O Oikos de Deus e a Filosofia de São Boaventura

Ilustração: Fábio Vasconcelos

 

São Boaventura, um dos mais importantes filósofos franciscanos, usou duas imagens para descrever o Oikos de Deus: espelho e livro.  Como um espelho, esta casa reflete o poder, a sabedoria e a bondade da Trindade, precisamente pela maneira como as coisas se expressam. Boaventura também descreve a casa de Deus como um livro no qual o Autor (o Criador), a Trindade, brilha e é representado em três níveis de expressão: o  traço (vestígio), imagem e semelhança

A diferença nesses níveis de expressão reflete o grau de semelhança entre a criatura e o Criador, a cópia e o modelo, o Oikos e o seu autor.  O traço (ou vestígio) é o reflexo mais distante de Deus e é encontrado em todas as criaturas (os integrantes da casa).  Ou seja, cada grão de areia, cada estrela, cada minhoca, cada plantinha reflete a Trindade como sua origem (causa eficiente), sua razão de existência (causa formal) e o fim a que se destina (causa final). A imagem, entretanto, é encontrada apenas em seres intelectuais (humanos).  Reflete o fato de que a pessoa humana não se estrutura apenas à imagem da Trindade, mas, como imagem, é um receptáculo apto para o divino.  A pessoa humana está estruturada para expressar a Trindade de forma limitada e finita. Assim sendo, Boaventura ainda descreve os humanos conformados a Deus pela graça como semelhança, visto que, pela graça, são semelhantes a Deus.  

A casa de Deus com toda criação é uma teofania para Boaventura, uma expressão da glória de Deus.  Porque o mundo expressa a Palavra por meio da qual todas as coisas são feitas (João 1), cada criatura, membro da casa de Deus, é em si uma “pequena palavra”.  O Oikos de Deus, portanto, aparece como um livro que representa e descreve seu Criador.  Cada criatura é um aspecto da auto expressão de Deus no mundo e, uma vez que cada criatura tem seu fundamento na Palavra, cada uma está igualmente próxima de Deus (embora o modo de relacionamento seja diferente).  

Visto que a Palavra de Deus é expressa na variedade multifacetada da criação, Boaventura vê o Oikos de Deus como sacramental – um mundo simbólico cheio de sinais da presença do próprio Deus.  O mundo (a casa de Deus) é criado como um meio de auto-revelação de Deus para que, como um espelho possa nos levar a amar e louvar o Criador.  Nós, os humanos, somos então, criados para ler o livro da criação para que possamos conhecer o Autor da Vida.  O livro da criação, de acordo com Boaventura, foi concebido por Deus para ser o livro da sabedoria divina tornado visível para todos. No entanto, este livro se tornou ininteligível para os humanos por causa do pecado.  Como um livro escrito em uma língua estrangeira, a criação tornou-se ilegível porque a mente humana, nublada pelo pecado, ficou envolta em trevas.  Quando o pecado tornou este livro incompreensível, a Sabedoria, a Palavra, tornou-se carne, de modo que o livro escrito (a Palavra divina) foi escrito fora na humanidade de Jesus Cristo.  Na encarnação, o Verbo divino, fundamento de toda a realidade, apareceu no centro do Oikos de Deus.  O Verbo, que é a verdade de todas as coisas, se fez carne e se deu a conhecer na pessoa de Jesus Cristo.  Quem conhece a Cristo, portanto, conhece a verdade da realidade.  

Boaventura destaca Francisco como o exemplar místico de Cristo.  Boaventura percebeu a conexão entre o Oikos de Deus exemplar e a centralidade de Cristo na vida de Francisco de Assis.  Na biografia de Francisco, ele descreve o mundo (a casa de Deus) exemplar como deveria ser.  Francisco é aquele que viu a beleza divina nas coisas belas da criação porque viu essa beleza primeiro em Cristo, crucificado e glorificado na cruz.  Por meio de sua relação com Cristo, Francisco identificou toda e qualquer criatura como irmão e irmã, porque reconheceu que tinham a mesma fonte (ou bondade) primordial que ele.  Boaventura descreve essa capacidade de ver a realidade das coisas em relação a Deus como “contuição”.  Contuição é a consciência da presença de Deus junto com o objeto da própria criação, seja uma árvore, uma flor ou um pequenino ser. Francisco foi capaz de apreender as verdadeiras profundezas da criação porque entrou profundamente no Verbo encarnado.  Lá, no centro de seu ser, e agora, no centro da criação, ele descobriu a verdade de si mesmo e de toda a criação em Deus, a saber, que ele e a criação estavam juntos na jornada  para Deus.  

Por meio de sua relação com Cristo, Francisco experimentou uma transformação de consciência pela graça.  Sua consciência do mundo criado mudou.  O mundo criado não era mais um livro ilegível para ele;  antes, cada aspecto da criação falava a Francisco do amor de Deus revelado em Jesus Cristo.  Francisco foi capaz de ler as “palavras da criação” como o livro de Deus.  Tudo falava a ele do amor de Deus manifestado em Cristo, e ele fez de todas as coisas uma escada para subir e abraçar “aquele que é absolutamente desejável”. 

Através da vida de Francisco podemos apreciar o mistério de Jesus Cristo como o mistério do Verbo divino que se fez carne, pelo qual conhecemos a profundidade de toda a realidade.  Em uma pequena obra chamada “As Cinco Festas do Menino Jesus”, Boaventura descreveu como Jesus nasce em uma alma humana que é devota, humilde e dedicada a Deus.  Quando alguém encontra Jesus dentro de si mesmo, Boaventura diz, então pode-se encontrar Jesus nas estruturas do Oikos de Deus. A mesma ideia é expressa teologicamente em seus escritos.  Boaventura afirma consistentemente que Cristo pertence à própria estrutura da realidade – como Palavra, à realidade de Deus;  como Verbo encarnado, à realidade do Oikos de Deus.  É Cristo quem revela ao mundo seu próprio significado.  

Visto que a criação é um símbolo vasto no qual Deus fala o mistério divino naquilo que não é divino, a criação (especialmente os humanos) mantêm uma relação “congruente” com a Palavra.  Porque a criação é a “palavra expressa” da Palavra divina, ela é dirigida em seu âmago para a realização e completude em Deus.  Mas como a criação alcançará seu objetivo?  Para Boaventura, a meta é alcançada por meio da pessoa humana que, como Francisco, se conforma com Deus pela graça.  Tal pessoa reconhece os sinais divinos da criação e oferece a Deus louvor e ações de graças.  A palavra “pessoa” está relacionada com o latim “per-sonare”, que significa “soar”. Ser uma pessoa não se baseia no que fazemos, mas em quem somos em relação a Deus e aos outros.  instrumento de alteridade pelo qual o outro “soa” na própria vida. Na pessoa de Jesus Cristo, Deus irradiou-se ao longo de sua vida, em suas palavras e ações e, finalmente, em seu ato de amor na cruz. 

Francisco também foi  uma pessoa verdadeira porque, como Cristo, o amor de Deus irradiou por meio dele, pelo que se tornou irmão de toda a criação. Daí Boaventura nos lembra uma grande responsabilidade vivendo no Oikos de Deus: somente a pessoa humana tem a liberdade de trazer paz e reconciliação dentro desta casa, porque somente a pessoa humana tem a capacidade de amar  em união com Deus. O destino do Oikos de Deus, portanto, depende de como nós. Amemos.

 

Irmã Ilia Delio, O.S.F. 

Membro da Congregação das Irmãs Franciscanas de Washington D.C. 

 

Texto originalmente publicado em Inglês no segundo volume da série “A herança franciscana” da Conferência dos Frades Menores para língua inglesa.

Tradução: Frei Erlison Campos, OFM

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