Cop26

Txai Suruí: uma voz da Amazônia pelos sonhos da Terra

ilustração com base em uma foto da ativista Txai Suruí. Autor: Fábio Vasconcelos.

 

Uma voz da Amazônia brasileira ressoou em Glasgow, na abertura da 26ª conferência da ONU para mudanças climáticas, a COP26. Diante de lideranças mundiais a jovem ativista indígena Txai Suruí, de 24 anos, natural do estado de Rondônia, fez um discurso em nome da defesa da Terra e dos povos originários. Como guardiã da Casa Comum, Txai, mandou um recado que vem do ventre do chão amazônico, um clamor pela vida e pela escuta dos conhecimentos tradicionais. 

A jovem começou sua fala se apresentando, dizendo que mesmo com pouco mais de duas décadas, ela vem de um povo que habita há pelo menos seis mil anos na região amazônica. Recordou também seu pai e os ensinamentos por ele transmitidos. Txai aprendeu com os antepassados a ouvir o cosmos. Ao afirmar que ela aprendeu com o pai a linguagem e comunicação com a natureza, rememoramos um trecho da Missa da Terra sem males: “Eu era a Terra livre, eu era a Água limpa, eu era o Vento puro, fecundos de abundância, repletos de cantigas” (CASALDÁLIGA e TIERRA, 1980). Ademais, a fala da jovem se liga às afirmações de Querida Amazônia, ao dizer que os indígenas nos ensinam, inspiram cuidado e respeito com a Terra. O sonho da jovem moça Suruí é um sonho em consonância com o caminho pós-sinodal da Igreja na Amazônia. 

Essa recordação das raízes e dos aprendizados com os antepassados recordam a importância que tem para os jovens indígenas o ato de cuidar das raízes, como pontua a exortação Querida Amazônia. Convido os jovens da Amazônia, especialmente os indígenas, a “assumir as raízes, pois das raízes provém a força que [os] fará crescer, florescer e frutificar” (QA, 33). A Querida Amazônia convida os jovens amazônidas a beber da fonte das culturas que durante séculos tem transmitido sabedoria e um modo de viver em diálogo com a Criação. Desse modo, precisamos ver a urgência de aproximar conhecimentos e crescer no diálogo intercultural, colocando saberes técnicos contemporâneos e tradicionais a serviço do Bem-viver.   

O papa recorda que “o equilíbrio da terra depende também da saúde da Amazônia”, e por sua vez, Txai nos relembra que a terra está falando, aliás gritando, que “não temos mais tempo”. O clamor da Terra, e da Amazônia também, é um ecoar de dor, semelhante ao grito do povo de Deus oprimido. O sofrimento do povo ultrajado e da natureza ferida, recordados na oração final de Querida Amazônia, aparecem na fala da jovem Suruí ao falar que esse ferimento profundo é tratado de modo superficial. Passamos apenas pomadas e analgésicos em uma chaga que se alastra cada vez mais. Temos uma Terra sangrando com as veias abertas pela ambição do lucro e do poder. 

 

Mapa da Amazônia Legal. Ilustração: Fábio Vasconcelos.

 

O discurso de Txai mais uma vez nos remete ao tema do Sínodo Pan-Amazônico, que tratou de novos caminhos para Igreja e por uma ecologia integral, ao afirmar nas palavras da jovem que precisamos tomar outro caminho. São novos os desafios diante das mudanças drásticas no clima e devem comportar novas posturas, uma conversão ecológica, para não chegar ao “ponto de não retorno” da Terra. 

No discurso, Suruí lembrou ainda dos guardiães da floresta perseguidos e assassinados pela defesa da Casa Comum. Evocando a memória de Ari Uru-Eu-Wau-Wau, se somam tantos que tombaram na defesa da Mãe Terra. O sangue feito semente desses mártires nos recordam que ainda vemos o tempo da paixão dos defensores da Casa Comum. Seu testemunho é martirial nos une a Cristo, “sangue mesclado com todos os sangues”, e se torna força pascal na luta pela Ecologia Integral. A memória desses defensores da Terra gera indignação e um clamor urgente pela paz e justiça para o Planeta.   

As palavras do discurso que destacaram que os indígenas são” linha de frente no combate a mudanças climáticas”. E que os povos originários têm “ideias para adiar o fim do mundo”, uma expressão que remete ao pensamento exposto por Ailton Krenak. O pensador indígena que observa a importância dos sonhos na vida indígena e sua interação e integração com a Mãe Terra. No sonho se buscam orientações, as utopias instigantes que nos devem, neste tempo de crise climática nos nortear para pensamentos e gestos novos.

A pesquisadora Márcia Oliveira relembra que cada um dos eixos da proposta da exortação Querida Amazônia se estrutura em sonhos. Não apenas sonhos que embalam, mas que desafiam. Sonhos tem duas importantes dimensões, “de olhos fechados e abertos”, são aquelas visões em estado de sono e aquelas imaginações que a pessoa desperta. Sonhos são uma categoria importante na linguagem das sagradas escrituras vista como sinal de comunicação em inúmeras passagens bíblicas. Igualmente a ancestralidade amazônica vê nos sonhos uma ponte de comunicação deste mundo com outra realidade. Lideranças políticas sonham para orientar o povo e os pajés sonham, conversando com o Sagrado, para propor uma cura. A dinâmica dos sonhos está profundamente ligada com as profecias, com a boca de Deus falando das novas realidades que precisam ser construídas.  

Sonhar não é abdicar da realidade, mas, a busca de resoluções ainda não vislumbradas. Sonhar é um caminho de aprendizado, nos recorda Krenak (2020). As ideias, não como divagações abstratas, mas como realidades concretas. Sonhos possíveis, sonhos que precisam frutificar e florescer. E aqui mais uma vez nos reportamos a categoria dos sonhos utilizada pelo Papa ao escrever Querida Amazônia. Assim se interligam os sonhos ecológicos, cultural, social e eclesial por uma Casa Comum e pela Terra sem males.

 

Fábio Vasconcelos, ofm 

Acadêmico de Teologia no ITF

 

REFERÊNCIAS

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CASADÁLIGA, Pedro; TIERRA; Pedro. Missa da Terra Sem Males. Disponível em: https://www.servicioskoinonia.org/Casaldaliga/poesia/terra.htm. Acesso em 03. nov. 2021. 
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das letras, 2020.99p. 
OLIVEIRA, Márcia. Sonho Social (08-27): chaves de leitura. In: REPAM-BRASIL. Caravana Digital Formativa. Disponível em: https://repam.org.br/wp-content/uploads/2021/10/caravana_formativa.pdf. Acesso em 03.nov.2021. 
PAPA FRANCISCO. Querida Amazônia: Exortação Apostólica pós-sinodal. Brasília: Edições CNBB, 2020. 58p. 
Imagens do Capítulo das Esteiras de 2009.

Pequenas ações no cuidado do Oikos de Deus

Imagens do Capítulo das Esteiras de 2009. Foto: Arquivo Custodial.

 

 

Neste dia de São Francisco, a  série de reflexões franciscanas para o Tempo da Criação 2021 se encerra com um artigo de apontamentos práticos e troca de  experiências para cuidar do Oikos de Deus. Quem partilha conosco os seus sonhos e os pensamentos sobre o tema é Frei Francisco Paixão, OFM, mestre em Comunicação e atualmente administrador paroquial da catedral de Sant’Ana em Itaituba (PA).

 

 

O Sonho dos pequenos 

Ao me propor escrever este artigo no contexto do Tempo da Criação, que se encerra na festa do nosso Pai Seráfico São Francisco de Assis, sobre pequenas ações que cuidam da Oikos de Deus, me reportei para a noite do dia 21 de julho de 2009, na praça Madeira Mamoré, em Porto Velho, Rondônia. Era a cerimônia de abertura do 12º Intereclesial das CEBs do Brasil; cerca de 4 mil pessoas ouviam atentamente as palavras acolhedoras do bispo-profeta Dom Moacyr Grechi. Foi nesta noite que ouvi pela primeira vez o provérbio africano repetido por Dom Moacyr naquele discurso: “Muita gente pequena em muitos lugares pequenos, fazendo coisas pequenas mudarão a face da Terra”. E é sobre isso que desejo tratar, descrevendo algumas experiências que vi e ouvi na caminhada missionária amazônica do meu ser franciscano.

Quem, quando criança, não sonhou em ser protagonista de uma ação que mudasse o mundo? Eu me lembro de momentos em que, junto aos meus amigos de infância, ficávamos absortos olhando para o céu e fixando as estrelas imaginando um mundo distante criado a partir de nossos horizontes. Tudo era pequeno, mas os sonhos eram grandes, enormes. Pena que muita gente ao crescer, esquece essa capacidade de sonhar e não dão nenhum passo a mais no sentido de lutar por um mundo melhor. Eu continuo sendo sonhador, ainda que na porta da terceira idade. E quando posso, invento. Porque acredito, tal qual o provérbio africano, que o mundo que sonhamos será construído, não a partir de unzinho que se faz mito, ou um todo poderoso que se impõe pela força, mas sim, com as pequenas ações que mudam as mentalidades, as consciências e as atitudes pessoais em busca de um bem maior para todos. Só assim vamos cuidando do Oikos de Deus que é dom e graça para toda a humanidade.

 

Os sonhadores em tempos de crise: hortelãos da Casa Comum  

Durante o forte da pandemia do covid-19, vivi os “lockdowns” ou as bandeiras vermelhas, em Belém do Pará. A ordem era ficar em casa, não abrir a Capela ao público, celebrar na fraternidade e transmitir as missas via Facebook e YouTube. A vida ficou reclusa ao quarto, à sala de jantar e à cozinha. Nenhuma reunião de grupo, nenhuma reunião pastoral. O jeito era reinventar a vida interna de casa. Foi aí que surgiu a ideia de criar a “hortinha franciscana do alpendre”. Juntamente com uma colaboradora do convento, começamos a “brincar” de plantar verduras, tomates cerejas e pimentas. No início tratei como passa-tempo jocoso, mas depois senti que nossa pequena ação influiu no comportamento e atitude de alguns paroquianos que, vencendo o medo da pandemia, visitavam a capela e o convento. De repente nos vimos incentivados por eles a fazer crescer nossa horta, nosso projeto de compostagem caseira, etc. Percebi que uma pequena ação concreta – parecia brincadeira – podia ajudar as pessoas a mudar de mentalidade em relação ao cuidado do Oikos de Deus. Essas são sementes que com certeza serão lançadas longe, como as sementes da samaumeira amazônica, que quando explodem, espalham ao longe sua altivez e longevidade. Valeu brincar de hortelão. Todos devemos ser um hortelãos do Oikos de Deus!

 

 

Foto: Arquivo Custodial.

 

Grandes gestos de pequenos movimentos  

Antes desta minha última “aventura natureba”, fui membro fundador e incentivador do Comitê em Defesa do Igarapé do Urumari, que é um dos igarapés amazônicos que resiste à urbanização, na cidade de Santarém, Pará. Como um paciente com Covid, ele resiste respirando com dificuldade, mas com muita gente do lado de fora torcendo por sua recuperação. O comitê surgiu como fruto das reflexões feitas pelas Comunidades Eclesiais de Base da Região II de Pastoral, na então Diocese de Santarém, por onde o igarapé tem seu curso. Tem o apoio e o amparo da Federação das Associações de Moradores do Município de Santarém. Também o Comitê começou com um pequeno grupo de sonhadores, mas gente comprometida com o cuidado do Oikos de Deus. 

Diversas experiências foram desenvolvidas pelo Comitê: visitas ao longo do curso para conhecer in loco a beleza e as dores do ecossistema do Urumari; visitas educativas aos alunos das escolas em torno do Igarapé; duas romarias que mobilizaram centenas de pessoas, caminhando por suas margens; conversações com o ministério público e o governo municipal; ações de vigilâncias aos ataque e invasões… Pequenas mas significativas ações que ainda hoje colocam na agenda dos gestores municipais a preocupação da população daquelas comunidades com o futuro daquele ecossistema tão necessário para a cidade de Santarém. 

Com os mesmos objetivos e até bem anteriores ao Comitê em Defesa do Urumari, Santarém é palco de uma outra ação de cuidado com Oikós de Deus. É o Movimento Tapajós Vivo, que também iniciou com com um pequeno grupo de sonhadores e defensores da Amazônia, levando a cabo grandes embates em defesa do Rio Tapajós contra os depredadores da natureza que só vêem o Rio como lugar de produção de energia para seus projetos de exploração madeireira e mineral, sem importar-se com as sequelas e desgraças que a construção de uma hidrelétrica deixa para o povo da Amazônia. O Movimento (MTV) já mobilizou milhares de pessoas em jornadas, caravanas, estudos e lutas pelo Rio Tapajós e suas populações ribeirinhas.

E assim poderíamos ir contando inúmeras ações concretas em defesa do Oikos de Deus nesta vasta Amazônia. Infelizmente o inimigo tem poder diabólico de enganar e fazer muita gente acreditar que essas atividades não levam a nada, cooptando certas lideranças comunitárias que passam acreditar nos pequenos presentes enganadores que lhes aliciam e quebram a força da luta popular. Mesmo assim a esperança move aqueles que acreditam que todos juntos, ainda que “gente pequena e em muitos lugares pequenos, fazendo coisas pequenas mudarão a face da Amazônia”.

 

Frei Francisco Paixão, OFM

Foto: Frei Miguel K.

Francisco de Assis e a habitação fraterna da Casa Comum

Foto: Frei Miguel K.

 

O desafio de falar sobre o Oikos franciscano é grande.  A proposta de texto que temos aqui é a de uma revisão sobre pontos da espiritualidade franciscana que nos inspirem no nosso viver na Casa Comum. Apresentamos alguns fragmentos do pensamento franciscano sobre Casa e habitação para olharmos Francisco enquanto habitante da Terra. Podemos assim nos perguntar: como pensar em uma casa estática para o itinerante e desapegado Francisco?

 O Santo de Assis, não quis se apropriar de nada e fez do seu claustro o mundo todo, conforme metaforizado no diálogo com a pobreza, escrito em “Sagrado Comércio”. Mas, antes da sua conversão, Francisco habitava uma casa, que aqui evoca mais do que um espaço localizado. A experiência da itinerância do residir é um aspecto que nos leva a pensar como Francisco de Assis pode aprender e ver a  inteireza desse sistema vivo em cada canto da Casa Comum. A palavra residência nos leva a pensar no campo onde se senta para aprender, um lar de onde se transmitem bons valores e, no residir franciscano, temos espaço largo para aprender a ver a Terra como Casa da Criação. 

A casa de Pedro Bernardone, a primeira casa de Francisco, tinha uma estrutura e um pensamento e, o pobrezinho logicamente, seria um dos herdeiros daquela casa. Francisco estava sendo preparado para seguir com o modo de pensamento da casa paterna. Os tempos em cárcere, quando capturado na batalha e feito prisioneiro, no período de um ano, em Perúgia, e depois no seu retorno a Assis na “prisão domiciliar” imposta pelo seu pai, foram para o Sol de Assis um momento de sofrimento e de reajuste de pensamento. Assim, Francisco foi adentrando mais e mais pela “Casa da Conversão” para reconstruir-se e renovar o Oikos de Deus.

 A conversão é uma mudança de mentalidade que gera novos hábitos. Reformar a casa interior repercute também no fazer. Leonardo Boff (2021), nos lembra, ao falar de Francisco como ícone da espiritualidade ecológica, que com o espírito do Irmão universal, podemos recriar nossa casa do nosso íntimo, por conseguinte, irradiando o bem viver no exterior da Casa Comum. Neste mesmo processo que hoje também se conclama para uma conversão ecológica, precisamos mudar nosso agir dentro da Casa Comum. Para tal fim, é certo que contamos com a divina inspiração que ajudou na mudança de mentalidade de Francisco e o fez perceber que a casa de Deus é toda a Criação.

 

Foto: Frei Andrei Anjos.

 

Francisco sabia sentir-se em casa. Tornou-se um amante das habitações simples, do viver nos bosques, e desse modo sentia toda a terra como sua casa e todos os seres como seus irmãos e irmãs. Concebia todo lugar com um oratório (rezava algumas vezes dizendo: … aqui e em todas as igrejas do mundo) e uma morada sua. O episódio da sua estadia de Francisco e seus companheiros no tugúrio de Rivotorto, é um louvor à sobriedade feliz daqueles que se fazem habitantes e não possuidores da Casa. Ouvimos que a cabana apertada de Rivotorto não fechava o coração de Francisco, porque seu amor, assim como sua fraternidade, era universal. Interessante notar como todas essas casas, ou lugares (choupana, igrejinha, montanha) onde o Santo passou tornaram-se lares de oração. O universal amor de Francisco e sua mística de cuidado são postos como paradigma da ecologia integral. A casa de Francisco é tão destacada por ser firmada na Boa Nova anunciada as criaturas e por uma “cordial inteligência” (BOFF, 2021).

Outros lugares foram destacados pelo seu cuidado e amor, entre eles a Casa-Igreja de Santa Maria dos Anjos. Também o monte Alverne que foi para ele lugar de oração e da manifestação da presença divina. Ao contemplar os lugares onde Francisco rezava e pregava, muitos suspiraram e puderam exclamar que ele soube bem escolher suas moradas. Em cada um desses lugares Francisco habitou inteiramente como casa presente na grande morada comum de todos os seres. Esses elementos da casa de Francisco expressam bem o conceito de sobriedade feliz da encíclica Laudato Si’.   

De acordo com Murray Bodo, o Santo de Assis alargou seu pensamento percebendo sobre Deus, percebido como “aquele que compartilha e vive com todas as criaturas”. Esse habitar de Deus, é fortemente sentido em Jesus que vem habitar entre nós. Da visão econômica dominadora, Francisco passa à economia do Amor, aprendendo que a economia divina é diferente. 

Se em nossas casas temos retratos, também podemos dizer que existem retratos na casa comum. O sol é uma radiante imagem de Deus. Assim, Francisco também, em cada retrato louvava o artífice de todas as criaturas. Na beleza dos seres, o santo louva o Belo por excelência. Foi ele quem dispersou bem os itens da casa comum. Afirmar que Deus habita em tudo que criou é uma afirmação correta, nós nos fazemos morada dele. E Cristo, o primeiro de todas as criaturas, fez da nossa Terra um lugar mais repleto de vida.  

Habitamos uma única terra, com espaços e culturas diferentes que são chamados à comunhão na diversidade. A itinerância de Francisco o possibilitou estabelecer morada em várias realidades e dialogar com elas. No mundo de hoje, onde em muitos lugares o individualismo e interesses puramente econômicos tornam-se portas fechadas para os clamores dos pobres e da Terra, muitos quantos que, encerrados em suas confortáveis e luxuosas salas, pensam serem loucas as falas de andarilhos às projeções sobre o futuro da Terra e sua necessária reconstrução. E os gritos desesperados vem de nossos irmãos dentro da casa, são como aquele Frade desesperado por comida no meio da noite. No entanto, nem todos são sensíveis como Francisco, que quebrou o jejum para cear com ele. Estão como que trancados nos fortes muros de Assis, sem contemplar os bosques e o cantar dos pássaros, e sem sofrer por isso.

A reflexão que partilhamos aqui, sobre a casa franciscana com uma habitação fraterna da Casa Comum, deve nos iluminar e instigar na busca de uma nova forma de viver no Planeta. O modo franciscano de existir nos inspira o cuidado com o lugar onde habitamos. Os ideais franciscanos constroem um modelo de vida reconstruído que louva e cuida dos dons dados por Deus. Habitar franciscanamente jamais será compatível com saquear, destruir e abandonar a Casa Comum. Que o simples modo de viver de Francisco nos ilumine na luta pela integridade da criação. 

 

Fábio Vasconcelos, OFM

Licenciado em Filosofia pela Faculdade Salesiana Dom Bosco (Manaus-AM) e acadêmico de Teologia no Instituto Teológico Franciscano (Petrópolis)

 

Referências

BODO, Murray.  Envolvido pelo Amor: a sabedoria de São Francisco para uma vida plena. Petrópolis: Vozes, 2021.
BOFF, Leonardo. O doloroso parto da Mãe Terra: uma sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amizade social. Petrópolis: Vozes, 2021.
boaventura

O Oikos de Deus e a Filosofia de São Boaventura

Ilustração: Fábio Vasconcelos

 

São Boaventura, um dos mais importantes filósofos franciscanos, usou duas imagens para descrever o Oikos de Deus: espelho e livro.  Como um espelho, esta casa reflete o poder, a sabedoria e a bondade da Trindade, precisamente pela maneira como as coisas se expressam. Boaventura também descreve a casa de Deus como um livro no qual o Autor (o Criador), a Trindade, brilha e é representado em três níveis de expressão: o  traço (vestígio), imagem e semelhança

A diferença nesses níveis de expressão reflete o grau de semelhança entre a criatura e o Criador, a cópia e o modelo, o Oikos e o seu autor.  O traço (ou vestígio) é o reflexo mais distante de Deus e é encontrado em todas as criaturas (os integrantes da casa).  Ou seja, cada grão de areia, cada estrela, cada minhoca, cada plantinha reflete a Trindade como sua origem (causa eficiente), sua razão de existência (causa formal) e o fim a que se destina (causa final). A imagem, entretanto, é encontrada apenas em seres intelectuais (humanos).  Reflete o fato de que a pessoa humana não se estrutura apenas à imagem da Trindade, mas, como imagem, é um receptáculo apto para o divino.  A pessoa humana está estruturada para expressar a Trindade de forma limitada e finita. Assim sendo, Boaventura ainda descreve os humanos conformados a Deus pela graça como semelhança, visto que, pela graça, são semelhantes a Deus.  

A casa de Deus com toda criação é uma teofania para Boaventura, uma expressão da glória de Deus.  Porque o mundo expressa a Palavra por meio da qual todas as coisas são feitas (João 1), cada criatura, membro da casa de Deus, é em si uma “pequena palavra”.  O Oikos de Deus, portanto, aparece como um livro que representa e descreve seu Criador.  Cada criatura é um aspecto da auto expressão de Deus no mundo e, uma vez que cada criatura tem seu fundamento na Palavra, cada uma está igualmente próxima de Deus (embora o modo de relacionamento seja diferente).  

Visto que a Palavra de Deus é expressa na variedade multifacetada da criação, Boaventura vê o Oikos de Deus como sacramental – um mundo simbólico cheio de sinais da presença do próprio Deus.  O mundo (a casa de Deus) é criado como um meio de auto-revelação de Deus para que, como um espelho possa nos levar a amar e louvar o Criador.  Nós, os humanos, somos então, criados para ler o livro da criação para que possamos conhecer o Autor da Vida.  O livro da criação, de acordo com Boaventura, foi concebido por Deus para ser o livro da sabedoria divina tornado visível para todos. No entanto, este livro se tornou ininteligível para os humanos por causa do pecado.  Como um livro escrito em uma língua estrangeira, a criação tornou-se ilegível porque a mente humana, nublada pelo pecado, ficou envolta em trevas.  Quando o pecado tornou este livro incompreensível, a Sabedoria, a Palavra, tornou-se carne, de modo que o livro escrito (a Palavra divina) foi escrito fora na humanidade de Jesus Cristo.  Na encarnação, o Verbo divino, fundamento de toda a realidade, apareceu no centro do Oikos de Deus.  O Verbo, que é a verdade de todas as coisas, se fez carne e se deu a conhecer na pessoa de Jesus Cristo.  Quem conhece a Cristo, portanto, conhece a verdade da realidade.  

Boaventura destaca Francisco como o exemplar místico de Cristo.  Boaventura percebeu a conexão entre o Oikos de Deus exemplar e a centralidade de Cristo na vida de Francisco de Assis.  Na biografia de Francisco, ele descreve o mundo (a casa de Deus) exemplar como deveria ser.  Francisco é aquele que viu a beleza divina nas coisas belas da criação porque viu essa beleza primeiro em Cristo, crucificado e glorificado na cruz.  Por meio de sua relação com Cristo, Francisco identificou toda e qualquer criatura como irmão e irmã, porque reconheceu que tinham a mesma fonte (ou bondade) primordial que ele.  Boaventura descreve essa capacidade de ver a realidade das coisas em relação a Deus como “contuição”.  Contuição é a consciência da presença de Deus junto com o objeto da própria criação, seja uma árvore, uma flor ou um pequenino ser. Francisco foi capaz de apreender as verdadeiras profundezas da criação porque entrou profundamente no Verbo encarnado.  Lá, no centro de seu ser, e agora, no centro da criação, ele descobriu a verdade de si mesmo e de toda a criação em Deus, a saber, que ele e a criação estavam juntos na jornada  para Deus.  

Por meio de sua relação com Cristo, Francisco experimentou uma transformação de consciência pela graça.  Sua consciência do mundo criado mudou.  O mundo criado não era mais um livro ilegível para ele;  antes, cada aspecto da criação falava a Francisco do amor de Deus revelado em Jesus Cristo.  Francisco foi capaz de ler as “palavras da criação” como o livro de Deus.  Tudo falava a ele do amor de Deus manifestado em Cristo, e ele fez de todas as coisas uma escada para subir e abraçar “aquele que é absolutamente desejável”. 

Através da vida de Francisco podemos apreciar o mistério de Jesus Cristo como o mistério do Verbo divino que se fez carne, pelo qual conhecemos a profundidade de toda a realidade.  Em uma pequena obra chamada “As Cinco Festas do Menino Jesus”, Boaventura descreveu como Jesus nasce em uma alma humana que é devota, humilde e dedicada a Deus.  Quando alguém encontra Jesus dentro de si mesmo, Boaventura diz, então pode-se encontrar Jesus nas estruturas do Oikos de Deus. A mesma ideia é expressa teologicamente em seus escritos.  Boaventura afirma consistentemente que Cristo pertence à própria estrutura da realidade – como Palavra, à realidade de Deus;  como Verbo encarnado, à realidade do Oikos de Deus.  É Cristo quem revela ao mundo seu próprio significado.  

Visto que a criação é um símbolo vasto no qual Deus fala o mistério divino naquilo que não é divino, a criação (especialmente os humanos) mantêm uma relação “congruente” com a Palavra.  Porque a criação é a “palavra expressa” da Palavra divina, ela é dirigida em seu âmago para a realização e completude em Deus.  Mas como a criação alcançará seu objetivo?  Para Boaventura, a meta é alcançada por meio da pessoa humana que, como Francisco, se conforma com Deus pela graça.  Tal pessoa reconhece os sinais divinos da criação e oferece a Deus louvor e ações de graças.  A palavra “pessoa” está relacionada com o latim “per-sonare”, que significa “soar”. Ser uma pessoa não se baseia no que fazemos, mas em quem somos em relação a Deus e aos outros.  instrumento de alteridade pelo qual o outro “soa” na própria vida. Na pessoa de Jesus Cristo, Deus irradiou-se ao longo de sua vida, em suas palavras e ações e, finalmente, em seu ato de amor na cruz. 

Francisco também foi  uma pessoa verdadeira porque, como Cristo, o amor de Deus irradiou por meio dele, pelo que se tornou irmão de toda a criação. Daí Boaventura nos lembra uma grande responsabilidade vivendo no Oikos de Deus: somente a pessoa humana tem a liberdade de trazer paz e reconciliação dentro desta casa, porque somente a pessoa humana tem a capacidade de amar  em união com Deus. O destino do Oikos de Deus, portanto, depende de como nós. Amemos.

 

Irmã Ilia Delio, O.S.F. 

Membro da Congregação das Irmãs Franciscanas de Washington D.C. 

 

Texto originalmente publicado em Inglês no segundo volume da série “A herança franciscana” da Conferência dos Frades Menores para língua inglesa.

Tradução: Frei Erlison Campos, OFM

Foto: Maribeth Joeright.

A Casa-Comunidade: uma tenda de Deus na Amazônia

Foto: Arquivo Custodial

Dando sequências nas reflexões franciscanas para o Tempo da Criação 2021, apresentamos a abordagem de Frei Gregório Joeright, ofm sobre o tema principal do “Oikos” à luz das Sagradas Escrituras e da vida fraterna dos Frades Menores.

Acompanhe conosco a reflexão proposta pelo autor:

TEMPO DA CRIAÇÃO é a celebração de todos os cristãos de todos os continentes diante de tantas crises que abalaram o mundo e da necessidade de curar as relações de cuidado e de fraternidade com a criação e uns com os outros. Os cristãos do mundo inteiro vão se unir em oração e reflexão pedindo um tempo de restauração e esperança para que todos possam se comprometer e agir em prol da nossa casa comum.

Eu gostaria de refletir junto com vocês sobre a “Casa” como lugar de fé, de fraternidade e solidariedade a partir da Palavra de Deus e da nossa resposta diante dos apelos de Deus. O tema deste ano é “Uma casa para todos? Renovando o Oikos de Deus”. “Oikos” é uma palavra grega que significa “casa” que para nós, lembra a nossa própria casa, a casa-comunidade e nossa casa comum, o planeta Terra.

Amazônia, um lar encantador para os Frades Menores

Nós, como frades menores, damos muito valor à casa, não somente como residência, mas principalmente como lugar de viver a fraternidade e a missão. Esta tradição vem de muitos anos e quero citar um frade franciscano que vivia aqui em Monte Alegre nos anos 30, chamado Frei Ricardo*. Na crônica da fraternidade no ano de 1937, ele escreveu assim: “Aqui na casa de Monte Alegre estão dois; quando um sai, fica só um. Assim foi até agora. Mas então, ficou só um na fraternidade de Monte Alegre, pois o Frei Ludovico* viajou para o sul. Choram monte e vale, onde ele passou tantas vezes. Todos gostavam de Frei Ludovico. Por isso a tristeza foi grande. A Amazônia, porém, não solta facilmente alguém que ela uma vez atraiu. Mas, se alguém virou as costas, a Amazônia entende atiçar a saudade no peito do infiel. Assim, também a saudade vai trazer o Frei Ludovico de volta a Monte Alegre, para ele trabalhar com coração alegre no interesse do evangelho”. Essa citação do Frei Ricardo não é somente um belo testemunho da vida franciscana de fraternidade e missão, mas também, do amor e do encanto que a Amazônia tem.

Foto: Paróquia São Francisco, Monte Alegre (PA)

A Casa da Boa Notícia em São Lucas

Esse amor e encanto também esteve muito presente na vida dos primeiros cristãos que entendiam a casa como lugar da comunidade e, portanto, era uma casa comum onde viviam o amor, a solidariedade e a missão. A casa no evangelho de São Lucas tem uma importância fundamental para a vivência da fé: 

Maria, em casa, recebeu o anúncio que ela ia ser a mãe do Salvador e a este anúncio, ela respondeu: “Eis a serva do senhor, faça-se em mim segundo tua palavra” (Lc 1,38). Maria é a tenda onde Deus fixou sua morada. A comunidade, que escuta a palavra do Senhor e diz sim como Maria, se torna o lugar da habitação do Filho de Deus, pois é a casa-comunidade que deve ser a tenda onde Deus habita.

Logo depois, Maria partiu para visitar Isabel, entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel. Ela, cheia do Espírito Santo, proclamou: “Bem-aventurada aquela que acreditou porque vai acontecer o que o senhor lhe prometeu” (Lc 1, 45). Isabel, tenda do Espírito Santo, se tornou sinal da comunidade que, cheia do Espírito Santo, deve ser o lugar onde as promessas de Deus se realizam.

Maria e José levaram Jesus a Jerusalém e Jesus ficou no templo conversando com os doutores da lei. Maria, aflita, perguntou porque Jesus fez aquilo com os pais e ele respondeu: “Por que me procuravam, não sabiam que eu devo estar na casa do Pai” (Lc 2,49). A comunidade, que é a tenda de Deus, não é somente aqui, pois Jesus lembra que é preciso estar na casa do Pai. É a casa-comunidade que deve almejar a tenda do Pai, isto é o Reino de Deus.

Jesus envia em missão os discípulos como ovelhas no meio de lobos e lembra: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos” (Lc 10,2). O envio é para as casas para desejar a paz e anunciar o evangelho. Na casa eles devem partilhar o pão: “comam e bebam do que tiverem” (Lc 10,7). A comunidade se torna a tenda de onde os missionários do Reino vão sair para anunciar o evangelho. É para as casas que eles vão, pois é lá onde a mensagem da paz é anunciada e é nesta tenda onde acontece a partilha do pão na mesa do Senhor.

Estas citações mostram que, para São Lucas, a casa não é somente o lugar da comunidade, mas também, pela vivência da palavra, é o lugar onde Deus habita. Como isto é importante para nós. A nossa própria casa é o lugar da família e é o lugar onde Deus deve habitar pela vivência do amor, do perdão, da ternura e da compreensão. Nossa comunidade também é nossa casa, o lugar onde Deus habita pela fé, partilha e solidariedade. Mas também, lembramos de uma outra casa, a grande casa da criação de Deus, a natureza, o céu, a terra, as águas, as plantas e animais. Aqui, na nossa casa da Amazônia, somos abençoados, pois é um lugar de tanta beleza e encanto, mas ela também é uma região mutilada pela ganância, violência e desrespeito à vida. Por isso, a Amazônia tem que ser o lugar onde Deus habita e como Frei Ricardo escreveu, sabemos que a Amazônia não solta facilmente alguém que ela atraiu. É Deus que atiça no peito de cada um não somente o amor por esta terra, mas também o desejo de fazer deste chão o lugar onde Deus possa habitar: Pelo respeito à vida e toda a criação; Pela solidariedade entre as pessoas e pela partilha que se vive nesta terra. Partilha e amor que vence a ganância e destruição da natureza em nome do progresso; Pela nossa missão de anunciar a palavra e construir o reino.

Foto: Maribeth Joeright.

Cuidar da Casa da Criação é viver o Santo Evangelho

Enquanto refletimos sobre o TEMPO DA CRIAÇÃO, não podemos esquecer o exemplo de São Francisco de Assis que louvava a Deus por toda a criação e por todas as criaturas. É este espírito de São Francisco que precisa penetrar no coração de cada um para que possamos preservar e respeitar toda a criação nesta nossa casa da Amazônia, abençoada por Deus. Como Jesus, São Francisco enviava seus irmãos em missão com toda a simplicidade para falar sobre o Reino de Deus, anunciando a paz e a remissão dos pecados. Precisamos ser missionários para anunciar a mensagem do Reino de Deus para todo o povo desta terra e, ao mesmo tempo, pedir perdão pelos nossos pecados contra a Casa Comum. Seguindo o exemplo de São Francisco queremos respeitar e preservar a Amazônia, nossa tenda, e que esta tenda seja a casa onde Deus possa habitar e de onde nós saímos em missão para defender a vida e realizar nossa missão de viver a verdadeira fraternidade com todas as criaturas.

Sobre os frades citados

* Frei Ricardo Havertz, nasceu em 13 de dezembro de 1899 e morreu no dia 08 de fevereiro de 1980 na cidade de Óbidos aos 80 anos de idade. Morou em Monte Alegre de 1935 até 1939.

* Frei Ludovico Smolka, nasceu em 03 de agosto de 1906 e morreu em 28 de maio de 1948, em Santarém de tétano aos 41 anos de idade. Ele teve duas passagens em Monte Alegre. Em 1935 morou em Monte Alegre junto com Frei Ricardo, mas foi transferido de Monte Alegre em 09 de junho de 1937 para o sul, por motivos de saúde. Voltou para Monte Alegre em janeiro de 1945 e morou junto com Frei Henrique Broeker. Frei Henrique foi transferido de Monte Alegre para João Pessoa em janeiro de 1948 e, no mesmo período, Frei Ludovico foi transferido para Óbidos.

Frei Gregório Joeright, OFM

Pároco da Paróquia de São Francisco – Monte Alegre (PA)

 

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Reflexões amazônicas para o Tempo da Criação 2021: Uma maloca para todos?

Casa de palafita na várzea amazônica. Foto: Flávio Lorrane Clementino.

 

Somos convidados a receber esta pergunta de maneira surpresa: “UMA CASA PARA TODOS?” Em muitos lugares do mundo, seja por questões culturais ou por outras circunstâncias, famílias inteiras vivem na mesma casa (malocas grandes ou pequenos barracos). Eu, até minha adolescência, vivi numa mesma casa com meus familiares, que a saber eram: pai, mãe, três irmãos, avó, avô, três tios, duas tias e bisavô. Mas, “Todos na mesma Casa?”, você deve estar se perguntando, e agora, com maior surpresa. Sim, uma casa para todos! O meu exemplo é o exemplo de muitos ribeirinhos, quilombolas, povos indígenas e gente da periferia amazônica. E isto não é uma exclusivamente desta região. Uma única casa é o que se tem para oferecer para três ou quatro gerações da mesma família.

Quando Deus criou o seu “Oikos” (Gn 1:1 – 2:4) o fez de maneira tão perfeita, que Ele mesmo viu tudo que havia feito e tudo era muito bom (Gn 1: 31). Tudo era tão perfeito que todas as criaturas tinham seu lugar e todas podiam conviver como membros de uma mesma casa. Uma mesma casa, não somente para três ou quatro gerações, mas para todas as gerações, para todos os povos e culturas, para todos os seres. Pois, todos, criaturas que somos, pertencemos a mesma casa e esta é a casa (oikos) de Deus.

Do dia 1º de setembro a 4 de outubro, cristãos no mundo todo celebram o belo dom da Criação. Esta celebração tem seu início em 1989, quando o Patriarca Ecumênico Dimitrios I proclamou o 1º de setembro como o Dia de Oração pela Criação para os Ortodoxos. Posteriormente, o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) estendeu a celebração até 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis e, em 2015, o Papa Francisco oficializou o “Tempo da Criação” para a Igreja Católica Romana.

A cada ano, o Comitê Diretivo Ecumênico sugere um tema e fornece recursos que orientam a celebração do Tempo da Criação. Este ano o tema é “Uma casa para todos? Renovando o Oikos de Deus”. A primeira parte deste tema é uma pergunta e pode nos sugerir uma reflexão, ou um susto como tentei mostrar no início deste texto. A segunda parte traz a palavra “Oikos” que é uma palavra grega que significa “lar” ou “casa”. O tema deste ano então, quer refletir como pede-se renovar a casa de Deus que é um lugar para todos e todas.

 

Várzea da Região de Santarém. Foto: Flávio Lorrane Clementino.

 

O Tempo da Criação é uma oportunidade para os cristãos, ou não-cristãos, rezar e refletir sobre as maneiras de viver e conviver com toda a criação. É um tempo forte de esperança onde pode-se sonhar com um mundo melhor para cada ser vivente e para a casa comum. A Custódia São Benedito da Amazônia junta-se nesta celebração e realiza durante este período a publicação de uma série de artigos, produzidos pelos próprios frades, que refletem e rezam, de maneira especial, à luz da realidade amazônica.

Os frades escrevem sobre as habitações na Amazônia, sobre as Tendas e os Tapiris (Ocas, Malocas, Palafitas), sobre os povos e criaturas, sobre o olhar franciscano e sobre o que pode ser feito de concreto na renovação do Oikos de Deus. Toda segunda feira, você acompanha uma reflexão através do nosso site e demais redes sociais. Some-se à Custódia São Benedito da Amazônia e juntos podemos achar caminhos para a renovação da casa Deus, nossa Casa Comum.

Falando em Casa Comum, deixa-me retornar ao meu exemplo de quando eu era criança. Nossa pequena casa de palha, que era quase que totalmente reformada com novas palhas a cada ano, nunca perdia a essência de ser uma casa para todos. Além de nós, gatos, cachorros, galinhas, hortas e pomares com verduras, legumes e frutas de onde tirávamos o sustento para sobrevivermos, eram partes fundamentais naquele Oikos. A renovação do Oikos dava-se durante o tempo de cheia, quando a terra desaparecia e nossos canteiros de legumes e verduras eram suspensos. Dava trabalho, mas ninguém reclamava. Meu bisavô dizia que fazia parte do processo de renovação ou purificação da terra. Quando a água baixava começávamos tudo de novo. Trabalhávamos respeitando o ciclo natural e a terra nos sustentava favorecendo-nos o pão de cada dia. Tudo numa mesma casa, num mesmo ambiente, num mesmo Kairós. Mas e agora, quanto a nós, o que podemos fazer para renovar o Oikos de Deus? Afinal, somos todos moradores de uma mesma casa! Uma casa para todos? – Sim!

Foto: Arquivo Custodial/ Projeto Omolu.

Frei Erlison Campos, OFM

Graduado em Letras pela Universidade Federal do Pará (UFPA, Campus Santarém-PA). Licenciado em Filosofia pela Faculdade Salesiana Dom Bosco ( FSDB, Manaus-AM). Acadêmico de Teologia na Catholic Theological Union ( CTU, Chicago-IL).