Os estigmas de Francisco e as chagas da Amazônia

Foto: Frei Edilson Rocha

Neste dia 17 de setembro, festejamos a impressão dos estigmas, os sinais sagrados da nossa redenção, no corpo de Francisco.  Nesta festa litúrgica somos transportados ao alto do Monte Alverne (La Verna, na Toscana) onde em 1224 Francisco recebeu as chagas de Cristo.  Uma corporeidade marcada pelo encontro com o Crucificado e com os crucificados do seu tempo. Desde o começo da sua conversão, Francisco dedicou um amor especial ao mistério pascal do crucificado-ressuscitado. O Pobre de Assis, sempre quis anunciar Jesus de forma bem palpável, tornou-se então um “estandarte vivo” do Bom Jesus.

Na religiosidade popular do povo brasileiro, especialmente entre os nordestinos, e entre os amazônidas certamente também, tem lugar especial uma devoção a São Francisco das Chagas. Nossa proposta nesse texto é percorrer os caminhos que nos apontam os textos da celebração litúrgica e ver como eles nos inspiraram para uma práxis cristã-franciscana no belo, mas infelizmente chagado, chão da Amazônia. 

O que nos indicam os textos litúrgicos

A festa litúrgica celebrada com grande júbilo pela Família Franciscana nos remete sempre à figura de Cristo que Francisco testemunhou na sua carne. O hino da oração da manhã (Laudes) começa convidando ao louvor às chagas de Cristo, vistas no Santo de Assis. Esse “sentir-se crucificado”, tão presente na mística de Francisco, é também evocado no hino. Prosseguindo os versos vemos a indicação para se abrace também “as cruzes de cada dia”. 

Nos louvores entoados à tarde (Vésperas) vemos igualmente uma ênfase nas expressões cruz e na figura de Francisco. Acrescenta-se um verso que fala do serafim “de seis asas coberto”, figura presente na narrativa sobre a impressão das chagas. Em síntese os hinos são uma expressão de ação de graças pelo mistério de entrega total marcado pelas chagas do Senhor impressas em Francisco. 

Viver segundo o encontro com o Crucificado-ressuscitado 

A leitura breve do ofício da manhã e da tarde é tomada da carta aos Gálatas (6, 14.17-18). Esse trecho bíblico exorta a “gloriar-se da cruz do Senhor nosso, Jesus Cristo”. O autor sagrado afirma que por causa de Cristo, o mundo está para ele crucificado e vice-versa. Esse foi o modo de vida de Francisco, isso é, um viver conforme o abraço ao crucificado.

Na iconografia franciscana vemos muitas pinturas retratam o santo aos pés da cruz, abraçando o Cristo. Esse estar crucificado expressa também acolher os sofredores da história. E mais, Francisco assume o que a leitura diz: “trago em meu corpo as marcas de Jesus”, fato que é uma missão muito importante. E desse modo, podemos reconhecer que as marcas de dor podem também ser sinais de esperança. 

Foto: Arquivo Custodial

Outros conteúdos bíblicos dessa identificação com Cristo aparecem em diversas antífonas da salmodia.  A antífona do cântico de Zacarias recorda Cristo, Sol nascente e luz do alto, que de modo admirável marcou Francisco com os sinais da redenção. Por sua vez, antes do Magnificat escutamos falar da minha vida está escondida em Deus e desse configurar-se com Cristo. 

Na liturgia da Missa, temos como antífona inicial as palavras de Gálatas 6, 14 (passagem bíblica também presente na liturgia das horas), afirmando que nossa glória, não é outra a não ser a cruz. “De entrada” já somos conclamados a contemplar um mundo crucificado. Na oração do dia recordamos Deus que inflama os corações dos fiéis com o fogo do seu amor, renovando de modo admirável os sinais da Paixão de Cristo em Francisco. A comunidade suplica ainda que, pela intercessão de Francisco, possa configurar-se à morte e ressurreição do Senhor. A missão contida nesta prece é a seguirmos o exemplo de Francisco no seguimento de Cristo. 

As leituras indicadas para a missa da festa remetem igualmente ao mistério da Cruz. Na primeira leitura proclama-se Gálatas 6, 14-18 (mesma passagem de onde se tira a antífona da entrada e também, como já acenado está prevista em outras liturgias da mesma festa). No salmo responsorial, um cântico do novo testamento, encontrado em Filipenses 1 e com o refrão extraído de Gálatas 2, 20, recordando o estar crucificado com Cristo. O Evangelho é Lucas 9,23-26 e trata de seguir Jesus, renunciando a si mesmo e assumindo a Cruz. Em suma a liturgia da Palavra se conecta com o anúncio destemido e abnegado integralmente assimilado por Francisco.

As feridas da Amazônia hoje

Podemos então nos questionar, quais são os caminhos amazônicos que nos indica essa celebração? Em 2024 celebraremos os 800 anos do dom das chagas, e a Conferência Geral Família Franciscana (cf. Material para celebração dos centenários franciscanos 2023-2026) nos convida a pensar essa comemoração nas dimensões teológica, fraterna, eclesial e sociológica. Essa celebração é uma convocação para a dimensão do silêncio orante e contemplativo, reconhecer o desejo de infinito em nossos corações. Ao celebrar Francisco tocado pelo Crucificado devemos também tocar e deixarmos ser tocados pelas feridas da Amazônia hoje.  

Na canção Pan-Amazônia ancestral, de Antônio Cardoso, ouvimos as seguintes palavras: “tantas feridas abertas/No seio da floresta e a ganância”. Em querida Amazônia escutamos um grito da terra ferida e do povo machucado: A terra tem sangue e está sangrando, as multinacionais cortaram as veias da nossa “Mãe Terra”. O corpo dos povos e da natureza, intimamente interligados, estão certamente feridos. E para constatar o qual chagado esta o ventre da mãe Amazônia, basta uma rápida leitura das notícias recentes sobre a região. Ao celebrar as chagas de Francisco sentimos o desafio de passar do contemplar, esses estigmas amazônicos, para agir diante dessa realidade machucada. 

Frei Fábio Vasconcelos, OFM

 

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