Uma reflexão sobre a Exortação Apostólica Laudate Deum, do Papa Francisco
“‘Laudate Deum’ é o título desta carta, porque um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo” (LD 73). Com estas palavras, o Papa Francisco conclui a sua carta do dia 4 de outubro, festa de São Francisco de Assis de 2023, sobre a mudança climática. Uma voz que parece clamar no deserto. Um clamor que não está isolado, porém, porque há muitas pessoas de boa vontade, inteligentes, lúcidas, e organizações da sociedade civil que se somam cada vez mais ao mesmo clamor. O Papa Francisco não está sozinho, embora que, da altura de onde clama, seja ignorado propositalmente pelos poderosos do mundo, que defendem os interesses de seus países ou dos conglomerados poderosos que reúnem os setores da economia que se beneficiam da exploração sem limites dos bens da natureza e vivem como se não houvesse amanhã.
A curta exortação apostólica de Francisco (18 páginas) quer ser uma continuação da sua carta encíclica Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum, lançada no ano de 2015. Antes do lançamento da Laudate Deum, nos meses do inverno do hemisfério sul e verão do hemisfério norte, entre junho e setembro de 2023, o mundo experimentou fenômenos extremos, sobretudo ondas de calor insuportável, incêndios pavorosos em alguns países, tempestades catastróficas no sul do Brasil e em outros lugares, com inundações gigantescas e perdas de muitas vidas humanas e prejuízos incalculáveis, sobretudo para a agricultura, deixando um rastro de destruição e morte. Nestas mesmas regiões, nos anos anteriores, uma severa estiagem também havia causado enormes prejuízos. Ao mesmo tempo, uma estiagem severíssima se abateu sobre a região amazônica, fazendo baixarem os níveis dos rios e lagos, que em muitos lugares secaram completamente. Alguns lagos cujas águas atingiram níveis de temperaturas fatais para milhares de toneladas de peixes e botos, que pereceram pelo calor e pela rápida vazão das águas.
O ciclo das águas da maior floresta úmida do planeta foi drasticamente alterado, com extremos de enchentes e vazantes cada vez mais frequentes e cada vez mais severas, nas últimas décadas. As razões de tais fenômenos extremos teriam a sua explicação na conjunção de vários fatores, mas sobretudo pela influência do fenômeno El Niño, com aquecimento das águas do Oceano Pacífico, mas também com o mesmo fenômeno simultâneo de aquecimento atípico das águas do Oceano Atlântico na zona equatorial. Há uma pressão enorme também para o avanço do desmatamento da Floresta Amazônica, numa onda de destruição que sobe a partir do sul da região, por parte do agronegócio, pecuária, atividades de extração ilegal de madeira, mineração e grilagem de terras públicas. O plantio de soja tende a se espalhar por toda a região, apesar de um tempo ter-se falado em uma “moratória” da soja, tema que nos últimos anos desapareceu dos discursos oficiais.
Coincidindo com a seca da Amazônia, desde antes do lançamento da Laudate Deum, uma densa fumaça de queimadas cobria a região, fazendo com que a qualidade do ar na maior metrópole da Amazônia – a cidade de Manaus – ficasse em péssimas condições, mesmo depois das primeiras chuvas que chegaram para amenizar a seca, o calor causticante e a fumaça que afetava a saúde das pessoas. Como em anos anteriores com grandes índices de queimadas, entre setembro e novembro deste ano, a fumaça das queimadas encobriu os céus de grande parte da Amazônia, degradando pessimamente a qualidade do ar. Se estes fenômenos extremos estavam acontecendo a cada ano, em 2023 parecem ter atingido recordes em várias zonas do planeta: calor extremo e persistente, com recordes de altas temperaturas, tempestades catastróficas com ventos absurdos, incêndios pavorosos, secas terríveis, inundações devastadoras… o mês de outubro mais quente da história. Eis o contexto do lançamento da Laudate Deum.
Como nos mostra em sua carta, o Papa Francisco destaca todos estes fenômenos como sintomas da degradação do meio ambiente, do aquecimento global, das mudanças climáticas como resultados da ação humana, denuncia o negacionismo, inclusivo de católicos, denuncia o descaso crescente dos poderosos do mundo, dos chefes das nações, principalmente daquelas que deixam as maiores pegadas de destruição e mais contribuem para o desequilíbrio climático, sobre as quais pesam as maiores responsabilidades no sentido de contribuírem com ações concretas, que ajudem a reverter a situação e evitar um processo sem retorno de destruição do meio ambiente. A exposição feita por Francisco se embasa nas explicações científicas e descreve de modo sintético e claro, com dados consolidados pelas pesquisas e estudos científicos sobre o fenômeno, desmascarando os negacionistas e denunciando o “paradigma tecnocrático”, assim definido pelo Papa: “Trata-se de um modo desordenado de conceber a vida e a ação do ser humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a arruinar. Consiste, substancialmente, em pensar como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia. Como consequência lógica, daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia” (LD 20).
A Laudate Deum traça um breve histórico do aquecimento global e das mudanças climáticas causadas pelo ser humano ao longo dos últimos séculos. Mostra como o processo de degradação do meio ambiente se acelerou nas últimas décadas do século XX e como o fator “antrópico” tem sido decisivo para o aquecimento global e consequentes mudanças climáticas. O assim chamado “antropoceno” está se revelando como a fase da história humana no planeta em que o ser humano foi decisivo para a destruição da sua casa comum e das condições necessárias para a própria existência. Quem vai analisar e estudar os efeitos geológicos do antropoceno, na pós-humanidade, na próxima era geológica?
O Papa Francisco mostra que as primeiras e principais vítimas das catástrofes climáticas são os pobres. Mas evidencia também que, no final, todos pagarão o altíssimo preço da incapacidade de unir esforços para deter o processo de degradação da natureza e do Meio Ambiente. As consequências não escolhem destinatários para os fenômenos extremos e violentos da natureza, que se volta contra os seus agressores de forma implacável e irresistível.
A carta do Papa traça um histórico do movimento mundial que se iniciou, especialmente a partir de 1992, no Rio de Janeiro, que deu origem às Conferências Mundiais do Clima, que se sucederam ao longo dos anos, com avanços e recuos, mas sobretudo se revelando incapazes de levar a medidas necessárias para diminuir as emissões de dióxido de carbono no ambiente e de lutar em conjunto para deter o aumento das temperaturas causadas pelo efeito estufa. O Papa defende uma governança global democrática multilateral redesenhada, que possa conduzir o processo e estabelecer as sanções para quem descumprir os acordos. Para isso, será necessário repensar a utilização do poder, fortalecer os organismos multilaterais e a política internacional, hoje muito fragilizada e desacreditada. As Conferências das Partes (COP), entre avanços e recuos, ainda permanecem como o instrumento mais válido para se tentar uma reversão do processo de aquecimento global e suas consequências. O Papa questiona os resultados das várias Conferências do Clima, mas aposta na COP28, a realizar-se em Dubai, ainda neste mês de novembro de 2023: as sessões prévias ocorrerão de 24 a 29 de novembro e a Conferência propriamente dita, de 30 de novembro a 12 de dezembro de 2023. Mas a “Laudate Deum” lança um clamor de que não é mais possível adiar as buscas de soluções globais internacionais para reverter o processo de mudanças em curso. Estamos chegando perto de um ponto de não retorno, se é que já não ultrapassamos este ponto.
A “Laudate Deum” parece não ter tido a mesma repercussão da “Laudato si”, talvez porque as atenções e os interesses dos poderosos do mundo e da população em geral estejam voltados para as Guerras, a Guerra da Rússia contra a Ucrânia e a Guerra absurda surgida três dias depois dos gritos lancinantes da “Laudate Deum”, entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza. São fatos que deixam as pessoas lúcidas muito perplexas e com as esperanças obscurecidas pela fumaça das queimadas e das milhares de bombas que destroem estruturas, casas, vidas inocentes, meio ambiente e comprometem o futuro de inteiras gerações dos oprimidos esmagados pela violência dos poderosos do mundo.
Na última parte da carta, o Papa discorre sobre as motivações espirituais para Católicos, Cristãos e todas as religiões, convidando a contemplarem toda a criação de Deus com os olhos da fé. Ver com o olhar de Deus a bondade e a beleza de todas as criaturas e perceber a profunda interconexão e interdependência de todas as criaturas e de todas as coisas. Todas têm a sua importância, o seu lugar, o sentido de sua existência em si mesmas e devem ser preservadas e não destruídas. “E Deus viu que tudo era bom…” (Gn 1,31).
O grande convite e provocação do Papa Francisco, na parte conclusiva é Caminhar em comunhão e com responsabilidade. Não sei se estou equivocado, mas sinto que Francisco, é ignorado pelos poderosos, vive a impotência dos pequenos do mundo. Que os seus clamores não caiam no vazio, mas toquem nos corações e mentes de todas as pessoas de boa vontade, sobretudo no mundo que se diz cristão. A exortação apostólica “Laudate Deum” é um grito profético, que nos desafia muito a sair da acomodação em quem nos encontramos e fazer a nossa parte para contribuir na luta pela vida e pela ecologia integral. Que Deus derrube os poderosos de seus tronos e eleve os humildes! (Lc 1, 52).
Frei Edilson Rocha, OFM
Santarém, 9 de novembro de 2023
Festa da dedicação da Basílica de Latrão.