“Dai-lhes vós mesmos de comer”(Mt 14,16)

Pela terceira vez a Igreja no Brasil busca chamar a atenção da população e de si mesma sobre o assombro da fome em nosso país. Já em 1975 a Campanha da Fraternidade abordava o tema em nosso país, o que demonstra a infeliz presença desse mal a muito tempo no meio de nós. E ainda que tenha havido uma considerável redução da fome até o ano de 2013 (Fonte: “Fome cresce e supera a taxa de quando o Bolsa Família foi criado” – DW – 13/04/2021), a situação voltou a crescer e se agravou com a pandemia no país.

Estes dados podem parecer repetitivos, pela constante apresentação do tema nos meios de comunicação social hoje (Não há quem não tenha visto ou ouvido falar sobre a notícia de uma escandalosa fila para recolher ossos em Cuiabá, ou a venda de peles e carcaças de frango em supermercados na cidade de São Paulo, ou ainda, a situação aterrorizante do povo Yanomami morrendo de fome e doenças dentro de seu próprio território), entretanto, a constante exploração dessa tragédia e de tantas outras têm, cada vez mais, levado as pessoas a acostumar-se com esse tipo de noticias, de modo que isso tornou-se algo corriqueiro e comum. Há sem sombras de dúvidas uma perda do humano, do sensível, da compaixão, para com quem vive a mazela da fome, especialmente.

Uma re-chamada para vida

A Campanha da Fraternidade de 2023, com seu lema “Dai-vos vós mesmos de comer!” (Mt 14,16), ordem dada por Jesus aos seus discípulos, objetiva “Sensibilizar a sociedade a Igreja para enfrentarem o flagelo da fome, sofrido por uma multidão de irmãos e irmãs, por meio de compromissos que transformem essa realidade a partir do Evangelho de Jesus Cristo” (Campanha da Fraternidade 2023: Manual, p. 13), isto é, reaver os sentimentos que nos tornam humanos (a compaixão, a misericórdia, o senso de fraternidade, a cultura do encontro etc.,), perdidos diante do mal presente no mundo. É uma re-chamada para vida, perdida pela indiferença diante do sofrimento do outro.

Sensibilizar a sociedade e a Igreja sobre o mal da fome, implica ir além de mero sentimentalismo, ou peso na consciência diante de tantos que pouco ou nada tem para comer todos os dias. Sensibilizar implica provocar uma reflexão sobre as razões da fome em um país que alimenta milhões fora dele. Implica em desmascarar as estruturas planejadas e construídas pelo ser humano, em vista de seus objetivos políticos, econômicos, sociais.

Foto: Arquivo Custodial

O flagelo da fome

Sim! Não se pode mais negar projetos políticos e ideológicos que levam tantos milhares de pessoas, no Brasil e no mundo, ao mapa da fome e da insegurança alimentar. O mesmo pode ser dito do sistema econômico-financeiro global, que transforma um direito fundamental em mera mercadoria, caminho para o lucro, pavimentado sobre a indiferença dos que não podem comprar. Aliás, é bom lembrar que tanto política e economia, em sua etimologia, muito se assemelham, ao pregarem o cuidado e manutenção do direito a todos do que é comum à comunidade (politeía) e o cuidado, uso responsável e distribuição dos bens que pertencem a uma casa/comunidade (oikonomía).

Uma política voltada unicamente para a manutenção de privilégios, e uma encomia que gira em torno da meta do lucro, só podem gerar uma terceira e gritante razão para a fome: a desigualdade social. Hoje no Brasil, cerca de 33 milhões de pessoas vivem o flagelo da fome ou insegurança alimentar. Dados apresentados no chamado Texto-Base da Campanha (Cf. Campanha da Fraternidade 2023: Texto-Base, pp. 26-61), nos mostram que a fome no Brasil segue as diferenças de desenvolvimentos regionais, por isso se agrava no norte e nordeste; a fome tem cor, pois a maioria da população hoje que não tem o que comer é de origem negra, e indígena; a fome no Brasil tem sexo, pois a maioria dessas pessoas em situação de fome são mulheres. Ou seja, todos os índices de desigualdade sociais presentes no Brasil, seguem acompanhados do flagelo da fome.

A que somos chamados?

Ainda, sensibilizar significa abrir os olhos de cada pessoa que foi tomada pela cultura da indiferença com o sofrimento do outro, da sua responsabilidade que cada ser humano tem para com o outro, liberando-se do chamado pecado de Caim, que se fez indiferente diante do seu crime contra seu irmão Abel (Cf. Gn 4,9-10). É um primeiro chamado à solidariedade e partilha diante da urgência da fome. Quem tem fome, não tem tempo para explicar-se sobre sua condição, ou pensar em religião. Quem não tem o que comer todos os dias, pensa apenas em comer. Saciar a fome imediata é o primeiro gesto de dar o que comer a quem tem fome.

O segundo chamado à sensibilizar a Igreja e a sociedade, é saciar a fome de justiça dos que pela fome física, já não conseguem mais gritar contra as estruturas desumanas que causam a fome. Sensibilizar significa adquiri uma nova visão sobre as causas da fome, ter uma postura ética diante do uso dos bens (rechaçando o consumismo que escraviza), mobilizando a família, os amigos, a comunidade, em vista de um engajamento de luta contra as estruturas políticas, econômicas e de desigualdade social, causadoras do flagelo da fome. Sensibilizar-se significa somar forças com entidades e organizações da sociedade que lutam por direitos para os menos favorecidos, não só por alimentos, mas por moradia, emprego, saúde, educação e cultura, etc.

Foto: Arquivo Custodial

“Dai-lhes vos mesmos de comer” (Mt 14,16) é uma convocação à conversão pessoal, comunitária, religiosa, política, econômica, etc. tendo em vista a realização do sonho de Deus para a humanidade, expressão na obra perfeita da criação, e que diante da queda da mesma, frente ao pecado da indiferença, o Papa Francisco retoma em sua Carta Encíclica Fratelli Tutti: “perante as varias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras.” (Ft 6).

Por: Frei Rômulo Canto, OFM

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