Entre rios, caminhos e trilhas na floresta, os moradores do interior da Amazônia percorrem longas distâncias coletando cipós, palhas, frutas e seivas de árvores; ou pescando em rios, lagos e igarapés. A solidão é só aparente e passageira, pois o melhor dessas caminhadas é a chegada nas casas, trazendo cascas medicinais, frutos, pescados e muitas histórias pra contar. O que mais as pessoas na Amazônia carregam consigo são suas histórias. Histórias que contam também os moradores que voltam das cidades, cheios de saudades dos parentes e amigos que ficaram no interior, e ansiosos para chegar à casa de sua infância e adolescência. Porque as casas para os ribeirinhos, indígenas e quilombolas são lugares que alimentam a memória e os afetos entre os familiares e amigos.
Não falo tanto dos indígenas que vivem mais afastados das cidades, que têm pouco contato com a sociedade envolvente e que vivem em grandes casas comunitárias, as chamadas malocas. Para eles, essas habitações são ainda mais espaços de encontros e trocas. Neste escrito, falo das moradias dos mestiços, ribeirinhos, indígenas e quilombolas, que vivem principalmente na calha do rio Amazonas e no baixo curso dos seus rios tributários. Qual a importância da casa para estes povos? Claro que as suas casas servem principalmente como habitações, lugar para se proteger do sol e da chuva, para descansar e para guardar seus pertences, mas não é só isso.
Nas últimas décadas, as casas passaram a ser feitas em alvenaria, mesmo assim, há muitas casas feitas de madeira e cobertas de palhas de palmeiras. Ao menos os quartos da parte da frente possuem trancas nas portas e janelas. Já a parte de trás, chamada puxada ou cozinha, é mais aberta e quase sempre coberta de palha, para escapar da temperatura alta, inclusive facilitando a ventilação. À noite, com a temperatura mais baixa, as pessoas se recolhem para dormir nos quartos fechados, e passam o dia inteiro, trabalhando ou descansando na parte de trás da casa.
Diferente dos moradores das metrópoles brasileiras, onde muitas pessoas vivem em quartos pequenos de casas apertadas, bem fechadas e protegidas por grades de ferro, com medo da violência, as casas no interior da Amazônia são amplas e aconchegantes, com aquela área na parte de trás (cozinha) que geralmente não tem paredes e nem cercas. É nessa parte, onde estão localizados o fogão, a mesa das refeições, bancos e até redes para um rápido descanso. Se na casa há quartos fechados, para guardar roupas, aparelhos eletrônicos e outros objetos de valor, a cozinha fica permanentemente aberta, acolhendo parentes e amigos visitantes. Por isso, se nas cidades se fala de sala de visitas, nas comunidades do interior podemos falar de “cozinha das visitas”: cozinha da partilha do café, do mingau e até das refeições. As casas não são lugares de se fechar, mas de se estar aberto ao encontro e ao diálogo entre os familiares e com os outros.
Essas moradias refletem, em parte, o estilo de vida dos seus moradores. São pessoas que vivem ainda em sua maioria de modo igualitário, sem ricos e pobres, sem mendigos e moradores de rua. Nessa igualdade, as famílias não sentem muito a necessidade de se fechar e se proteger com grades. Ao contrário, todos sabem o que todos possuem, e todos têm os mesmos bens. Em termos de alimentação, quem tem mais, compartilha com quem tem menos ou eventualmente não tem nada. Na região do baixo rio Tapajós, Estado do Pará, as famílias indígenas e ribeirinhas conservam o costume da putáua, que consiste em doar de forma ritual alimentos aos vizinhos e parentes. A palavra putáua é da língua nheengatu e significa presente. Quem recebe esse presente tem a obrigação de retribuí-lo em outro momento, de forma que essas famílias estão presas em uma rede de trocas simbólicas e reais, que evita que uns tenham demais e outros passem fome, por exemplo.
A mim me parece que, mesmo com a tendência de modernização recente na construção das casas, e o crescente predomínio da alvenaria, persiste esse aspecto das casas como espaço de troca de visitas. As pessoas gostam muito de se visitar. Elas aguardam serem visitadas. E, ao contrário da etiqueta em outras civilizações, que diz que se deve avisar antes da visita, na Amazônia, mesmo sem anúncio antecipado, basta chegar, e se é bem recebido. Às vezes a visita leva a sua putáua, e isso é apenas pretexto para longas conversas, risos e partilha de café e o que mais houver. Por isso, mesmo com as salas e quartos de alvenaria, a cozinha continua ali atrás, aberta e disponível. Inclusive pode servir de hospedagem provisória para alguma viajante que vai para as comunidades vizinhas.
O apego a esse estilo de vida pode explicar porquê muitos idosos preferem ficar na comunidade ao invés de ir morar com seus filhos e netos nas cidades. Eles sabem que nas cidades ficarão isolados dos amigos, presos numa sala vendo TV e sem a liberdade das suas puxadas. Esses idosos dizem que preferem viver e morrer na sua casa do interior do que ter as supostas vantagens e confortos da cidade. Na sua perspectiva, vida confortável é aquela que levam nas comunidades ribeirinhas. Ali estão seus amigos e parentes, que lhes visitarão e com eles trocarão ideias e longas histórias. Os mais velhos sabem das coisas. Já as novas gerações parecem mais encantadas com o que a cidade pode oferecer. Mesmo assim, nas férias, ocasiões de festas ou fins de semana, voltam correndo para a comunidade no interior para, também, matar a saudade dos amigos e da sua casa.
Os valores vivenciados por esses moradores podem ensinar muito a quem busca um bem viver ou uma melhor qualidade de vida. Principalmente no aspecto de a casa ser um espaço de acolhida e encontro. Tenho lido que em outros países mais ao Norte, pessoas idosas vivem sozinhas e algumas chegam a morrer em seus apartamentos, e seus corpos só são encontrados dias depois. Deve ser muito triste e desumano viver e morrer assim. Numa comunidade indígena e ribeirinha na Amazônia, isso jamais aconteceria. Ao primeiro sinal de dor ou mal-estar, um morador receber todo tipo de atenção e apoio. Sua casa fica cheia de parentes e amigos. As famílias trazem plantas e óleos medicinais, alimentos, ajudam no acompanhamento ao doente. E se for o caso, fazem coleta e pagam o seu deslocamento para hospitais nas cidades. Tudo de forma gratuita e fraterna. É quando estão doentes que os moradores sabem quem são seus verdadeiros amigos, e eles descobrem que tem muitos amigos.
Não precisamos nos mudar para uma aldeia indígena ou comunidade quilombola no interior da Amazônia, para viver sob a lógica da putáua e da acolhida. Aqueles moradores vivem assim porque escolheram viver assim, e porque sabem que viver assim é viver melhor. Nós podemos fazer o mesmo, ainda que vivendo em conjuntos habitacionais ou casas gradeadas nas cidades. É preciso escolher mudar de vida, não necessariamente mudando de cidade. É preciso abandonar a lógica do individualismo, isolamento e consumismo. Podemos optar por encontrar e conversar mais com nossos amigos. E temos tanto o que conversar… Se fizermos isso, vamos descobrir outras pessoas também ávidas por encontros e trocas. Vamos trocar experiências, angústias, sonhos, afetos… Vamos nos reunir para ver filmes, ler poesia e escutar músicas. Conversando, podemos até descobrir que há vizinhos idosos ou passando necessidades, para quem podemos doar cestas básicas. Ou vamos descobrir algo sobre ações políticas e mobilizações em favor de mudanças na vida do país. Dialogando, descobrimos tantas coisas…, e nos descobrimos a nós mesmos, nos tornando mais humanos.
Frei Florêncio Almeida Vaz, OFM
Professor do Programa de Arqueologia e Antropologia – PAA/UFOPA