Relação entre liturgia e missão na Amazônia

Batizado na Missão Cururu. Foto: Maribeth Joeright

O encontro entre Liturgia e Missão 

O discipulado e a missão brotam do encontro pessoal com o Senhor e a liturgia é, sem sombra de dúvidas, um lugar privilegiado para esta experiência com Cristo. Encontramos Cristo de muitas maneiras na Liturgia. No momento celebrativo entramos em diálogo e comunhão com o Ressuscitado que continua a impulsionar a missão da Igreja. Recebemos do Senhor o dom do Espírito e da vida nova que nos fortalece e insere no compromisso de sermos seus seguidores. O Mistério Pascal que celebramos é a existência total do Cristo. Nós, que somos discípulos de Jesus, partilhamos o anúncio do Reino na espera vigilante da sua volta. Outro dos elementos que caracterizam o discípulo-missionário é a comunhão que se expressa fortemente na união litúrgica (liturgia celebração) e na partilha da vida (liturgia vida).

 A Iniciação Cristã, que foi um dos temas chave do encontro de Aparecida, repensa a unidade entre catequese e liturgia, lembrando que ambas têm como fim a penetração nos mistérios do Reino. A vivência do Mistério se dá em uma relação entre liturgia e vida, entre celebração e testemunho. Ao relacionarmos liturgia e missão não podemos esquecer a preocupação e tarefa da inculturação litúrgica. O texto de Aparecida usa a expressão “nossos povos” para indicar que na nossa realidade não temos um povo único e em um mesmo país se expressam diferentes culturas. A Constituição Sacrosantum Concilium sobre a Sagrada Liturgia do Concílio Vaticano II (37, 40, 119…) falou diversas vezes dessa preocupação com a clareza dos ritos e com a sua adaptação às diferentes culturas, essa é uma forma de encarnar a missão da Igreja nos mais diversos ambientes.    

A liturgia é momento da história da Salvação, alimento para os seguidores e seguidoras do Ressuscitado. No entanto, a liturgia não esgota o fazer da Igreja, mas deve torna-se sua fonte e cume (SC 10). Ao celebrar o Mistério Pascal devemos nos questionar diante da Palavra de Deus e da realidade atual. O fazer “o que o Senhor fez” significa doar sua vida por um mundo melhor. Ao sairmos da celebração litúrgica (ite, missa est) somos enviados em missão, convidados e convidadas a glorificar o Senhor irradiando no mundo a sua paz e alegria (cf. rito de despedida da Missa).  

 

Foto: Arquivo Custodial

Liturgia e missão na Amazônia

Liturgia e missão estão fortemente unidas. Vemos que na liturgia temos a fonte e cume do agir eclesial (SC 10). Cada pessoa que celebra em cada lugar do mundo assume uma vida e compromissos próprios. Em cada liturgia se acolhe a palavra e o envio missionário. Observamos que existem liturgias próprias que enviam missionários ad-gentes, mas para além disso cada celebração faz de nós missionários do que ouvimos e realizamos. Nesse contexto é que queremos comentar um pouco sobre a relação entre liturgia e missão em ambiente amazônico. A Amazônia não é apenas terra de missão, mas espaço teológico e missionário que nos desafia a viver e celebrar o evangelho. Temos então um texto que pretende discutir esses aspectos e deixar-se navegar pelos sonhos e uma liturgia com rosto amazônico.  

No projeto do sonho eclesial recordamos que “a Igreja é chamada a caminhar com os povos da Amazônia” (QA, 61), isso é em sua vida e missão que contemplam também o celebrar. Esse caminho, do desenvolvimento do rosto amazônico da Igreja e, por conseguinte, da liturgia, passa por um reconhecimento da cultura do encontro, da harmonia pluriforme. Reconhecendo a diversidade e unidade nas diversas formas de celebrar o culto divino. No celebrar adaptado em um contexto amazônico se faz ressoar o mesmo mistério pascal e o grande anúncio missionário. Da liturgia se vai à vida e vice-versa porque não são partes contrárias do existir. Todo batizado, discípulo-missionário, encarna em sua vida os compromissos daquilo que acredita e celebra. Na Amazônia a liturgia e a missão assumem características próprias mediante as necessidades e culturas locais. 

 

Foto: Maribeth Joeright

 

Cristo, com sua presença nas ações litúrgicas (SC 7) nos indica o caminho, e como diz São Paulo VI, aponta para a Amazônia. A região amazônica é convidativa, acolhedora e se mostra como espaço aberto para viver e celebrar. No entanto, nos causa embaraço pensar que muitos de nossos irmãos e irmãs são privados de celebrar em cada domingo a Ceia Pascal do Senhor. A liturgia que em sua raiz é ação do povo, nos recorda os puxiruns indígenas e caboclos, que são imagens de um fazer em união, em um só coração. Liturgia nos recorda que temos uma missão e uma memória recebida.  São como fazer a “farinhada” de uma memória viva que recebemos e temos de atualizar no hoje. Assim, passamos a ver a missão da liturgia e a missão pela liturgia. Nessa ação contamos com a presença de Cristo, Ele é que restaura nossas forças, nos ensina e envia. Os compromissos da liturgia, memória que nos une a Jesus, nos lançam a buscar o bem viver da floresta e dos seus povos. 

A Boa Nova de Jesus se encarna nas culturas, estava lá sempre presente como fecunda semente. A Igreja que celebra de forma inculturada na Amazônia é embalada pela escuta e diálogo com as realidades e raízes locais. A anamnese de Cristo é esse mesmo diálogo entre o hoje e ontem, entre as múltiplas culturas e o Evangelho. Da imersão da liturgia nas culturas e dos passos da sua maior inculturação temos visto sinais. Na canoa da liturgia o remo da participação ativa, plena, consciente que gera frutos missionários tem sido uma grande ajuda. O sonho do Papa Francisco está no mesmo rio dos sonhos da Sacrosanctum Concilium. As mesmas bases do sonho eclesial se refletem ao tratar da inculturação da liturgia na Amazônia (QA, 81-84).  Querida Amazônia é profética ao afirmar: “O Concílio Vaticano II solicitou este esforço de inculturação da liturgia nos povos indígenas, mas passaram-se já mais de cinquenta anos e pouco avançamos nesta linha” (QA, 82). 

A liturgia na Amazônia, não fecha as portas da Igreja, mas a lança em saída, são a água refrescante de Igarapé e ponto alto da sua vivência. Na liturgia se pode comemorar as vitórias dos povos amazônicos junto da vitória pascal de Cristo. Os ritmos da terra e dos povos, o olhar contemplativo, o estupor diante da Amazônia são elementos de teologia e espiritualidade amazônica que devem se exprimir na liturgia. As culturas ao celebrar reafirmam identidade e valores, ou seja, a seu discipulado e missão, que configuram seu Ethos (Seu jeito de estar e agir no mundo). Tornamo-nos cristãos também através da liturgia e nos fazemos sempre mais pondo em prática cotidiana o que celebramos. Liturgia-vida e liturgia-celebração não podem desligar-se, num mundo onde tudo é interligado.      

Os povos da Amazônia sabem celebrar, se alegram com a união do divino com o cósmico, a graça e a criação, de modo particular ao participar dos sacramentos (QA, 81). Ao celebrar os sinais de Cristo nos unimos com a Criação, renovamos a ação de graças ao Criador e assumimos um compromisso com a natureza. Nossa humanidade e os elementos do universo são assumidos por Deus, que nos impele a um agir novo no mundo. O batismo é um forte sinal disso, batizados nas águas do Senhor, recordamos as águas da Amazônia também e nosso compromisso com rios e nascentes da região. Céu e a terra se unem no louvor que também assume os traços dos povos da floresta. A glória de Deus hoje é entoada na Amazônia quando nos comprometemos com a luta por direitos, preservação de identidade cultural, zelamos pela Criação e encarnamos o evangelho. 

Diante dos desafios colocados podemos sonhar também. E clamar que venha o rito amazônico como raiz da mesma liturgia católica. Que se adaptem de forma verdadeira os ritos em seus livros, musicalidade, gestual, ministérios e serviços. Do chão da Amazônia resplandeça sempre mais a linda missão dos seguidores de Cristo, que anuncia sua Páscoa até a sua vinda. A alegria do Senhor fortaleça os povos e a Igreja presente na Amazônia para que siga em seu compromisso de fé e vida. 

 

Frei Fábio Vasconcelos, ofm

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Referência
PAPA FRANCISCO. Querida Amazônia: Exortação Apostólica pós-sinodal. Brasília: Edições CNBB, 2020. 58p.
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