Fim de ano às margens do Cururu: crônicas de Frei Andrei Anjos

Foto: Arquivo Pessoal/Frei Andrei Anjos

Esse texto é um relato da minha “quarta experiência” na Missão Cururu. A primeira foi em 2013, ainda como postulante, acompanhando Frei Paixão em uma visita. Minha segunda estadia, e a mais extensa até agora, foi em 2019, quando vivi por oito meses junto com os Munduruku. A terceira ida ao Alto Tapajós foi no final do ano de 2021. A quarta é esta a qual passo a contar agora para vocês.  

Pelas águas, terras e ar rumo à Missão Cururu

Com o objetivo de chegar na véspera de Natal na Missão Cururu (Jacareacanga PA) eu (Frei Andrei Anjos) e Frei Edilson Rocha tivemos que correr contra o tempo. Saímos do Convento São Francisco, em Santarém, no dia 22 de dezembro para embarcar na lancha com destino a Itaituba. A embarcação estava prevista para sair às 10h e a chuva que começou na noite anterior ainda persistia. Enquanto isso, com a pressa da saída persistia algo que é comum em todo viajante; uma sensação de estar esquecendo alguma coisa. 

O local de embarque era um lugar pequeno e apertado, as pessoas estavam impacientes em busca de informações sobre passagens e transportes, lá uma funcionária gritava: – “Aveiro, Brasília legal, Itaituba…”. No interior da lancha, crianças choravam, pessoas contavam suas aventuras de viagem, outras faziam confusão por causa do assento… e de certo modo sentia que tudo estava normal por aqui. Chegamos em Itaituba às 20h, muito depois do esperado, mas com aquele alívio pela primeira parte da viagem cumprida. Tivemos a noite para repousar no conforto da fraternidade Sant’Ana, deliciamos uma pizza e usufruímos de uma boa rede de internet.

 No dia seguinte (23/12) continuamos, desta vez pela desafiadora transamazônica, saímos às 11h15. Se na primeira parte viemos por águas, nessa etapa seguimos por terra, por meio de uma caminhonete fretada, mas desta vez sem o embalo das “sofrências” e com pouca conversa. A estrada estava muito agradável e deu para tirar um cochilo. Pelo menos nas primeiras horas de viagem, porque depois a costa começou a reclamar. Mas logo chegamos no quilômetro 180 para almoçar e esticar as pernas. Lá não tinha pium e por isso almoçamos sossegados. No mesmo local, encontramos uma família da aldeia Sawmuybu com quem trocamos cumprimentos e conversamos um pouco. E após a parada para refeição continuamos o trajeto ouvindo uma “pisadinha” de leve. 

Em Jacareacanga, chegamos às 17h30, fomos acolhidos pelos freis Marcos e Ari, carmelitas. Logo depois a irmã Cláudia Moraes (SMIC) foi ao nosso encontro. Ficamos surpresos ao saber que ela tinha passado mal e por essa razão precisou vir até Jacareacanga para fazer exames com urgência. A irmã sentia uma forte dor no estômago, mas já estava bem melhor e o exame para malária tinha dado negativo. 

Na véspera de Natal, fomos ao supermercado para registrar as cestas básicas, resultado de um projeto em parceria com a Franciscans Missions, e que foram entregues para os indígenas. Aproveitamos e fizemos as compras necessárias para uma semana na Missão Cururu. Irmã Cláudia foi às compras conosco, mas não voltou para a Missão, pois iria para um retiro em Quixadá-CE. 

Ao meio-dia frei Marcos nos levou ao aeroporto para pegarmos o voo até a Missão, tivemos que aguardar um pouquinho, pois houve um contratempo. O dia estava agradável, céu aberto, poucas nuvens e uma brisa suave. Tempo ótimo para voar! A esperança era chegar ainda cedo para organizar a nossa estadia e as celebrações de Natal. E durante aquele tempo em que aguardávamos eu conjecturei que, agora sem a irmã Cláudia na Missão, ficariam um pouco exigentes estes dias de visitas. E somou-se a essa reflexão o desejo de não estarmos nos esquecendo de nada. O que era para ser alguns minutos de voo se tornaram três horas de espera, o rapaz da gasolina e o piloto atrasaram mais do que o previsto, voamos  por volta das 15h00. 

Desembarque dos paim na Missão 

Pousamos na “pista piçarra” da Missão com a trepidação já esperada. Ao desembarcar fomos recepcionados por muitos “Bekitkit” (crianças), que vieram pegar nas mãos do “Paim” (frades), eram tanta empolgação no aperto de mãos dos pequeninos que dava para pegar que de uma vez de saudar vários. Nesse mesmo momento alguns jovens guerreiros munduruku nos ajudaram a levar a gasolina para casa. 

Ao chegarmos à Casa dos Frades constatamos que o ambiente, que estava fechado desde a última visita, precisa de uma organização. Deu um certo trabalho para encontrarmos as chaves das portas, enquanto nos organizávamos, várias crianças, com sua espontaneidade e alegria seguiam correndo e brincando pela casa toda, chamando “Paim, Paim…”. 

Foto: Arquivo Pessoal/Frei Andrei Anjos

O Nascimento de Jesus em solo Munduruku

A celebração eucarística estava marcada para às 19h. Enquanto os crismandos se confessavam, caiu uma chuva muito forte e de repente parou.  O aguaceiro, embora volumoso, não conseguiu aplacar o calor intenso. Mas ainda teríamos mais surpresas, quando anoiteceu e o motor de luz da aldeia ligou, foi então que percebemos que a fiação elétrica da igreja não estava funcionando. A solução encontrada foi rezar a Missa de Natal à luz do celular. E eu rezava em meu íntimo pedindo que o aparelho celular não descarregasse naquele momento, visto que já estava como a bateria nas últimas e era a fonte de iluminação dentro da capela. 

Antes disso, tivemos que correr para encontrar os materiais litúrgicos, frei Gean Akay que já estava por lá pela Missão passando férias, nos ajudou nesta parte. E foi assim que o curumim Jesus nasceu na Missão Cururu, no escuro, mas sua luz se fez presente nos rostos das pessoas que ficaram muito felizes ao celebrar este dia especial com a presença dos pains na aldeia. Um pouquinho depois das 21h o motor desligou e tudo virou um breu, fomos dormir ao som do cricrilar dos grilos, que formaram naquela noite santa um coral natalino da natureza. 

Acordamos para o dia de Natal com o soar do sino, que não era tão pequenino assim, para avisar a missa das 7h. A chuva já estava intensa desde a madrugada, e a Eucaristia foi começar lá pelas 8h. Na mesma celebração ocorreram Crismas, primeira comunhão e batizados. E mesmo com a forte chuva, a igreja ficou bem cheia. Estávamos com o projeto de ir até a aldeia Santa Maria, logo depois do almoço, mas a chuva forte persistia, mesmo assim começamos a organizar a ida, resolvemos sair com chuva mesmo. Sorte que ao sair o tempo deu uma trégua e assim partimos.  

Durante a longa viagem até a aldeia deu para refletir bastante, acompanhado da bela paisagem que a natureza nos presenteia, realmente, mais uma vez me dei conta de que esse lugar é encantado. O rio está cheio, ficamos presos em alguns varadouros, de vez em quando eu precisei ir e ajudar a puxar a voadeira, que estava com a toldo, e além disso tinha mais um detalhe, o chão estava muito liso de limo por causa do tempo sem uso. 

Celebrações nas aldeias Santa Maria e Bananal

Chegamos em Santa Maria às 17h30 fomos recepcionado por muitas crianças, era muita gente querendo cumprimentar o Paim e desejar Feliz Natal. Ficamos hospedados na escola, pois o posto de saúde onde costumávamos ficar foi demolido. Devido aos muitos casamentos e o número de crismandos Frei Edilson já foi logo começando as confissões, segundo ele foram mais de cem pessoas para se confessar. 

Nesse meio tempo, eu e o piloto Elcio Witõ, fomos visitar a casa do irmão do pain Gean. Já era noite e lá nos deram café com sarikita (farinha de tapioca), peixe cozido e farinha, estava uma delícia. Estava com muitas saudades desse peixe, sempre lembrava deste sabor. E nós comemos ali mesmo no chão da sala, um costume tipicamente Munduruku. Depois, ao sairmos, ainda nos deram três melancias para levar. Ficamos muito agradecidos, pois não tinha previsão de horário para jantar. 

Finalmente acabaram as confissões e frei Edilson jantou o que levamos do almoço de casa. Nos acomodamos para dormir, ouvindo um agitado xepxep (palavra munduruku quer dizer dois e por conseguinte também nomeia certas danças feitas em casal como forró, xote e outras) que animava o povo ao lado da igreja. 

Às 7h30 a celebração começou, estava tudo arrumado para ser ao ar livre, pois a igreja era pequena para o número dos participantes, mas como a chuva ameaçava cair, então a missa aconteceu no barracão da aldeia. O povo estava bastante animado, foi bonito ver a energia das crianças cantando e batendo palmas, todos os crismandos estavam com trajes tradicionais da cultura muduruku, com as roupas confeccionadas por eles e ornados por pinturas do seu povo.  

Paim recebeu vários cordões de presente durante a Crisma, significando o quanto eles estavam gratos por aquele momento. Depois da realização de todos os sacramentos previstos, que durou quase a manhã toda, fomos providenciar algo para comer antes da viagem de volta. Por precaução tínhamos levado umas sardinhas e arroz para fazer, ainda bem, porque literalmente “o rio não estava pra peixe”. 

Na volta paramos na Aldeia Bananal para mais quatro batizados, depois ofereceram café, pão e suco de muruci. Depois de uma viagem tranquila chegamos a Missão sem chuva, graças a Deus, mas não demorou muito para cair uma chuva constante, daquelas que parecem demorar a cessar. 

Visita e batizados na aldeia Caroçal Cururu

No outro dia (27), surpreendentemente fez um sol bom, deu para lavar roupas, aproveitamos para arrumar a casa, limpar algumas áreas externas e organizar alguns objetos.  Às 16h partimos para aldeia Caroçal, que fic

Foto: Arquivo Pessoal/Frei Andrei Anjos

a há uns vinte minutos da Missão, ao chegarmos lá, os moradores não estavam nos esperando, no entanto, prontamente providenciaram ovos fritos para jantarmos, depois teve Missa com cinco batizados. A igreja encheu de gente, até um sapo saltava pelo meio do povo, assustando várias meninas, enquanto elas cantavam e batiam palmas. Outro fato notável é que todos sabiam as músicas da celebração de cor. Nós ficamos hospedados no posto de saúde, os funcionários estavam de férias, não tinha ninguém lá, por isso o posto estava com muita sujeira de morcego. 

O motor de luz da comunidade desligou às 21h em ponto, tudo ficou muito escuro, nem estrela no céu tinha. A noite foi um pouco mal dormida, tinha muito barulho de morcegos e roncos, no meio da madrugada começou a chover e ventar forte, as janelas estavam abertas, deu um pouco de frio, o lugar que estavamos era bem apertado. Amanheceu e eu já estava de pé cedo, a chuva persistia, tomamos café no barracão da comunidade, tinha beyo’a (beiju), sarikita e wesuda’a (pupunha), só foram poucas pessoas porque todos estavam descendo para Jacaré-be (Jacareacanga). Com um pouquinho de chuvisco partimos de volta. Pudemos descansar um pouquinho na casa do Paim. Aproveitei o restante do dia e fui visitar algumas casas onde comi peixe cozido e algo que ainda não tinha experimentado, ikopibu, larva de maribondo assada, é uma delícia. 

Chuva vai, chuva vem… 

No dia 29, fez um forte sol, parece que era “só porque íamos ficar em casa mesmo”, assim, eu aproveitei para tomar banho no rio, ficar de molho e tomar um sol e  depois caminhar. Foi aí que caiu uma forte chuva, fiquei preso na casa de um comunitário, o senhor Elcio, o nosso piloto. Aconteceu que a chuva não passava e eu precisava voltar para casa antes que o motor de luz desligasse. Foi aí que improvisamos um guarda-chuva de saco plástico, assim voltei metendo o tênis na lama e com medo de escorregar no chão liso ou de ser mordido por um cachorro. Enfim, cheguei em casa são e salvo, Paim Edílson já estava cozinhando ovos para o jantar. 

No penúltimo dia de 2022, fomos passear, voltamos à aldeia Caroçal para levar os folhetos das celebrações, o sol estava muito forte, fomos na voadeira comunitária, que é sem cobertura, sentimos bastante a força solar. Dessa vez o piloto era o Capitãozinho. Na volta fizemos uma visita a aldeia Paxiúba, foi quando a chuva caiu, logo na chegada, conversamos e tomamos café, contaram sobre a comunidade, que é bem pequena, com umas cinco casas, e que querem ter Santa Dulce dos pobres como padroeira. O lugar onde costumam celebrar é o mesmo onde é a escola, barracão e onde acontece o xexep. Quando a chuva passou, pegamos o caminho de volta. Assim foi nossa tarde, que encerramos com um café e uma boa conversa na casa dos pains, onde estavam algumas pessoas visitando. 

Nos outros dias que permanecemos na Missão, aproveitei para visitar as casas, conviver com os indígenas e aprender mais da língua deles. Na virada de ano não costuma ter festa, teve uma brincadeira com as crianças no barracão, com músicas e apresentação de dança. Eu voltei para casa antes da virada, acordei com os fogos. No dia seguinte, domingo, primeiro dia de 2023, teve missa, no final tiveram agradecimentos da comunidade, eu fiz esforço para agradecer falando tudo em Munduruku, parece que entenderam. Depois fui levar comunhão para alguns idosos que não podem ir à missa, enquanto o Paim Edilson preparava o almoço. Neste mesmo dia, havia falecido uma senhora da aldeia Pratati, à tarde fomos ao cemitério rezar por ela, tinha muita gente, muitas crianças ficaram ao redor para colocarem terra sobre o caixão.

Onde há felicidade o cansaço se torna leve

O nosso voo de volta estava marcado para o dia seguinte, mas pela manhã um pouco antes do almoço começou uma forte chuva que também entrou pela tarde, já estávamos sem esperança de que o avião ainda viesse naquele dia, embora nossas bolsas já estivessem arrumadas, tentamos contato com os pilotos através da internet da escola, para ver se ainda viriam, foi quando o tempo abriu um pouco e o avião pousou na Missão. Um avião bem pequeno, o piloto deu pouco tempo para arrumarmos as bagagens, pois teria outro voo. Éramos 5 passageiros, eu, pains Edilson e Gean, mais duas senhoras indígenas que iam para Jacareacanga. Fomos bem apertados com as bagagens, tivemos que desviar de algumas chuvas com o risco de retornar a Missão. Mas foi mais tranquilo do que esperávamos, chegamos bem. 

Paim Ari, já estava nos esperando no aeroporto. No mesmo dia eu e Paim Gean fomos providenciar uma encomenda para levar na casa de apoio da Missão que fica em Jacaré, foi aí que aproveitei para conhecer o local e reencontrar alguns amigos indígenas que não estavam na Missão. Era um lugar um pouco afastado da cidade, um salão de madeira, com muitas redes no meio. Ao adentrar o espaço vimos que estavam tomando açaí, parece que já era o jantar. No fogo tinham alguns peixinhos, mas era pouco para tanta gente. 

Dormimos na casa dos pains carmelitas, eu dormi na sala onde atei a minha rede, sendo acordado cedo com barulho de panelas. Começamos nossa viagem para Itaituba às 7h30, aproveitando a carona do frei Ari, conosco foi mais um jovem de Manaus. Apesar da chuva e da estrada estar lisa e partes alagadas, fizemos uma viagem tranquila, chegamos até mais cedo do que imaginávamos. 

Pernoitamos em Itaituba e no dia 4 de janeiro, pegamos a balsa das 8h, fomos pela estrada para chegar finalmente em Santarém. Voltamos de carro, pois o Frei Edilson trouxe o veículo da Paróquia de Sant´Ana para manutenção. Logo após a travessia da balsa, começou a estrada de chão, ou melhor de lama, pegamos um atalho e até pagamos pedágio para passar no quintal da mulher, todos os carros menores estavam indo por lá. Na estrada principal tinham muitos caminhões na tentativa de passar no lamaçal escorregadio. Demoramos um pouco naquele trecho, foi o motivo do atraso. 

Foto: Arquivo Pessoal/Frei Andrei Anjos

Frei Edilson estava ao volante, de Rurópolis em diante, foi minha vez de dirigir, a estrada estava bem melhor, quase toda asfaltada. Intercalando entre chuva e sol, chegamos em Santarém às 16h. Então pudemos descansar e assim foi o meu primeiro dia de férias. Muito cansado, mas feliz de ter voltado à Missão Cururu e reencontrado aquele povo tão querido que me ajuda a crescer como frade menor e me inspira na doação a missão e a simplicidade. 

Frei Andrei Anjos, OFM

 

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