número de cinco mil mortos em um intervalo de 24 horas. 

A vacina chegou e com ela a esperança. Mas, se no Brasil as pessoas ao tomarem a vacina se tornariam jacaré, por aqui, se tornariam apoiadores do novo governo. E isso “fere a dignidade de muitos”, foi o que uma vez me falou meu professor. “Daí, eles preferem morrer do que se vacinar” falou o mesmo professor. Hoje, mesmo tendo vacina à disposição de todos, apenas um pouco mais de 50% da população nos Estados Unidos está completamente vacinada. O governo tem tentado ser criativo oferecendo cerveja, cigarros e até 100 dólares para aqueles que se vacinam. Enquanto isso, leio com lágrimas nos olhos, as notícias sobre a morte, por falta de vacina, de tantas pessoas queridas da Amazônia.

Máscaras? “Para os loucos!” O uso da máscara tornou-se motivo de risos. Com o aumento de infecções das últimas semanas, o Governo Federal  voltou a exigir o uso de máscaras em ambientes públicos, mas por aqui, usar máscara parece que também significa apoiar o governo. Daí os hospitais voltaram a lotar, especialmente com pessoas que não tomaram a vacina. Mas, dizem eles, “tudo é um complô contra o antigo governo.” Eu por outro lado, penso que não, na verdade tudo é culpa do antigo governo. E as coisas estariam bem mais difíceis se ele estivesse permanecido. O Brasil tem fama de copiar os Estados Unidos e, eu espero que possa também copiar neste quesito nas próximas eleições.

Voltemos a falar sobre comemoração. Dia 7 de Setembro é a Independência do Brasil. Quanto retrocesso, minha irmã! Até a bandeira brasileira se tornou símbolo de “gado”. Eles carregam a bandeira e espumam seu ódio na tentativa de legitimar o golpe de estado, como você bem diz. Que tristeza! O Brasil no mapa da fome! Sara, minha amiga, nós que viemos das comunidades interioranas sabemos o que passamos. Um dia, a fome também bateu em nossas portas. Nós conhecemos esta dor. E quando a gente pensa que as coisas estão se encaminhando, vem essa “ruma” de coisas ruins e nos tenta derrubar. Então, comemorar o quê?

Ainda bem, tem muita gente boa e consciente que continua lutando. Me alegra saber que o dia 7 de Setembro ainda significa resistência. Eu sinto saudades das preparações de cartazes para o Grito dos excluídos e excluídas. Saudades de caminhar pelas ruas denunciando as mazelas dos nossos (des)governantes. Me encho de orgulho em ver você e seu pequeno Davi nestas manifestações. O fogo da esperança permanece aceso. 

Eu daqui espero que, apenas o fogo da esperança permaneça aceso, não mais o fogo nas florestas, nas casas das lideranças indígenas, nas canoas e barcos dos ribeirinhos. Espero que todos se juntem na defesa da Amazônia, em nossa defesa. Continuemos, incansavelmente, através de todos os meios possíveis, lutando até a vitória. Pois ela virá e, neste dia, o café será mais saboroso, a conversa mais prazerosa, a cantiga mais alegre, o abraço mais sincero e as histórias mais felizes.

Me despeço, minha amiga, te agradecendo pela sua luta diária, pelo seu testemunho e pela sua coragem. A luta continua. Continua porque é preciso dar voz principalmente aos que mais sofrem, continua porque nossas crianças precisam ter um futuro digno, continua porque não podemos nos calar diante das ameaças de retrocesso, de destruição e de morte. Sigamos firmes, sendo instrumentos de justiça, igualdade, paz e amor.

Um beijo no coração.

Frei Erlison

Fade Menor e Acadêmico de Teologia na CTU.

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