Para alguém que desconhece a realidade do povo amazônida, o título deste texto pode parecer estranho ou até mesmo mórbido, afinal, 2 de novembro é dia dos fiéis defuntos, ou simplesmente dia de finados. No entanto, quem conhece as singularidades da Amazônia, sabe que o 2 de novembro é também dia de alegria e reencontro.
A dificuldade de encontrar trabalho e estudo nas comunidades tradicionais da nossa região, obrigou que muitas pessoas deixassem seu lugar de origem para ir buscar melhores condições de vida nas cidades. Falo com propriedade de quem nasceu e viveu até os seus cinco anos em uma comunidade quilombola distante 40 minutos da cidade de Santarém, e que precisou muito cedo deixar suas raízes e deslocar-se para o núcleo urbano do Município. Milton Nascimento em sua canção “encontro e despedidas” escreveu: “melhor ainda é poder voltar quando quero”. A música faz uma referência a migração, (deslocamento populacional de um lugar para o outro), algo muito comum em nossa região, mas, diferente da estação de trem da composição de Milton, quem dita as idas e vindas na Amazônia, são as embarcações, grandes ou pequenas, responsáveis em levar e trazer aquela “gente que chega pra ficar” e também aquela “gente que vai para nunca mais”. Todavia, para quem adquiriu obrigações na cidade, “poder voltar quando quer”, para o seu interior, não é algo tão simples.
Dessa forma, o 2 de novembro, tornou-se uma oportunidade de regresso. É no “Dia de Finados” que muitas pessoas deixam suas casas, na cidade, para poder prestar as homenagens aos entes queridos enterrados nos pequenos cemitérios (campos santos) do interior. É o dia “da iluminação”, não o dia da iluminação (urbana e elétrica) de Thomaz Edson, que em 21 de outubro de 1879 criou a lâmpada, mas a iluminação (da fé) daqueles que, quando vivos, fizeram parte da nossa história, e que de uma forma ou de outra marcaram nossa vida. Meu avô, como bom caboclo que era, costumava no dia da iluminação comprar muitas caixas de velas, e sobre um pedaço de madeira acendê-las às 18h, lembro-me que ficávamos todos ali, rezando e olhando as velas queimar. Cada vela acendida representava alguém, pronunciávamos os nomes deles, e assim podíamos lembrar com clareza o rosto, a voz e os trejeitos daqueles que já haviam partido, que apesar da ausência física, ainda acham-se ali, pois, como disse o escritor Antoine de Saint-Exupéry, em sua obra “O pequeno Príncipe”, “aqueles que passam por nós não vão sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”.
Depois de rezar confraternizávamos comendo e contando histórias, hoje meu avô não está mais entre nós, mas minha avó ainda mantém viva a tradição, e para ele acendemos as velas que um dia ele próprio nos ensinou a acender. Não era nada tão bonito e bem elaborado quanto na cultura mexicana, que tornou o 2 de novembro a comemoração mais popular daquele país, fato possível de observar através da animação infantil “Viva, a vida é uma festa”, que mostra entre outras coisas a exuberância do “día de los muertos”. Para os mexicanos os esqueletos decorados, as comidas, a música e a devoção ajudam os vivos a lidar com a morte de uma forma menos triste, mas acredito que de maneira inconsciente, também tornamos o nosso 2 de novembro um momento de alegria, pois o que falar dos abraços, conversas e risadas ao encontrar nos cemitérios pessoas queridas que possivelmente a rotina nos afastou, e que por ali estavam para visitar seus amores que já partiram. É óbvio, ninguém vai a um cemitério para se divertir, mas é próprio do brasileiro a alegria e como dizia o poeta: “é melhor ser alegre que ser triste”.
Para quem sai da cidade para o interior há ainda um bônus, pois novembro é a época de fartura, tempo para se alimentar dessa “boia sortida”, e uma oportunidade perfeita para revigorar o corpo, o humor e nossa ligação com nossos familiares e amigos que não víamos há algum tempo. Para ilustrar o que descrevo, perguntei a uma amiga, que há 8 anos saiu da comunidade Guajará, região de rios em Santarém-PA, para vir trabalhar na cidade e que todos os anos volta ao seu interior para passar o dia da iluminação, o que significa para ela este dia, e recebi como resposta:
“Eu vou todos os anos, se Deus quiser esse ano irei de novo, tenho muitos familiares enterrados no cemitério de lá. Às vezes eu pego esculhambação (sermão) das minhas irmãs, porque demoro muito pra voltar à comunidade, mas eu não tenho tempo pra tá voltando sempre. Quando vejo tanta gente, fico admirada porque as crianças de lá estão crescidas, e quase nem reconheço mais. Fico sabendo de tanta fofoca. A gente se atualiza de tudo: o que tá acontecendo na comunidade, quem se casou, quem separou, quem foi embora, quem ficou, quem cresceu, quem diminuiu, é uma farra só. Encontro minhas irmãs, sobrinhos, meus amigos. 2 de novembro é uma festa”.
Como se vê, o dia da iluminação não é apenas para os mortos, mas também para aqueles que vivem. Pois, neste dia, nós que ainda aqui estamos nos iluminamos com a iluminação que só o abraço, o sorriso, o contato e o reencontro são capazes de proporcionar.
Eduardo Campos
Jufrista. Membro do Grupo de Teatro Franciscano Kabi-Kaxi. Graduado em História e especialista em Literatura Africana pela Universidade Federal do Oeste do Pará.