Tempo e espaço não são meramente balizamentos que situam nossa vida humana, mas compõem o ritmo e nosso modo de viver. O ser humano não apenas tem consciência espaço-temporal, mas busca interagir e atuar nessa realidade. O tempo e espaço são ao mesmo tempo uma realidade apreendida e reelaborada pelo agir da humanidade. Damos sentido aos ciclos e significado ao ambiente. Comemoramos, festejamos, tanto nas datas importantes da coletividade, como em nossa vida pessoal. Mas também tentamos nos apropriar do tempo e do espaço. Por isso o ser humano marca as horas e edifica construções, datam os períodos, modificamos o ambiente ao nosso redor. Distingue tempo e espaço em termos de sagrado e profano.
O tempo então pode ser compreendido em sua dimensão cósmica, sagrada, histórica, litúrgica entre outras. Na estrutura litúrgica, com seu caráter festivo, temos o celebrar situado em um “quando e onde”. E por isso, reconhecemos que cada celebração litúrgica se dá em um tempo e lugar determinado, e por conseguinte assumindo algumas características próprias do ambiente onde se desenrolam. Podemos comparar a liturgia, usando uma analogia amazônica, com uma viagem de canoa.
A embarcação desliza sobre o rio do tempo de onde se contempla a paisagem. Essa é a imagem que ilustra o material sobre espiritualidade do tempo e espaço no material intitulado “cesta amazônica” de formação da REPAM (rede eclesial pan amazônica). Percebemos logo que a Amazônia pátria das águas é que esse elemento vital muda a paisagem e compõem a percepção de temporal e espacial. Outrossim, em Querida Amazônia podemos ler: As existências derivam numa alternativa dolorosa de vazantes e enchentes dos grandes rios (FRANCISCO, 2020, p.28). E o caminho para o maravilhoso a terra sem males se dá navegando águas impetuosas e percorrendo as trilhas do sol.
Deus arma sua tenda entre nós. Foi na plenitude do tempo que o Verbo veio morar entre nós. A encarnação de Cristo irrompe novo processo temporal e espacial. Ele, o Eterno, se entranha na história e se enraíza no chão de uma cultura concreta. No mistério da encarnação aprendemos que Jesus se incultura de modo concreto em uma cultura, tecida de lugar e tempo. Podemos falar assim do contexto, da circunstância de Jesus. Na pessoa de Cristo, Deus caminha com a humanidade no tempo e espaço. A título de exemplo, na conversa intercultural com a Samaritana, narrada em João, temos a questão do espaço do culto, e pergunta sobre onde se deve adorar? De fato, os contextos socioculturais nos questionam muito. E o Evangelho em diálogo com as culturas propõe essa conversa com os diversos tempos e espaços.
Essas mesmas noções de espacialidade e temporalidade são certamente muito caras à liturgia. Na memória litúrgica, Deus novamente intervém e se faz presente no momento e lugar da ação celebrativa. No decorrer dos dias litúrgicos vemos o nosso momento presente semeado pelo mistério pascal de Cristo. O espaço celebrativo, também modificado em alguns detalhes conforme os tempos e celebrações indicam Deus no hoje da sua gente.
A Igreja sendo corpo de Cristo segue um mesmo caminho de encarnar-se em um tempo e espaço. Assim como a casa dos amazônidas contém suas memórias, contam sua história e se anima com sua vida, desse mesmo modo, nossos espaços litúrgicos deveriam ser. A assembleia litúrgica é o espaço por excelência, e, assim, a Igreja é habitada também por símbolos e cosmovisões dos povos que a habitam, unidos ao grande mistério de Cristo.
Nas celebrações como a liturgia das horas temos o ciclo diário associado ao Mistério Pascal. O dia e a noite, tem na compreensão amazônica significados próprios. Um amanhecer na beira do rio pode significar o começo das atividades, a saída para pesca ou coleta, e ainda o trabalho na indústria e comércio. A significação do dia e da noite para um amazônida da cidade ou da zona rural será de certo modo diferente, bem como as suas ocupações.
A Igreja celebra o Ano Litúrgico ao longo do ciclo anual. Os fiéis celebram, recordando e vivendo, nos ritmos e nas vicissitudes do tempo os mistérios da salvação (Anúncio das Solenidades Móveis). Aspectos da obra salvadora do Senhor do tempo e da história são celebrados dias determinados do ano. Temos assim celebrações em ritmo anual e semanal. Recordando o domingo como dia pascal em cada semana.
Anscar Chupungco (1991) defende que, salvaguardando a essência do mistério de Cristo ao longo do tempo, a linguagem e símbolos das estações anuais na liturgia podem ser adaptadas. Isso porque muitas ideias são referentes ao tempo e espaço do hemisfério norte. E podemos nos questionar quais são as expressões estacionais da Amazônia. Olhando para os povos amazônidas vemos que estes têm os tempos de “cheia” e “vazante” como as duas grandes estações. Essas duas grandes temporadas marcam também a alteração do espaço pelo rio e do clima pelo ciclo das chuvas, mais frequentes em um período que no outro.
Todo espaço é bendito para celebrar, mas nossas comunidades destinam um espaço para encontrar-se em assembleia. E sobre o espaço para celebrar vemos que esse “armar a tenda” passa também pela edificação de locais de celebração com o rosto da assembleia reunida. Materiais dignos de acordo com o contexto e arte locais. Celebrar no chão da Amazônia é reconhecer a grandeza da criação, a bênção de Deus e de onde nos vem os materiais para edificar o local celebrativo. Celebrar é agradecer pela terra, lugar onde se vive.
A maioria dos povos da Amazônia têm forte ligação com seus territórios, vale lembrar a grande luta das populações indígenas por um espaço para viver e as ameaças que circundam esses locais. Em Querida Amazônia (FRANCISCO, 2020, n. 20) afirma: Não há espaço para a ideia de indivíduo separado da comunidade ou de seu território. Os povos da Amazônia têm forte ligação com seus territórios, vale lembrar a grande luta das populações indígenas pelo reconhecimento do espaço para viver. E essa vida amazônica é impregnada pela natureza circundante.
O segundo capítulo do documento preparatório para o Sínodo Pan-amazônico abordava o território e via na Amazônia não apenas um lugar geográfico (urbi) mas um espaço de sentido (quid). Lugar de viver a fé e onde Deus se manifesta. Na sequência, o capítulo III tratava do tempo, o kairós amazônico. E distinguia esse tempo como sendo momento de graça, inculturação, interculturalidade, grandes desafios e esperanças. O sentido comunitário se constrói nesse tempo e espaço compartilhados, em outros termos, celebrado.
Para citar uma ilustração de especialidade e ritual amazônico temos o Kumurõ do povo Tukano que é um banco cerimonial de onde se assenta o Kumu para fazer o benzimento. O banco é feito com um processo de recolhimento dos trocos, entalhe e pintura com grafismos, e todo esse trabalho resulta em um objeto litúrgico desse povo do alto rio negro. Se fossemos fazer um tipo de comparação seria uma noção semelhante a que temos como cadeira da presidência. Assentar-se em um banco ritual como esse não significa apenas ocupar um espaço em um momento determinado. Ao sentar-se no kumurõ o tempo e espaço presentes e transcendentes se unem, na travessia feita pelo pajé. Os transes ou viagens xamânicas se voltam para a realidade concreta com a transmissão da cura. Desse modo, observamos em certos rituais amazônicos como na liturgia romana, não temos uma fuga do tempo, mas um encontro memorial que se encarna no hoje da nossa história. Por esse motivo se pode falar em memória-compromisso. Igualmente não podemos fugir da casa comum que nos cerca e do empenho com a ecologia integral.
A Amazônia é lugar teológico e por conseguinte lugar litúrgico. A sensibilidade estética dos povos amazônicos poderia dialogar ainda mais com o culto cristão. Cada vez mais, as igrejas devem ser imagens visíveis, e, portanto, também com rosto, da Igreja caminhante. Para esse fim as edificações deveriam cada vez mais considerar além do essencial para a funcionalidade dos ritos litúrgicos uma adaptação considerando o clima e ambiente da região amazônica.
Um inculturação do tempo e espaço na Amazônia são necessários. O primeiro passo vem de um reconhecimento da compreensão dessas duas realidades nas diversas culturas da região. Verdadeiramente, isso é um desafio pois, mesmo parecendo uma unidade de espaço e tempo, a Amazônia é ainda diversa e plural. Várias regiões têm aspectos próprios do bioma e compreensões temporais diversas. E em sentido de fuso horário a região é dividida em três: horário de Brasília, Amazonas e Acre. Por sua vez, no sentido de espaço temos diversas realidades como terra firme, várzea, igapó.
Carecemos de despertar a nossa sensibilidade para a encarnação. Necessitamos reconhecer o movimento divino de encarnar-se, dentro do mistério pascal, é como base de uma teologia liturgia do tempo e do espaço e raiz da inculturação litúrgica. Sonhando esse processo poderemos ver um lindo florescer de novos caminhos. o Ressuscitado misteriosamente interliga o curso da vida na cultura amazônica em seus tempos e lugares. Por fim, permanece hoje e sempre o convite de celebrar o mistério de Cristo no tempo e espaço da Amazônia.
Frei Fábio Vasconcelos, OFM