Neste ano de 2022, o documento de Santarém completa 50 anos, um motivo de grande celebração para a Igreja na Amazônia. O documento foi resultado do encontro dos bispos realizado na cidade paraense em maio de 1972. Os ventos que impulsionaram esse momento foram os da Renovação Conciliar do Vaticano II e as Transformações na Realidade Amazônica. Aliás, o documento já começa por citar a realidade amazônica, mostrando a conjuntura da época. E com essas luzes e desafios, o episcopado amazônico traçou as linhas prioritárias da pastoral na Amazônia. Duas diretrizes marcam a escolha das quatro prioridades e dos quatro serviços, são elas: Encarnação na Realidade e Evangelização Libertadora.
O documento não tem um tópico exclusivo sobre liturgia, mas nos faz pensar bastante sobre a dimensão litúrgica na Amazônia. Logo no primeiro direcionamento sobre a encarnação na realidade, podemos nos encaminhar para a necessidade da inculturação, que toca o aspecto litúrgico. Ao falar do quanto é vital fazer o movimento do Verbo de entrosar-se nas culturas e dialogar com elas, vemos que isso se dá não só pela via intelectual (conhecimento de pesquisa, reflexão, estudo…), mas do fazer por inteiro. Encarnar-se na realidade significa conviver com o povo e celebrar junto dele.
Inculturação litúrgica é uma das formas da Igreja fazer a encarnação na realidade amazônica. O termo inculturação no âmbito da liturgia é definido como “uma íntima transformação dos valores culturais autênticos, graças à integração do cristianismo nas diversas culturas” (BUYST e SILVA, 2003, p. 155). Trata-se de um movimento de encarnação e enraizamento. Esses valores, símbolos e expressões culturais em diálogo com o Evangelho germinam fecundidade celebrativa com rosto local e caráter de comunhão universal.
As linhas prioritárias não aprofundam tanto os aspectos do celebrar amazônico, mas fornecem sinais para refletir esse tema. Percebemos a existência de diversas culturas do poliedro amazônico. Essa multiplicidade cultural tem em comum a celebração como marca da sua existência “vinculada à amplitude da natureza”. Celebrar com as culturas diversas foi um tema muito frequente na constituição sobre a sagrada liturgia do Vaticano II. A necessidade de adaptar, inculturar e de tornar a liturgia uma ação dos(as) amazônidas, aparece muito ligada com a encarnação proposta no documento de Santarém.
No que tange à evangelização libertadora, na segunda linha diretiva do documento, encontra-se a orientação para uma ação evangelizadora que “envolve progressivamente catequese e liturgia”, fiel ao Espírito de Cristo e sua mensagem total e aos sinais do lugar e do tempo. Essa expressão recorda o que se lê na Sacrosanctum Concilium (SC), sobre o tratar da natureza da liturgia e sua importância na Igreja. Os números 9 e 10 do documento dizem que a liturgia não esgota toda a ação da Igreja, e existe uma profunda relação entre a vida litúrgica e evangelização.
A liturgia não é somente uma abertura para o Divino, mas também um compromisso com a humanidade. É preciso, afirma a SC, que os cristãos mostrem a luz do mundo e glorifiquem a Deus diante dos homens e mulheres. Isso tudo parece bem alinhado com a diretriz de uma evangelização libertadora que tem a liturgia como fonte e cume (SC 10). Alimentados pela celebração do mistério pascal, os cristãos amazônidas defendem a dignidade humana e da casa comum nesse sagrado bioma.
Outro trecho em que aparece a palavra liturgia no documento de Santarém é na formação de agentes pastorais. A imagem da Igreja-Comunidade com diversos ministérios, aparece fortemente nesse item. Um elemento também destacado é a importância de a formação priorizar aspectos e indivíduos autóctones. Sobre os conteúdos, indica atenção às áreas de Teologia, Catequese, Bíblia, Liturgia e temáticas das ciências humanas. A questão da formação litúrgica de todo o povo de Deus é igualmente um tema muito destacado na SC. Diversas iniciativas podem ser vistas ainda hoje no quesito da formação litúrgica de agentes pastorais na Amazônia. Do mesmo modo, merece destaque os esforços de equipes de liturgia e pastoral litúrgica conduzidas por lideranças leigas. Também os institutos de Teologia (IPAR, ITEPES etc.) têm possibilitado espaço de formação litúrgica e inculturação.
O binômio de dimensões que citamos marcam ainda hoje a caminhada eclesial na Amazônia. Elas foram muito bem assumidas também na ação litúrgica das igrejas locais. Porém, ainda temos muito mais a remar rumo à inculturação litúrgica no norte do Brasil e ao sonhado rito amazônico. E olhando para nossas assembleias litúrgicas, hoje nos questionam se estamos nos encarnando realmente na realidade amazônica? Um dever é olhar para si e para o espaço onde se celebra, a linguagem (visual e oral) e ver se tudo isso dialoga com o contexto. A celebração da liturgia que é a memória viva de Jesus, celebrada em comunidade e no chão da vida, nos ajude a ser uma Igreja com rosto amazônico.
Frei Fábio Vasconcelos, OFM