Hoje em dia, quando tudo é questionado e está em mudança, ainda existem certas coisas, festas, celebrações tão enraizadas na cultura e religiosidade do povo, que dificilmente são largadas. A tradição tem consagrado certas práticas em que o povo encontrou um valor. Da sua parte, nunca as abandonaria. Duas festas religiosas são exemplos disto. Antigamente, a Igreja celebrava a festa de São Braz com a bênção da garganta, e não faltava ninguém da comunidade neste ato litúrgico. O gesto se consagrou na mentalidade do povo. Porém, nos últimos anos esta bênção caiu da moda. O valor encontrado pelo povo não foi descoberto. Agora, quase ninguém se lembra de ir à Missa no dia de São Braz. Outra festa semelhante, que, mesmo com algumas mudanças rituais, ainda continua atraindo o povo é o rito da Quarta-feira e Cinzas. Havia mudanças de orações e das palavras que acompanhavam o gesto, mas o essencial para o povo ficou: a pessoa ainda é marcada com as cinzas, como sempre. Que é que tem este sinal?
Seria fácil encontrar nos livros explicações do simbolismo das cinzas. Mas para descobrir a atração que ele tem para o povo, uma atração que passa de geração em geração, foi necessário ir ao encontro do povo para ouvi-lo. Então, para dizer a verdade, este artigo tem vários autores e apenas um relator. Num encontro de gente da periferia, que já tem um certo engajamento, houve discussão dos pontos de vista, narração de experiências próprias e risadas da ideia do outro. Mas este grupo acabou entendendo melhor o que o povo em geral assume sem questionar. Usando uma simples dinâmica, cada pessoa tinha que dizer uma palavra sinônima da palavra “cinzas”. As respostas foram dadas assim: ‘pó, poeira, sujeira, caveira, miséria, pobreza, rejeição” e assim por diante. É claro que o sinônimo de cinzas não é “rejeição”, mas a técnica envolve tanto a pessoa que ela acaba desenvolvendo sua ideia da palavra anterior e não da palavra inicial. Em seguida, foi analisado o sentido desta lista, que teve como início a palavra “cinzas”. A turma não demorou muito em descobrir o fio da meada. Refletiram que as cinzas, de fato, fazem uma sujeira na pessoa, e a pessoa que normalmente anda suja é o pobre, e por isto, outros, que se acham melhor, não aceitam o sujo, o pobre. E na Quarta-feira de Cinzas, todos são marcados e ficam sujos.
A turma se entusiasmou com sua descoberta, pois nunca pensou que esta ideia podia se ligar com a Quarta-feira e Cinzas. Antes de fazer a ligação direta, cada um começou a contar experiências e impressões que vinham do tempo dos pais e dos avós, e sabe lá de quantas gerações anteriores. E assim pintaram o quadro abaixo.
Amanhece o dia de Quarta-feira de Cinzas. Ainda se ouve os últimos cantos e gritos de Carnaval, talvez mais diminuídos que na madrugada. Uns ainda dançam, outros se sentam ou se deitam com uma ressaca, mas muitos esperam a primeira Missa do dia para poder receber as cinzas, antes de voltar às casa. “Quem dançava o Carnaval, precisava receber cinzas”, lembra seu “Ministro”, “porque tinha que apagar o pecado desta extravagância”. As igrejas e capelas em toda parte se enchem de adultos e velhos, jovens e crianças — os primeiros muito serenos, os mais novos apreensivos sobre a cerimônia que irá começar. O padre da pequena capela do bairro avista a assembleia toda, não reconhece nem a metade dos que vieram. Famílias inteiras, pais com filhos de “cabo a rabo” ficam esperando o culto começar. Daí, enxerga o casal Paulo e Lúcia com mais um nenê nos braços e lembra que já passou um ano inteiro desde o último encontro deles. A turma toda fica mexendo de um lado para o outro. A criançada está inquieta, mal acostumada a estar no recinto da capela. O calor está insuportável.
A cerimônia está para começar. Na frente do presidente está colocada uma tijela de cinzas. Depois de orações e bênção, a fila começa a se formar … fila que tanto faz parte da vida deste povo. Eles vêm e vêm, sabendo que ao encontrar-se com o padre serão marcados na fronte com o sinal de Cristo, uma cruz traçada com cinzas. Mais uma vez a cruz aparece nas suas vidas, e desta vez é feita com cinzas. o pó e a sujeira da vida que são razões da sua rejeição, marginalização e desprezo pela sociedade.
Aproximando-se da mesa de cinzas, D. Rosa começa a arrepiar-se lembrando de que sua mãe falou: ‘as cinzas são o pó dos ossos de defuntos”. E agora o padre vai esfregar sua cabeça. O pensamento do seu Diniz volta ao beiradão, onde seu pai, na ausência do padre, reunia a família toda e, com uma explicação de que era necessário fazer só o bem nesta época, marcava a fronte de seus filhos com cinzas. E aqui se repete o mesmo na comunidade grande, sem maior entendimento deste gesto. A Chaguinha pensa sobre o jejum do que fazia parte tempo da quaresma, nunca entendendo o porquê, nunca desta exigência… pois ela está acostumada a passar fome, jejuar, sem querer causa da situação de pobreza extrema de sua família.
Chegou a vez da D. Vilany. Seu irmão faleceu ultimamente e ela ainda carrega dentro de si esta dor. O padre traça cinzas na sua fronte e ela chora ao recordar: fronte “Lembra-te, homem qu és pó….” Tão habituada a pensar na morte, ela nem ouve a nova expressão do padre:” Convertei-vos e crede no Evangelho”. A morte circunda sua vida; como vai escapar hoje, a morte é sua única esperança de ter um vida melhor ‘no outro mundo’.
Um por uma fila passa, uma fila de gente faminta e maltrapilha, de gente com olhar distante tristonho, de gente curvada batendo o peito, dizendo. “Perdoai-me, Senhor, porque sou um pecador “. Sim, sou culpado desta minha situação e do sofrimento dos meus filhos. É certo, preciso submeter-me a este gesto de humildade, preciso me rebaixar porque mereço e não tenho valor. Mas agora confesso minha culpa e clamo a misericórdia de Deus… e mais do que nunca tenho direito a sua justiça”. Às cinzas para o povo pobre expressam bem o seu sentimento diante das suas dificuldades, de sua pobreza. O povo sente que esta situação é a vontade de Deus, é para pagar seus muitos pecados. Foi isso que foi metido na cabeça do pobre e ele assumiu como uma defesa. A gente vê que as igrejas na Quarta-feira de Cinzas, se enche de gente pobre, não de ricos.
Este quadro expressa uma herança religiosa da maioria da população do norte do Brasil. O simbolismo das cinzas, as palavras que antes acompanharam o gesto: “Lembra-te homem ….”, uma natureza meio mística supersticiosa contribuiu com as expressões e tradições mantidas entre o povo. Porém algo de muito significativo continua sendo a motivação pela qual o povo aderiu a esta cerimónia. No Antigo Testamento existiam muitas ocasiões e momentos críticos entre o povo de Deus. Como sinal de humildade e reconhecimento de culpa, se sujeitaram a práticas do jejuar, do vestir-se de sacos, de deitar-se nas cinzas. O povo possuía uma confiança total de que, empobrecendo-se de toda forma de egoísmo e se igualando ao menor deste mundo, tinha direito de clamar a Javé, Deus do povo. E neste ato de contrição e purificação, Deus o ouvia e atendia.
É esta esperança, no Deus que acompanha a vida, que o povo mantém viva no meio das dificuldades. Usando os seguintes textos bíblicos a turma fez sua reflexão:
Josué 7,1-26: Numa batalha, o povo israelita foi batido e perdeu coragem, Josué fêz gestos de penitência, inclusive cobrindo a cabeça com pó, para descobrir a razão da derrota. Ao descobrir, Josué cumpriu com o mandato de Deus.
Neemias 9,1-3; II Macabous 1024- 26,
Judite 9,1 – 10,3: Para não entregar a cidade aos assírios, Judito se humilha diante do Deus, cobrindo a cabeça com cinzas, Na sua oração, pede firmeza de coração e coragem para abater o inimigo. Terminada a oração, Judite assume a missão.
Ester 4,1-17: O povo de Deus, ameaçado a morrer, suplicou ao Senhor com gestos de humildade. Seu único recurso era a rainha Ester que, fortalecida pelos sacrifícios do povo, enfrentou o mal e salvou seu povo.
Jonas 3,1-10: Jonas andou de um lado ao outro de Nínive, profetizando a destruição da cidade. O povo fêz penitência e motivou o rei a tomar a mesma atitude.
O grupo percebia logo uma diferença grande no que a história relatava e na sua própria situação. Seu Ferreira colocou bem a diferença ao dizer: “Bem, parece que estas pessoas como Judite e Josué, o rei de Nínive e a rainha Ester, todas elas estavam bem de vida e tinham que se rebaixar para fazer suas súplicas. Mas nós, é parte de nossa vida ser pobres e viver na humilhação” Os outros também se abriram a comentar que a sociedade descrimina entre os que têm e os que não têm. A pobreza é resultado de quem não capricha, de quem é preguiçoso, de quem é ignorante. Sem nenhum protesto, o pobre assimila este julgamento e condena-se a si mesmo. E ‘se Deus quiser’ a vida vai mudar.
Continuaram com seus comentários: como o povo da antiguidade esperava a justiça de Deus no aqui e agora, nosso povo fala da justiça de Deus mas só se espera na outra vida. Foi que D. Madalena fêz notar uma coisa interessante: “Vocês viram, gente, que todo esse pessoal da Bíblia depois de jejuar, se cobrir ou se deitar nas cinzas, para uma ação. Judite, depois se pintou e foi conquistar o comandante e degolou a cabeça dele e assim salvou seu povo. ‘Tal a diferença para o tempo de hoje: a gente recebe as cinzas e não faz nada depois, não muda nada, não parte para ação”. Maria citou o trecho de Jonas e leu: “Os ninivitas creram (nesta mensagem) de Deus, e proclamaram um jejum, vestindo-se de sacos desde o maior até o menor”. E explicou: “Até o rei cobriu-se de sacos e sentou-se em cima de cinzas. Hoje em dia, nas comunidades da periferia, há muito esforço de unir-se com os outros, e de arrancar o mal que não deixa a gente sossegar. Quando é um trabalho em comum, a gente vê resultados e tem esperanças. Mas quando alguém não quer colaborar, e em particular os grandes, só atrapalha e deixa o povo sem recursos. Então, eu entendo este gesto de cinzas, sendo um momento em que nós todos somos iguais e reconhecemos que há de bom e de ruim em todos”.
Portanto, as cinzas são um sinal de igualdade. Todos estão, neste momento, humilhados, iguais um ao outro. Não há distinção entre pessoas. É um sinal de encontro do maior com o menor e se torna um momento de identificar-se com toda a humanidade, seja quem for. Para quem leva adiante a reflexão, entende a necessidade de manter esta Não igualdade durante o ano inteiro, pode privar seu irmão daquilo a que ele tem direito, não pode mais explorar o outro para acumular bens só para si. Em sumo, não pode mais violentar seu semelhante.
Por: Frei João Schwieters, OFM
Texto Publicado originalmente pelo autor na Revista de Liturgia (A Vida em Cristo e na Igreja)