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2 de novembro e o modo amazônida de festejar a iluminação 

Foto: Andrei Anjos, OFM

 

 

Para alguém que desconhece a realidade do povo amazônida, o título deste texto pode parecer estranho ou até mesmo mórbido, afinal, 2 de novembro é dia dos fiéis defuntos, ou simplesmente dia de finados. No entanto, quem conhece as singularidades da Amazônia, sabe que o 2 de novembro é também dia de alegria e reencontro. 

A dificuldade de encontrar trabalho e estudo nas comunidades tradicionais da nossa região, obrigou que muitas pessoas deixassem seu lugar de origem para ir buscar melhores condições de vida nas cidades. Falo com propriedade de quem nasceu e viveu até os seus cinco anos em uma comunidade quilombola distante 40 minutos da cidade de Santarém, e que precisou muito cedo deixar suas raízes e deslocar-se para o núcleo urbano do Município. Milton Nascimento em sua canção “encontro e despedidas” escreveu: “melhor ainda é poder voltar quando quero”. A música faz uma referência a migração, (deslocamento populacional de um lugar para o outro), algo muito comum em nossa região, mas, diferente da estação de trem da composição de Milton, quem dita as idas e vindas na Amazônia, são as embarcações, grandes ou pequenas, responsáveis em levar e trazer aquela “gente que chega pra ficar” e também aquela “gente que vai para nunca mais”. Todavia, para quem adquiriu obrigações na cidade, “poder voltar quando quer”, para o seu interior, não é algo tão simples. 

Dessa forma, o 2 de novembro, tornou-se uma oportunidade de regresso. É no “Dia de Finados” que muitas pessoas deixam suas casas, na cidade, para poder prestar as homenagens aos entes queridos enterrados nos pequenos cemitérios (campos santos) do interior. É o dia “da iluminação”, não o dia da iluminação (urbana e elétrica) de Thomaz Edson, que em 21 de outubro de 1879 criou a lâmpada, mas a iluminação (da fé) daqueles que, quando vivos, fizeram parte da nossa história, e que de uma forma ou de outra marcaram nossa vida. Meu avô, como bom caboclo que era, costumava no dia da iluminação comprar muitas caixas de velas, e sobre um pedaço de madeira acendê-las às 18h, lembro-me que ficávamos todos ali, rezando e olhando as velas queimar. Cada vela acendida representava alguém, pronunciávamos os nomes deles, e assim podíamos lembrar com clareza o rosto, a voz e os trejeitos daqueles que já haviam partido, que apesar da ausência física, ainda acham-se ali, pois, como disse o escritor Antoine de Saint-Exupéry, em sua obra “O pequeno Príncipe”, “aqueles que passam por nós não vão sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”. 

Depois de rezar confraternizávamos comendo e contando histórias, hoje meu avô não está mais entre nós, mas minha avó ainda mantém viva a tradição, e para ele acendemos as velas que um dia ele próprio nos ensinou a acender. Não era nada tão bonito e bem elaborado quanto na cultura mexicana, que tornou o 2 de novembro a comemoração mais popular daquele país, fato possível de observar através da animação infantil “Viva, a vida é uma festa”, que mostra entre outras coisas a exuberância do “día de los muertos”. Para os mexicanos os esqueletos decorados, as comidas, a música e a devoção ajudam os vivos a lidar com a morte de uma forma menos triste, mas acredito que de maneira inconsciente, também tornamos o nosso 2 de novembro um momento de alegria, pois o que falar dos abraços, conversas e risadas ao encontrar nos cemitérios pessoas queridas que possivelmente a rotina nos afastou, e que por ali estavam para visitar seus amores que já partiram. É óbvio, ninguém vai a um cemitério para se divertir, mas é próprio do brasileiro a alegria e como dizia o poeta: “é melhor ser alegre que ser triste”.   

 

Foto: Andrei Anjos, OFM

 

Para quem sai da cidade para o interior há ainda um bônus, pois novembro é a época de fartura, tempo para se alimentar dessa “boia sortida”, e uma oportunidade perfeita para revigorar o corpo, o humor e nossa ligação com nossos familiares e amigos que não víamos há algum tempo. Para ilustrar o que descrevo, perguntei a uma amiga, que há 8 anos saiu da comunidade Guajará, região de rios em Santarém-PA, para vir trabalhar na cidade e que todos os anos volta ao seu interior para passar o dia da iluminação, o que significa para ela este dia, e recebi como resposta: 

“Eu vou todos os anos, se Deus quiser esse ano irei de novo, tenho muitos familiares enterrados no cemitério de lá. Às vezes eu pego esculhambação (sermão) das minhas irmãs, porque demoro muito pra voltar à comunidade, mas eu não tenho tempo pra tá voltando sempre. Quando vejo tanta gente, fico admirada porque as crianças de lá estão crescidas, e quase nem reconheço mais. Fico sabendo de tanta fofoca. A gente se atualiza de tudo: o que tá acontecendo na comunidade, quem se casou, quem separou, quem foi embora, quem ficou, quem cresceu, quem diminuiu, é uma farra só. Encontro minhas irmãs, sobrinhos, meus amigos. 2 de novembro é uma festa”. 

Como se vê, o dia da iluminação não é apenas para os mortos, mas também para aqueles que vivem. Pois, neste dia, nós que ainda aqui estamos nos iluminamos com a iluminação que só o abraço, o sorriso, o contato e o reencontro são capazes de proporcionar.

 

Eduardo Campos

Jufrista. Membro do Grupo de Teatro Franciscano Kabi-Kaxi. Graduado em História e especialista em Literatura Africana pela Universidade Federal do Oeste do Pará.

 

Encenação de "Vamos minha gente". Foto: Acervo do Grupo Kabi Kaxi.

Grupo de teatro Kabi Kaxi lança documentário sobre peça franciscana

Encenação de “Vamos minha gente”. Foto: Acervo do Grupo Kabi Kaxi.

 

A peça teatral  intitulada “Vamos minha gente” é originalmente italiana mas foi traduzida para o português e apropriada para a linguagem amazônica.  “Vamos minha gente” é encenada pelo Grupo de teatro Franciscano Kabi Kaxi desde 2018 na cidade de Santarém e cidades vizinhas no oeste paraense. A dramaturgia de inspiração franciscana ganhou o gosto popular e no último dia 28 de setembro chegou às redes sociais através de um documentário sobre a montagem da peça. Através de uma entrevista virtual para a assessoria de comunicação da Custódia São Benedito da Amazônia, Marcos Rodrigo, diretor do grupo, contou alguns detalhes.

Figurino de estilo medieval usado na produção. Foto: Acervo Kabi Kaxi.

O Documentário 

O documentário sobre a peça teatral “Vamos minha gente” foi possível depois que o grupo Kabi-Kaxi foi contemplado com o recurso proveniente da Lei Federal nº14.017, de 29 de junho de 2020, disponibilizado pela Secretaria de Estado de Cultura do Estado do Pará.

Segundo o diretor da peça, Marcos Rodrigo, o projeto foi feito para substituir as apresentações que não podem ser realizadas por causa da pandemia . “A ideia do documentário surgiu depois de sermos contemplados com a Lei Aldir Blanc na modalidade de teatro. Como não podíamos nos apresentar devido a pandemia, então, tínhamos que produzir um material que substituísse nesse primeiro momento nossa apresentação para executarmos o projeto que ganhamos. Em uma reunião com a equipe, nós decidimos contar um pouco a história do surgimento desta peça em forma de documentário. O documentário não é de uma apresentação da peça, mas sim, uma forma de contar como a “Vamos minha gente” surgiu e foi construída”, contou o diretor.

Palco montado para a apresentação. Foto: Acervo do Grupo Kabi Kaxi.

A Peça de Teatro “Vamos minha gente”

A peça conta a história de São Francisco de acordo com a ótica do pai dele, Pedro Bernardone, que não aceitava que o filho fosse aquele homem Santo. De acordo com o Marcos Rodrigo, depois que estavam com a tradução do projeto em mão, eles partiram para campo em busca de elenco, equipe técnica, produção, cenário, etc. “O primeiro ponto foi escolher alguns personagens, especialmente aqueles que marcam o enredo do espetáculo. Escolhemos o Eduardo Campos para o papel de Pedro Bernardone (pai de São Francisco) e a Edina que faz a personagem da mendiga. Estes dois eram fundamentais que dessem certo. Tivemos o apoio do Juliano que nos ajudou com algumas oficinas de teatro e com a ajuda e dedicação de todos, deu tudo certo nas escolhas desses atores. No decorrer do tempo, fomos apenas encaixando as demais personagens”. Relembrou o Rodrigo.

Mas os trabalhos estavam apenas começando. Conforme nos contou o diretor do projeto, antes da peça ser apresentada pela primeira vez, muita coisa precisou ser feita. Oficinas, ensaios, adaptação da linguagem, cenário, patrocínio, enfim, tudo precisou ser pensado e programado antes do grande dia.

Dia 20 de dezembro de 2018, foi realizada a primeira apresentação da peça na comunidade de Sant´Ana. Os convites foram aparecendo, e a peça foi apresentada em outras cidades paraenses. A última vez que o grupo se apresentou foi em janeiro de 2020, na comunidade São Paulo Apóstolo. Com a pandemia e os trabalhos foram interrompidos deixando uma equipe de 35 atores e 15 técnicos sem poder fazer o que mais gostam: Teatro. 

Apesar do sucesso, o diretor nos conta que o grupo tem encontrado dificuldade para continuar. A maior dificuldade para manter a peça, segundo Marcos Rodrigo, é a questão financeira, porque a cada espetáculo é gerado um custo. “O transporte, o manejo dos equipamentos são custos que temos todas as vezes que nos apresentamos. Então, o que mais dificulta para nós é que não possuímos um transporte e acaba que em cada lugar que vamos nos apresentar temos que alugar o ônibus para levar as pessoas e uma outra condução para levar os equipamentos e isso sai pesado financeiramente e acaba sendo a nossa maior dificuldade para manter a peça.” – Ressaltou. 

A maior parceira do grupo tem sido a Custódia São Benedito da Amazônia. Alguns frades da Custódia foram essenciais neste processo. Frei Paixão, por exemplo, foi quem conseguiu com o Padre Graciano Cirina (in memória) a tradução da peça do italiano para a língua portuguesa. Frei Ulysses Calvo também botou a “mão da massa” especialmente pensando e confeccionando o figurino dos personagens.

 

Quem é o Grupo Kabi Kaxi

O Grupo Kabi Kaxi é um grupo franciscano de teatro que evangeliza através da arte. O grupo já tem uma caminhada de 10 anos dentro da comunidade de Sant´Ana (Paróquia Cristo Libertador), em Santarém – Pará, mas a evangelização pelo Kabi Kaxi é feita no lugar que a missão é dada. Além do espetáculo “Vamos minha gente”, o grupo também apresenta a  “Paixão de Cristo”.

O grupo sempre procurou se inovar e não ficou apenas na arte cênica. Apresentações musicais e coreográficas fazem parte da atuação do Kabi Kabi. Além disso, hoje o grupo desenvolve trabalhos específicos com o público infantil, jovem, adulto e da terceira idade.

O nome do grupo foi dado por Frei Ulysses Calvo e o significado é em munduruku, Kabi – Sol e Kaxi – Lua. O nome deu muito certo e acabou sendo sonorizado nas comunidades por onde passam.

A intenção do grupo é voltar com todas as atividades assim que conseguirmos superar esta pandemia. “Estamos começando a articular nossa volta presencial. Os interessados em nos chamar para alguma apresentação é só entrar em contato pelas nossas mídias sociais que estamos atendendo por lá”, concluiu Marcos Rodrigo.

 

Sabrina Gonçalves

 

 

Assista ao documentário disponível no canal do Youtube do Grupo Kabi Kaxi.