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O que significa celebrar a Imaculada Conceição de Maria?

Foto: Arquivo da Custódia.

 

“Nossos passos se tornem memória”: Contexto histórico e desenvolvimento da solenidade da Imaculada Conceição 

No dia 8 de dezembro, e dentro do Tempo do Advento, celebra-se a Solenidade da Imaculada Conceição. É a festa do começo absoluto, como afirma Paulo VI, quando Deus, por pura iniciativa sua, e preparando a chegada do seu Filho, preservou a Virgem Maria de toda a mancha de pecado original, para que na plenitude da graça fosse digna mãe de seu Filho. A Igreja sempre venerou a santidade da Mãe de Deus com o seu coração inteiramente voltado para Deus. Desse modo, se observa Maria como a mulher “cheia de graça” (Lc 1,28), saudada pelo anjo, na Anunciação.

Foi em 1854, no dia 8 de dezembro, que o Papa Pio IX declarou verdade de fé a Conceição Imaculada de Maria, uma doutrina contida na Revelação Divina. Um processo que culminou com a definição do dogma se insere num contexto muito mais amplo e complexo, de acontecimentos que marcaram e transformaram todo o século XIX. O processo de definição do dogma foi influenciado por um conjunto de questões da qual a Igreja não podia ficar isenta, entre as quais, sobre a figura de Maria.

Neste ano de 2021, celebra-se 167 anos deste dogma. Com a bula “Ineffabilis Deus”, em 8 de dezembro de 1854, o Papa Pio IX declara a Imaculada Conceição como dogma. Na história da Igreja, há muito tempo a devoção à Imaculada Conceição ocupou lugar de destaque, anterior até mesmo à própria definição e proclamação do dogma.

Segundo o liturgista Frei José Ariovaldo da Silva, a raiz litúrgica da celebração da Imaculada Conceição, encontra-se numa intuição sobrenatural que parte da simplicidade do povo. Vê-se então um caso em que a piedade popular influi na religiosidade institucional, gerando a celebração litúrgica e o referido dogma, mas esta festa deve sua origem a várias fontes.

Sobre a história do dogma, lê-se que a doutrina da santidade original de Maria se formou inicialmente no Oriente pelo século VI ou VII e dali passou para o Ocidente, junto com a festa litúrgica que se introduziu primeiro na Itália inferior, então bizantina, daí passando à Inglaterra e à França. Nestes países, no entanto, desde o começo denominou-se como festa da Imaculada Conceição. Antes ainda, fontes antigas destacam que no século III a literatura do período inspirava muitas festas marianas, como por exemplo a da Imaculada Conceição e a Natividade da Virgem Maria.

 

Foto: Caroline Diniz.

 

Foi no século XII que apareceu o primeiro tratado sobre a concepção de Maria, escrito pelo Monge Eadmer Canterbury (1128); e foi no século XIII que surgiu a grande discussão teológica. Santo Tomás de Aquino, assim como fizera São Bernardo de Claraval no século anterior, opôs-se a princípio a este privilégio mariano por razão da universalidade do pecado original e da redenção. Guilherme de Ware e João Duns Escoto, ao contrário, estavam a favor; e foi Duns Escoto, também conhecido como “o doutor sútil”, quem encontrou o caminho da solução que depois se impôs como teologia e se incorporou na definição dogmática.

Segundo o Missal Romano, esta solenidade já era celebrada desde o século XI e se insere no contexto do Advento-Natal, unindo a espera messiânica e o retorno glorioso de Cristo com a admirável memória da Mãe. “Em tal sentido, este período litúrgico deve ser considerado tempo particularmente oportuno para o culto da Mãe do Senhor”.

Maria é toda santa, isenta de toda mancha de pecado pelo Espírito Santo como que plasmada e feita nova criatura. Já anunciada profeticamente, a Virgem Maria conceberá e dará à luz a um filho cujo nome será Emmanuel. A caráter de contexto, no século X, a celebração da Imaculada Conceição migra do Oriente, onde se celebrava no dia 09 de dezembro, para o Ocidente, ganhando aspecto devocional. Somente após 1854, quando se promulga o dogma – sobre isso veremos mais à frente -, esta solenidade estendeu-se para o calendário universal da Igreja.

A veneração litúrgica à mãe do Senhor, como também o seu percurso histórico, tem valor e significado, somente se for enraizada na Palavra de Deus e se for inserida harmoniosamente na celebração da história da Salvação. A Sacrossanctum Concilium restaura o lugar de Maria dentro da liturgia, a sua relação com o mistério pascal. “Em Maria se encontra o mais alto fruto da Redenção. Ela se apresenta como um membro da Igreja que caminha com o seu povo, como uma estrela que guia até o Salvador e Redentor”. Ao celebrarmos “os mistérios de Maria”, no decurso do Ano Litúrgico, celebramos os mistérios de Cristo. 

Segundo o livro “O jeito franciscano de celebrar” de Frei Alberto Beckhäuser, ofm, celebrando a Imaculada, recordarmos o Senhor que vem à terra para que toda a Igreja e a humanidade inteira possa realizar, não por privilégio, mas por graça, o que contempla em Maria. O Concílio Vaticano II recorda este dogma de fé e afirma que Maria foi “enriquecida desde o primeiro instante de sua concepção com o resplendor de uma santidade inteiramente singular”, devido a isso, “por ordem de Deus é saudada pelo anjo da Anunciação como cheia de graça”. Esta base bíblica encontra-se no Evangelho que se lê no dia da Solenidade da Imaculada Conceição e que se repete no quarto domingo do Advento, ano B, e no dia 25 de março, dia da Anunciação do Senhor.

 

Foto: Arquivo da Custódia.

 

Celebrar a Imaculada em tempo de Advento

O tempo litúrgico mais próprio para a veneração de Maria é o Tempo do Advento. É o que afirma o papa Paulo VI na Encíclica Marialis Cultus (n. 4), sobre o culto à Virgem Maria: o Advento deve ser considerado como um tempo particularmente adequado para o culto da Mãe do Senhor. 

A Imaculada Conceição no Advento revela uma radical preparação para acolher o Salvador que vem. Nesse mesmo período a Virgem é recordada muito especialmente nos dias de expectação (de 17 a 24 de dezembro) e no último domingo do Advento. O mistério pascal mostra o Salvador que nos vem como cordeiro sem mancha, que tira o pecado do mundo. Ele é o Sol da justiça, Cristo nosso Deus é o bálsamo para a humanidade ferida pelo pecado. 

A Solenidade da Imaculada Conceição ocupa um lugar privilegiado na vivência da liturgia durante o Ano Litúrgico. Deus realizou maravilhas em Maria. Ela é modelo de realização do mistério de Cristo e é intercessora junto ao seu Filho. Na celebração desta solenidade, Imaculada revela o mistério de Cristo e conduz a Ele. Assim, esta festa é sempre pascal. Vale ressaltar que no Brasil, por determinação da CNBB e autorização da Santa Sé, a Solenidade da Imaculada Conceição é sempre celebrada no dia 8 de dezembro, mesmo que este dia seja um domingo do Tempo do Advento.

A Igreja dá graças ao Pai, por Cristo, no Espírito Santo, pelas maravilhas e graças realizadas em Maria, Mãe de Deus. Nela a Igreja contempla e vive a vocação, a missão e o destino de cada ser humano. Portanto, o dia da Imaculada se celebra como festa de toda a Igreja e da humanidade, porque no dom gratuito que Deus faz à Maria, Ele abençoa a todos nós. Ela é o feliz exórdio da Igreja sem mancha e sem ruga, e nela foi dado início a Igreja, esposa de Cristo, resplandecente de beleza e santidade. Ao celebrarmos com Maria Imaculada, celebramos a ação de Deus que a fim de preparar para o seu Filho uma mãe que fosse digna Dele, preservou Maria do pecado original e a enriqueceu com a plenitude de sua graça, pois por ela “nos veio o sol da justiça, o Cristo, nosso Deus.

Frei Augusto Luiz Gabriel, OFM

Frade da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil. Acadêmico de Teologia do ITF, Petrópolis – RJ. 

 


Referências

BECKHÄUSER, Alberto. Viver em Cristo. Espiritualidade do ano litúrgico. Petrópolis: Vozes, 1992. ______. O jeito franciscano de celebrar: guia da celebração litúrgica franciscana. Petrópolis: Vozes, 2018.

SILVA, Frei José Ariovaldo da. A liturgia que celebramos na Festa da Imaculada. In: COSTA, Sandro Roberto da (org.). Imaculada: Maria do povo, Maria de Deus. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

Foto: Mara Lobato

Região 2 de Pastoral celebra nos Festejos de Nossa Senhora da Conceição

Imagem: Capturas de tela do Canal da TV Encontro

Dentro dos dias de festejo em honra à Nossa Senhora da Conceição 2021, a Região 2 da Pastoral (Paróquia Cristo Libertador e Área Pastoral São Lucas) celebrou na noite do dia 29 de novembro. A celebração eucarística, realizada na catedral metropolitana de Santarém (PA),  foi presidida pelo vigário da paróquia Cristo Libertador, Frei Elder Almeida, OFM, e contou com a presença do administrador paroquial, Frei Rômulo Canto, OFM, do Vigário Frei Amarildo Mascarenhas, OFM, e do Frei Pedro Miranda, OFM, vigário das Paróquias do Santíssimo e São Sebastião. Além dos Franciscanos responsáveis por uma das paróquias da região, estavam presentes alguns membros do clero diocesano, Pe. Luiz Augusto, vigário da Área São Lucas, e os padres que auxiliam na Catedral. Os cantos, leituras e outros serviços foram assumidos pelas lideranças da Região 2. 

As celebrações com as diversas regiões pastorais que compõem a Arquidiocese de Santarém permitem que as comunidades se encontrem para fazer parte deste momento festivo da igreja local. Quem não esteve presencialmente na catedral, acompanhou a celebração pelos meios de comunicação social arquidiocesanos.

Na homilia, Frei Elder recordou que Maria é agraciada e amada por Deus, pois assim foi saudada a Mãe do Senhor no diálogo com o anjo sobre a encarnação. O nome Maria significa pessoa amada por Deus. Deus viu em Maria a Graça e Coragem de alguém que diz sim ao seu projeto. Os cristãos dos primeiros séculos, especialmente no século II, evocam a imagem de Maria como mulher ética. Maria responde com bondade para a salvação de toda a humanidade. A maneira ética de Maria é vista frente aos desafios sociais e culturais de sua época. Maria é aquela que permanece fiel na ética do sim. 

Diante da realidade pandêmica, devemos defender a vida como devotos de Nossa Senhora, afirmou o frade. O sim de Maria, de maneira ética, é a sua atitude de defesa da vida. E nós, face aos desafios do nosso tempo, somos chamados a ser concretos e coerentes contando com o exemplo dela. A mãe do Senhor, padroeira da Arquidiocese, nos inspira e nos desafia para olharmos o hoje da vida social. “Sejamos cada vez menos estética e mais ética, menos magia e mais profecia”, como foi Nossa Senhora, enfatizou o Frei.

Foto: Mara Lobato

Terminada a oração depois da comunhão, uma liderança leiga da região 2 fez uma homenagem em forma de poesia. O texto do poema saudou a Virgem Imaculada e São José, em alusão ao tema das festividades deste ano. A imagem de Maria como mãe que guia e guarda, e de José, como trabalhador, também foram sinalizadas na poesia. O momento poético de agradecimento terminou com uma prece a Maria e José pela paz e harmonia nas famílias. Em seguida, Pe. Sidney Canto, em nome da diretoria da festa, agradeceu publicamente a Região 2 de pastoral, que neste ano sediou a saída do Círio 2021. A celebração se encerrou com a bênção solene para o tempo do Advento e com o Hino da Festa da Conceição.

 

Equipe de Comunicação

Custódia São Benedito da Amazônia

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Santarém outra vez se embandeira para o Círio 2021: “Maria, mãe de Jesus, esposa de José”

Detalhe do Cartaz do Círio 2021. Divulgação: Arquidiocese de Santarém.

O Círio 2021

O Círio da Imaculada Conceição é, sem sombra de dúvida, um dos marcos da vida do povo de Deus na cidade de Santarém. A cada ano um número expressivo de fiéis católicos manifesta a sua piedade mariana com uma grande procissão. Na romaria do Círio e nos demais eventos que cercam essa expressão de fé se pode notar que os santarenos seguem buscando inspiração e “atalho” para seguir a Cristo na figura de Maria. A mãe do Senhor é uma companheira cuja memória está gravada no coração de Santarém, conforme as palavras do hino da Festa. Nesse ideal, o povo da cidade se prepara para o Círio 2021. Neste ano o tema refletido é “Maria, mãe de Jesus, esposa de José”. A temática abordada está em união ao Ano de São José e ao ano da família Amoris Laetitia convocados pelo Papa Francisco. O cartaz do Círio deste ano traz elementos em madeira, recordando os afazeres de artesão de São José e os oratórios da piedade popular. Destaca-se também da composição do cartaz a presença dos lírios brancos que simbolizam o Esposo da Virgem. 

Estando ainda em cenário pandêmico, a habitual procissão foi substituída por uma condução da imagem da Imaculada pelas ruas de Santarém. A paróquia Cristo Libertador, no ano de seu trigésimo aniversário de caminhada pastoral, foi escolhida para ser o local da saída do Círio. A comunidade de São José operário será o ponto de partida do Círio 2021. No dia 27 de novembro a Imagem oficial será trasladada da Catedral até a igreja São José Operário. A missa do Círio ocorre no dia 28 de novembro e após a celebração os participantes do Círio conduzem a imagem até a catedral. Esses momentos importantes abrem o novenário e arraial da padroeira da Arquidiocese. Para bem celebrar este grande momento festivo, as comunidades e grupos se organizam em vista da passagem da Imagem, preparando enfeites e outros elementos que simbolizam a sua fé. 

 

Foto: Arquivo Custodial

Andar com Maria é expressão de Fé

Uma das lideranças da comunidade São José, operário, Lourdes Kameyama, partilha conosco um pouco sobre o que considera ser o significado da devoção mariana:

Cantamos em comunidade: “O povo te chama de Nossa Senhora, por causa do Nosso Senhor…O povo te chama de mãe e rainha porque Jesus Cristo é o Rei do Céu.” Maria, Mãe de Jesus, Mãe da Igreja e Mãe de todos nós. Ela ao dizer SIM ao projeto do Pai, possibilitou a concretização do Reino de Deus na terra, trazendo ao Mundo Jesus, o “Verbo Encarnado” que habitou entre nós, nos tornando filhos de Deus. Maria, Senhora nossa, merece toda honra, glória e louvores, gestos que com certeza agradam ao FILHO. Assim, a melhor forma de homenageá-la é fazendo “tudo o que ele nos disser”. Não dá para amar a mãe esquecendo o filho, por essa razão, o Círio nos transporta para a realidade de filhos de Deus, irmãos de Jesus, Cristãos batizados, que com garra e FÉ, assumem a luta por um mundo de igualdades, respeito, justiça social, um mundo onde a vida seja abundante para todos independente de raça, cor e religião. Que nossa Mãe Maria, volva seu olhar misericordioso sobre nossas crianças e jovens, protegendo-os das drogas, da violência, da exploração sexual, do tráfico. Que nossas famílias, a exemplo da Família de Nazaré, conduza seus filhos e filhas no caminho do bem. Vem, Mãe Santíssima, Senhora do Céu e da Terra, fortalece a nossa Fé, nossa esperança e o amor entre irmãos.      

 

Caminhando junto com José e Maria

O tema do Círio deste ano irá destacar a união entre Maria e José. “Ao lado de um grande homem sempre tem uma grande mulher”, diz o dito popular e com a Família de Nazaré não foi diferente, aliás, junto de um filho tão humano e divino sempre tem grandes santos. José é visto como o justo e humilde carpinteiro, desposou a Virgem Maria, foi seu castíssimo esposo. Segundo as escrituras, o Santo, unido com a esposa, não achou lugar na hospedaria, viu o menino nascer no estábulo e teve que fugir para defender a sua família. O casal de Nazaré também se angustiou com a perda do Menino Jesus durante uma peregrinação para o Templo. Maria foi a esposa de José e Cristo, aceitou ser chamado o filho do carpinteiro, as relações entre essas figuras estão intimamente ligadas. Maria e José são pessoas que se dedicaram sem reservas ao plano de Deus. Em Patris Corde (n. 3) o Papa Francisco nos diz: “De forma análoga a quanto fez Deus com Maria, manifestando-Lhe o seu plano de salvação, também revelou a José os seus desígnios por meio de sonhos, que na Bíblia, como em todos os povos antigos, eram considerados um dos meios pelos quais Deus manifesta a sua vontade”. Maria é a serva do Senhor e José o pai obediente. José também expressou na sua vida o “faça-se em mim a tua vontade”. Maria e José são igualmente ícones da acolhida. José protegeu e cuidou dos tesouros da fé, sabendo ser criativo e atento aos sinais dos tempos. E assim, José e Maria, sejam na vida dos fiéis indicadores para seguir o projeto do Reino.  

 

Equipe de Comunicação Custodial

Frei Renieverton com a Imagem de Nossa Senhora Aparecida em Boa Vista - RR. Foto: Acervo Particular.

Mãe Preta Aparecida

O culto a Nossa Senhora da Conceição Aparecida iniciou em 1717, ano em que a imagem foi encontrada por pescadores no rio Paraíba do Sul em São Paulo. Invocada como Mãe protetora, sua devoção tornou-se parte da cultura do povo brasileiro que a aclama como padroeira do Brasil.

Os relatos de que o enegrecimento da imagem da Mãe Aparecida tenha acontecido pelo tempo que ficou submersa nas águas e pela fuligem das velas não deve de forma alguma apagar a mística, o simbolismo e a importância de que ela é a Mãe Preta Aparecida, a mãe de tantos homens e mulheres que foram empobrecidos por um sistema de injustiças.

A história do Brasil revela um processo diaspórico complexo, onde os negros e negras de vários territórios africanos eram capturados, vendidos e enviados nos porões dos navios em condições desumanas, amontoados e sem alimentação adequada – muitos morriam no decorrer da longa viagem, ou mesmo cometiam suicídio.

O processo colonizador deixou marcas profundas no desenvolvimento do país, demarcando lugares de subalternidade, silenciando e apagando a cultura e a religiosidade de todo um povo que foi escravizado. As atrocidades desse tempo são sentidas até hoje por todos e todas que carregam em seus corpos a cor da Mãe Aparecida.

Frei Renieverton com a Imagem de Nossa Senhora Aparecida em Boa Vista – RR. Foto: Acervo Particular.

Nesse sentido, a Teologia Negra busca resgatar o lugar marginalizado e invisibilizado que o período escravocrata insistiu em perpetuar, e é diante da imagem da Mãe Preta Aparecida que o povo preto encontra força para caminhar e resistir à desumanidade causada pelo racismo. Segundo nos salienta Ronilson Pacheco, a Teologia Negra é desconforto na consciência da sociedade ocidental que se recusa a conhecer os legados nocivos e injustos do seu passado escravocrata e colonizador. 

Para tal, a Teologia Negra é o profetismo indesejado, visto que se trata de profetas e profetizas que impedem as igrejas de dissimular o racismo, assunto desconfortável e constrangedor, escondendo-se atrás da declaração de que “aos olhos de Deus e da Mãe Aparecida somos todos iguais”.

Independente se o enegrecimento da Virgem foi pelas águas ou pela fuligem, o fato é que o povo negro se viu representado na imagem e a tomou como Mãe, como Negra Mariama, e com voz forte entoa: “Negra Mariama chama para enfeitar, o andor porta estandarte para ostentar, a imagem Aparecida em nossa escravidão, com o rosto dos pequenos, cor de quem é irmão”.

Todavia, há de se questionar um país que festeja a Mãe Preta Aparecida com grande ardor e fé e não se revolta com milhares de mulheres negras que têm seus corpos massacrados e violentados até a morte. Portanto, celebrar a Mãe Aparecida é lutar por mudanças em um país que é racista na sua estrutura e que ainda não despertou para uma decolonialidade epistêmica. Viva Nossa Senhora Aparecida!

Frei Renieverton Telles de Oliveira, OFM

Frade da Província Santa Cruz. Graduado em Filosofia e Teologia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA).

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As muitas origens do Círio de Nazaré

Imagem de Nossa Senhora de Nazaré. Foto: Fraternidade São Boaventura (Manaus-AM)

 

Tradicionalmente o Círio de Nossa Senhora de Nazaré é realizado em Belém do Pará, sempre no segundo domingo do mês de outubro. Trata-se de uma manifestação popular da fé do povo paraense a sua Padroeira. Esta manifestação de devoção mariana ocorre há mais de 200 anos, sendo que, até o ano de 2019, foi celebrada 227 vezes. Neste ano, é a segunda vez consecutiva que o Círio ocorre em formato diferente do seu modo tradicional em decorrência da Pandemia.

Recordamos que o Círio de Nazaré é um fenômeno de fé, um momento de evangelização e manifestação da piedade mariana, podendo ser configurado como uma expressão da Igreja em saída, tão sonhada pelo Papa Francisco. Assim, não é o povo que vai em direção ao templo da Igreja, mas, é a imagem peregrina que sai e vai em direção ao povo. Nas peregrinações da Imagem e nos diversos momentos do Círio (traslados, peregrinações, romarias, encontros celebrativos) a Igreja se faz caminhante com a cultura, religiosidade e identidade paraense. Fincadas essas bases podemos olhar então para o Círio de Nazaré a partir das suas origens, do achado da imagem e do começo dessa bonita devoção.  

Ao comentar sobre a origem do nome “Círio de Nazaré” vemos que a etimologia da palavra “círio”, vem do latim “cereus”, que significa uma grande vela de cera. Em Portugal, os círios representavam um ajuntamento de pessoas que se organizavam para, em romaria, ir ao Santuário de Nossa Senhora de Nazaré. Posteriormente, as velas de cera ou círios levados pelos romeiros nessas peregrinações passaram a denominar a própria romaria. Deste modo, a origem da devoção a Nossa Senhora de Nazaré em Belém do Pará tem uma longa história que rompeu a fronteira transatlântica (cf. IPHAN, 2004, p. 14).

Desde o início, a devoção a Nossa Senhora tem uma origem mística, pois, conforme a crença popular, a imagem foi esculpida pelo próprio São José, tendo a própria Virgem como modelo. Posteriormente, a imagem teria passado pelas mãos de São Jerônimo, de Santo Agostinho e de um monge romano, tendo, finalmente, parado nas mãos do rei Rodrigo dos visigodos que, derrotado pelos mouros, deixou, ao fugir, a imagem numa gruta onde ficou durante séculos até ser reencontrada por pastores. Seu culto foi reavivado a partir do século XII, depois do famoso milagre de D. Fuas Roupinho, fidalgo português salvo de cair num abismo por intercessão de Nossa Senhora de Nazaré. O fidalgo, agradecido, passou a propagar a devoção em Portugal (Idem, p. 14).

 

Imagem peregrina na Capela de Santo Antônio de Lisboa. Foto: Paróquia Santo Antônio de Lisboa (SAL – Belém)

 

Um fato curioso e similar à devoção portuguesa é que a imagem paraense de Nossa Senhora de Nazaré também foi achada, por volta de 1700, por uma pessoa simples, um caboclo, agricultor e pescador, de nome Plácido José dos Santos que caminhava nas matas tortuosas da estrada do Utinga – atualmente Avenida Nazaré -, nas margens de um igarapé de nome Murutucu onde encontrou, entre pedras e trepadeiras, a imagem da Santa.

O caboclo levou-a para sua casa, mas, no dia seguinte, ao acordar, viu que a imagem havia desaparecido. Então, ele voltou  ao local onde a havia encontrado e percebeu que a imagem da Santa estava no mesmo lugar, fenômeno que, segundo ele, repetiu-se por várias vezes. Esta informação chegou ao conhecimento do governador da época que ordenou que a imagem fosse levada e guardada no Palácio do Governo, onde deveria ficar sob intensa vigilância. Mesmo assim, no dia seguinte, o altar estava vazio. Impressionados, os devotos resolveram construir uma ermida no local onde a Santa fora encontrada que, com o tempo, foi atraindo pessoas de vários lugares (opcit. 2004, p. 11).

O pesquisador Amaral (1998) na sua tese de doutoramento, “Festa à Brasileira: significados do festejar num país ‘que não é sério'”, apresenta um dado importante relativo ao aparecimento da imagem, quando diz que, naquela época, passavam pelo Utinga viajantes que vinham do Maranhão onde havia o culto de Nossa Senhora de Nazaré, intuindo que, provavelmente, algum devoto tenha parado no igarapé e deixado a imagem nas pedras. Contudo, o próprio Amaral descarta sua ideia, afirmando que o que conta é que a tradição desse achado envolve hoje toda a população paraense e mesmo de outros estados, podendo-se dizer que se tornou um dos fenômenos religiosos mais importantes do Brasil.

O incentivo e a aprovação da devoção chegaram mais tarde, quando o primeiro bispo do Pará, Dom Bartolomeu do Pilar – que esteve à frente do bispado do Pará entre 1721 e 1723 -, visitou a modesta ermida onde a Santa foi encontrada e apoiou a veneração a Virgem de Nazaré iniciada pelo caboclo Plácido. O antropólogo Raimundo Heraldo Maués, entende que a aproximação das autoridades religiosas da devoção à Virgem de Nazaré em Belém – e também em Vigia – marcaria “o início do controle eclesiástico sobre essa devoção popular que se acentuou em 1793, quando o quinto bispo do Pará, Dom João Evangelista, que também visitou a imagem encontrada por Plácido, oficializou a devoção, colocando Belém sob a proteção de Nossa Senhora de Nazaré” (IPHAN, 2006, p.14).

Por conseguinte, nessa mesma ocasião, o presidente da Província do Pará, Francisco de Sousa Coutinho, desejoso de alavancar a economia e o comércio regional paraense, resolveu organizar uma feira para comercializar os produtos agrícolas e extrativistas e, estrategicamente, determinou que a feira deveria ocorrer na mesma época em que os devotos homenageavam a Santa (AMARAL, 1998). Contudo, é importante observar que a festa saiu do domínio dos fiéis e passou a ter o controle do aparato do Estado e da Igreja. Também é pertinente salientar que a oficialização da devoção pela Igreja e a feira organizada pelo presidente da Província ocorreram no mesmo ano, manifestando, assim, a união entre Igreja e Estado.

Entretanto, em junho de 1793, próximo à data marcada para a inauguração da feira, o presidente da Província, Francisco de Sousa Coutinho, caiu doente. Por causa da sua debilidade física, implorou à Santa fazendo a seguinte promessa: se recuperasse a saúde e pudesse inaugurar a feira, levaria a imagem até o Palácio do Governo e, de lá, esta seria conduzida em procissão de volta à igrejinha. Assim, tendo recuperado as forças, fez fé à sua promessa, de modo que o primeiro Círio foi acompanhado por quase dois mil soldados, além da população de Belém e do interior da Província (IPHAN, 2006, p.16).

Amaral (1998), ao descrever com mais detalhes a festa, relata que o governador carregou a imagem da Santa, apresentou-a à população e a entregou ao capelão do Palácio e ao vigário geral do bispo. A procissão, por sua vez, teve início com a tropa da cidade à frente do cortejo, seguida pelos esquadrões de cavalaria, batalhões de infantaria, duas filas de cavaleiros em traje de gala, várias seges e serpentinas transportando as senhoras. O palanquim, puxado por bois e ornamentado com flores que conduzia o padre com a Santa, percorreu o trajeto cercado por devotos, pelo governador, com um grande círio, pelos membros das Casas Civil e Militar e, por último, pelas baterias de artilharia (AMARAL, 1998).

No ano 1969, por motivo de conservação e segurança, a imagem original deixou de circular na procissão, ficando somente no altar da Basílica, tendo sido substituída pela “imagem peregrina”, que é uma réplica da original feita pelo escultor italiano Giacomo Mussner (Idem, 1998). Todavia, a proporção extraordinária que o Círio de Nazaré alcançou não foi fruto do prestígio oficial da atividade decretado pelas autoridades, mas, segundo o IPHAN (2006), o Círio se impôs por si mesmo, graças à decisiva participação popular. As lendas em torno da imagem contribuíram para a sua popularidade, bem como os muitos milagres que lhes são atribuídos. É como se a recusa histórica da Santa em ficar encarcerada no Palácio do Governo simbolizasse o espaço de transgressão que marcaria o Círio ao longo de sua história. De acordo a mesma fonte, devem ser consideradas também as motivações profanas proporcionadas pelo evento do Círio.

A festa de Nazaré, além do elemento religioso, é um espetáculo de organização, especialmente da sua procissão. Os eventos dos festejos começam muito antes da data, quando as equipes responsáveis se reúnem em comissões para pensar, organizar e arquitetar a festa de Nossa Senhora de Nazaré. Fazem parte do conselho de diretoria da festa trinta membros, os quais são divididos em funções administrativas, assim representados: o presidente, sempre o vigário da paróquia de Nazaré, o coordenador, dois secretários, dois tesoureiros e um diretor de patrimônio. Os demais membros se distribuem em comissões que tratam da divulgação, da preparação da berlinda, da instalação dos serviços de som, da decoração da cidade, enfim, cobrem um campo bem amplo para que a festa seja bem-sucedida (AMARAL, 1998). Contudo, esta festa do Círio é composta por uma sequência perfeita de eventos harmoniosos que mesclam o profano com o sagrado, de modo que, além da procissão do Círio, que constitui a alma da festa, temos o arraial ou a festa propriamente dita e o almoço do Círio.

O Círio de Nazaré, como vimos, é marcado pela união de diversas origens. Encontramos no Círio um misto de raízes das diversas culturas que formam o ser amazônida. Evidenciamos também uma origem na narrativa religiosa e histórica, temos o relato do “achado da imagem” e todo o percurso do desenvolvimento da devoção ao longo do tempo. E assim, olhar para as origens do Círio nos remete sempre à originalidade simples de Maria que nos faz caminhar junto com seu bendito Filho.    

 

Frei Raoul Bentes, OFM

Graduado em Filosofia pela Faculdade Salesiana Dom Bosco (FSDB – Manaus, AM) e em Teologia pelo Instituto Teológico Franciscano (ITF – Petrópolis, RJ)

 

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Referências
AMARAL, R.de C.de M.P. Festa à Brasileira: significados do festejar num país ‘que não é sério’. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo,1998.
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Círio de Nazaré. Rio de Janeiro: Iphan, 2006. (Dossiê Iphan, 1).