“Nossos passos se tornem memória”: Contexto histórico e desenvolvimento da solenidade da Imaculada Conceição
No dia 8 de dezembro, e dentro do Tempo do Advento, celebra-se a Solenidade da Imaculada Conceição. É a festa do começo absoluto, como afirma Paulo VI, quando Deus, por pura iniciativa sua, e preparando a chegada do seu Filho, preservou a Virgem Maria de toda a mancha de pecado original, para que na plenitude da graça fosse digna mãe de seu Filho. A Igreja sempre venerou a santidade da Mãe de Deus com o seu coração inteiramente voltado para Deus. Desse modo, se observa Maria como a mulher “cheia de graça” (Lc 1,28), saudada pelo anjo, na Anunciação.
Foi em 1854, no dia 8 de dezembro, que o Papa Pio IX declarou verdade de fé a Conceição Imaculada de Maria, uma doutrina contida na Revelação Divina. Um processo que culminou com a definição do dogma se insere num contexto muito mais amplo e complexo, de acontecimentos que marcaram e transformaram todo o século XIX. O processo de definição do dogma foi influenciado por um conjunto de questões da qual a Igreja não podia ficar isenta, entre as quais, sobre a figura de Maria.
Neste ano de 2021, celebra-se 167 anos deste dogma. Com a bula “Ineffabilis Deus”, em 8 de dezembro de 1854, o Papa Pio IX declara a Imaculada Conceição como dogma. Na história da Igreja, há muito tempo a devoção à Imaculada Conceição ocupou lugar de destaque, anterior até mesmo à própria definição e proclamação do dogma.
Segundo o liturgista Frei José Ariovaldo da Silva, a raiz litúrgica da celebração da Imaculada Conceição, encontra-se numa intuição sobrenatural que parte da simplicidade do povo. Vê-se então um caso em que a piedade popular influi na religiosidade institucional, gerando a celebração litúrgica e o referido dogma, mas esta festa deve sua origem a várias fontes.
Sobre a história do dogma, lê-se que a doutrina da santidade original de Maria se formou inicialmente no Oriente pelo século VI ou VII e dali passou para o Ocidente, junto com a festa litúrgica que se introduziu primeiro na Itália inferior, então bizantina, daí passando à Inglaterra e à França. Nestes países, no entanto, desde o começo denominou-se como festa da Imaculada Conceição. Antes ainda, fontes antigas destacam que no século III a literatura do período inspirava muitas festas marianas, como por exemplo a da Imaculada Conceição e a Natividade da Virgem Maria.
Foi no século XII que apareceu o primeiro tratado sobre a concepção de Maria, escrito pelo Monge Eadmer Canterbury (1128); e foi no século XIII que surgiu a grande discussão teológica. Santo Tomás de Aquino, assim como fizera São Bernardo de Claraval no século anterior, opôs-se a princípio a este privilégio mariano por razão da universalidade do pecado original e da redenção. Guilherme de Ware e João Duns Escoto, ao contrário, estavam a favor; e foi Duns Escoto, também conhecido como “o doutor sútil”, quem encontrou o caminho da solução que depois se impôs como teologia e se incorporou na definição dogmática.
Segundo o Missal Romano, esta solenidade já era celebrada desde o século XI e se insere no contexto do Advento-Natal, unindo a espera messiânica e o retorno glorioso de Cristo com a admirável memória da Mãe. “Em tal sentido, este período litúrgico deve ser considerado tempo particularmente oportuno para o culto da Mãe do Senhor”.
Maria é toda santa, isenta de toda mancha de pecado pelo Espírito Santo como que plasmada e feita nova criatura. Já anunciada profeticamente, a Virgem Maria conceberá e dará à luz a um filho cujo nome será Emmanuel. A caráter de contexto, no século X, a celebração da Imaculada Conceição migra do Oriente, onde se celebrava no dia 09 de dezembro, para o Ocidente, ganhando aspecto devocional. Somente após 1854, quando se promulga o dogma – sobre isso veremos mais à frente -, esta solenidade estendeu-se para o calendário universal da Igreja.
A veneração litúrgica à mãe do Senhor, como também o seu percurso histórico, tem valor e significado, somente se for enraizada na Palavra de Deus e se for inserida harmoniosamente na celebração da história da Salvação. A Sacrossanctum Concilium restaura o lugar de Maria dentro da liturgia, a sua relação com o mistério pascal. “Em Maria se encontra o mais alto fruto da Redenção. Ela se apresenta como um membro da Igreja que caminha com o seu povo, como uma estrela que guia até o Salvador e Redentor”. Ao celebrarmos “os mistérios de Maria”, no decurso do Ano Litúrgico, celebramos os mistérios de Cristo.
Segundo o livro “O jeito franciscano de celebrar” de Frei Alberto Beckhäuser, ofm, celebrando a Imaculada, recordarmos o Senhor que vem à terra para que toda a Igreja e a humanidade inteira possa realizar, não por privilégio, mas por graça, o que contempla em Maria. O Concílio Vaticano II recorda este dogma de fé e afirma que Maria foi “enriquecida desde o primeiro instante de sua concepção com o resplendor de uma santidade inteiramente singular”, devido a isso, “por ordem de Deus é saudada pelo anjo da Anunciação como cheia de graça”. Esta base bíblica encontra-se no Evangelho que se lê no dia da Solenidade da Imaculada Conceição e que se repete no quarto domingo do Advento, ano B, e no dia 25 de março, dia da Anunciação do Senhor.
Celebrar a Imaculada em tempo de Advento
O tempo litúrgico mais próprio para a veneração de Maria é o Tempo do Advento. É o que afirma o papa Paulo VI na Encíclica Marialis Cultus (n. 4), sobre o culto à Virgem Maria: o Advento deve ser considerado como um tempo particularmente adequado para o culto da Mãe do Senhor.
A Imaculada Conceição no Advento revela uma radical preparação para acolher o Salvador que vem. Nesse mesmo período a Virgem é recordada muito especialmente nos dias de expectação (de 17 a 24 de dezembro) e no último domingo do Advento. O mistério pascal mostra o Salvador que nos vem como cordeiro sem mancha, que tira o pecado do mundo. Ele é o Sol da justiça, Cristo nosso Deus é o bálsamo para a humanidade ferida pelo pecado.
A Solenidade da Imaculada Conceição ocupa um lugar privilegiado na vivência da liturgia durante o Ano Litúrgico. Deus realizou maravilhas em Maria. Ela é modelo de realização do mistério de Cristo e é intercessora junto ao seu Filho. Na celebração desta solenidade, Imaculada revela o mistério de Cristo e conduz a Ele. Assim, esta festa é sempre pascal. Vale ressaltar que no Brasil, por determinação da CNBB e autorização da Santa Sé, a Solenidade da Imaculada Conceição é sempre celebrada no dia 8 de dezembro, mesmo que este dia seja um domingo do Tempo do Advento.
A Igreja dá graças ao Pai, por Cristo, no Espírito Santo, pelas maravilhas e graças realizadas em Maria, Mãe de Deus. Nela a Igreja contempla e vive a vocação, a missão e o destino de cada ser humano. Portanto, o dia da Imaculada se celebra como festa de toda a Igreja e da humanidade, porque no dom gratuito que Deus faz à Maria, Ele abençoa a todos nós. Ela é o feliz exórdio da Igreja sem mancha e sem ruga, e nela foi dado início a Igreja, esposa de Cristo, resplandecente de beleza e santidade. Ao celebrarmos com Maria Imaculada, celebramos a ação de Deus que a fim de preparar para o seu Filho uma mãe que fosse digna Dele, preservou Maria do pecado original e a enriqueceu com a plenitude de sua graça, pois por ela “nos veio o sol da justiça, o Cristo, nosso Deus.
Frei Augusto Luiz Gabriel, OFM
Frade da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil. Acadêmico de Teologia do ITF, Petrópolis – RJ.
Referências
BECKHÄUSER, Alberto. Viver em Cristo. Espiritualidade do ano litúrgico. Petrópolis: Vozes, 1992. ______. O jeito franciscano de celebrar: guia da celebração litúrgica franciscana. Petrópolis: Vozes, 2018.
SILVA, Frei José Ariovaldo da. A liturgia que celebramos na Festa da Imaculada. In: COSTA, Sandro Roberto da (org.). Imaculada: Maria do povo, Maria de Deus. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.