CRIACAO_Prancheta 1

A beleza da Criação  

Foto: Jaime Carvalho

 

Como filhos de Francisco neste chão amazônico desejamos recordar o imenso valor dado no carisma franciscano à beleza da criação de Deus. Ele, o Altíssimo e bom Senhor, não podendo conter-se em si mesmo, transborda seu poder criador e comunica a humanidade e a todas as criaturas o seu imenso amor. 

A narração do livro do Gênesis retrata a beleza de todo o processo criativo de Deus, sua capacidade de externar o que já continha em si ao dar forma e ânimo de vida a tudo que fora criado. O firmamento, os astros, a pluralidade dos seres dotados de dons e capacidades, intimamente inseridos na dinâmica da vida. E eis que “tudo era muito bom” (Gn 1, 31). No centro deste grande jardim está o ser humano que, gerado a imagem e semelhança da Trindade, é vocacionado a ser guardião e presença divina junto à criação. 

Muitas vezes na história vemos que nem sempre o ser humano levou a concretude este encargo dado por Deus, quando, por pecado da vontade humana, a criação se tornou objeto de redenção e da vontade desregrada do ser humano. A abundância, a natureza bela e multiforme, deu lugar à miséria e ao sofrimento que, tantas e tantas vezes, beira o colapso da existência. O que fez a humanidade foi simplesmente esquecer sua vocação primeira, a de zelar pela Criação.

Dentre as muitas formas de se fazer lembrar esta vontade divina na história humana, está a figura do Poverello de Assis. De fato, São Francisco de Assis compreendeu seu papel no mundo e conseguiu identificar a presença do Criador na beleza de sua criação ao considerar a criação sua e nossa “irmã”. Verso e poesia única está no “Cântico das Criaturas” em que, unido a toda a criação eleva a Deus um perfeito louvor: “Louvado sejas, meu Senhor, por todas as tuas criaturas”.

Se é imperativo que não esqueçamos de Deus em nossos dias, quando muitas realidades de morte e abuso à natureza são crescentes, tanto se faz urgente lembrar ao mundo que o mesmo Deus se comunica ainda hoje ao coração do ser humano, sua vontade e sua presença de amor, em toda a beleza de sua criação.

Frei Diogo Oliveira, OFM



Cop26

Txai Suruí: uma voz da Amazônia pelos sonhos da Terra

ilustração com base em uma foto da ativista Txai Suruí. Autor: Fábio Vasconcelos.

 

Uma voz da Amazônia brasileira ressoou em Glasgow, na abertura da 26ª conferência da ONU para mudanças climáticas, a COP26. Diante de lideranças mundiais a jovem ativista indígena Txai Suruí, de 24 anos, natural do estado de Rondônia, fez um discurso em nome da defesa da Terra e dos povos originários. Como guardiã da Casa Comum, Txai, mandou um recado que vem do ventre do chão amazônico, um clamor pela vida e pela escuta dos conhecimentos tradicionais. 

A jovem começou sua fala se apresentando, dizendo que mesmo com pouco mais de duas décadas, ela vem de um povo que habita há pelo menos seis mil anos na região amazônica. Recordou também seu pai e os ensinamentos por ele transmitidos. Txai aprendeu com os antepassados a ouvir o cosmos. Ao afirmar que ela aprendeu com o pai a linguagem e comunicação com a natureza, rememoramos um trecho da Missa da Terra sem males: “Eu era a Terra livre, eu era a Água limpa, eu era o Vento puro, fecundos de abundância, repletos de cantigas” (CASALDÁLIGA e TIERRA, 1980). Ademais, a fala da jovem se liga às afirmações de Querida Amazônia, ao dizer que os indígenas nos ensinam, inspiram cuidado e respeito com a Terra. O sonho da jovem moça Suruí é um sonho em consonância com o caminho pós-sinodal da Igreja na Amazônia. 

Essa recordação das raízes e dos aprendizados com os antepassados recordam a importância que tem para os jovens indígenas o ato de cuidar das raízes, como pontua a exortação Querida Amazônia. Convido os jovens da Amazônia, especialmente os indígenas, a “assumir as raízes, pois das raízes provém a força que [os] fará crescer, florescer e frutificar” (QA, 33). A Querida Amazônia convida os jovens amazônidas a beber da fonte das culturas que durante séculos tem transmitido sabedoria e um modo de viver em diálogo com a Criação. Desse modo, precisamos ver a urgência de aproximar conhecimentos e crescer no diálogo intercultural, colocando saberes técnicos contemporâneos e tradicionais a serviço do Bem-viver.   

O papa recorda que “o equilíbrio da terra depende também da saúde da Amazônia”, e por sua vez, Txai nos relembra que a terra está falando, aliás gritando, que “não temos mais tempo”. O clamor da Terra, e da Amazônia também, é um ecoar de dor, semelhante ao grito do povo de Deus oprimido. O sofrimento do povo ultrajado e da natureza ferida, recordados na oração final de Querida Amazônia, aparecem na fala da jovem Suruí ao falar que esse ferimento profundo é tratado de modo superficial. Passamos apenas pomadas e analgésicos em uma chaga que se alastra cada vez mais. Temos uma Terra sangrando com as veias abertas pela ambição do lucro e do poder. 

 

Mapa da Amazônia Legal. Ilustração: Fábio Vasconcelos.

 

O discurso de Txai mais uma vez nos remete ao tema do Sínodo Pan-Amazônico, que tratou de novos caminhos para Igreja e por uma ecologia integral, ao afirmar nas palavras da jovem que precisamos tomar outro caminho. São novos os desafios diante das mudanças drásticas no clima e devem comportar novas posturas, uma conversão ecológica, para não chegar ao “ponto de não retorno” da Terra. 

No discurso, Suruí lembrou ainda dos guardiães da floresta perseguidos e assassinados pela defesa da Casa Comum. Evocando a memória de Ari Uru-Eu-Wau-Wau, se somam tantos que tombaram na defesa da Mãe Terra. O sangue feito semente desses mártires nos recordam que ainda vemos o tempo da paixão dos defensores da Casa Comum. Seu testemunho é martirial nos une a Cristo, “sangue mesclado com todos os sangues”, e se torna força pascal na luta pela Ecologia Integral. A memória desses defensores da Terra gera indignação e um clamor urgente pela paz e justiça para o Planeta.   

As palavras do discurso que destacaram que os indígenas são” linha de frente no combate a mudanças climáticas”. E que os povos originários têm “ideias para adiar o fim do mundo”, uma expressão que remete ao pensamento exposto por Ailton Krenak. O pensador indígena que observa a importância dos sonhos na vida indígena e sua interação e integração com a Mãe Terra. No sonho se buscam orientações, as utopias instigantes que nos devem, neste tempo de crise climática nos nortear para pensamentos e gestos novos.

A pesquisadora Márcia Oliveira relembra que cada um dos eixos da proposta da exortação Querida Amazônia se estrutura em sonhos. Não apenas sonhos que embalam, mas que desafiam. Sonhos tem duas importantes dimensões, “de olhos fechados e abertos”, são aquelas visões em estado de sono e aquelas imaginações que a pessoa desperta. Sonhos são uma categoria importante na linguagem das sagradas escrituras vista como sinal de comunicação em inúmeras passagens bíblicas. Igualmente a ancestralidade amazônica vê nos sonhos uma ponte de comunicação deste mundo com outra realidade. Lideranças políticas sonham para orientar o povo e os pajés sonham, conversando com o Sagrado, para propor uma cura. A dinâmica dos sonhos está profundamente ligada com as profecias, com a boca de Deus falando das novas realidades que precisam ser construídas.  

Sonhar não é abdicar da realidade, mas, a busca de resoluções ainda não vislumbradas. Sonhar é um caminho de aprendizado, nos recorda Krenak (2020). As ideias, não como divagações abstratas, mas como realidades concretas. Sonhos possíveis, sonhos que precisam frutificar e florescer. E aqui mais uma vez nos reportamos a categoria dos sonhos utilizada pelo Papa ao escrever Querida Amazônia. Assim se interligam os sonhos ecológicos, cultural, social e eclesial por uma Casa Comum e pela Terra sem males.

 

Fábio Vasconcelos, ofm 

Acadêmico de Teologia no ITF

 

REFERÊNCIAS

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CASADÁLIGA, Pedro; TIERRA; Pedro. Missa da Terra Sem Males. Disponível em: https://www.servicioskoinonia.org/Casaldaliga/poesia/terra.htm. Acesso em 03. nov. 2021. 
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das letras, 2020.99p. 
OLIVEIRA, Márcia. Sonho Social (08-27): chaves de leitura. In: REPAM-BRASIL. Caravana Digital Formativa. Disponível em: https://repam.org.br/wp-content/uploads/2021/10/caravana_formativa.pdf. Acesso em 03.nov.2021. 
PAPA FRANCISCO. Querida Amazônia: Exortação Apostólica pós-sinodal. Brasília: Edições CNBB, 2020. 58p. 
Imagens do Capítulo das Esteiras de 2009.

Pequenas ações no cuidado do Oikos de Deus

Imagens do Capítulo das Esteiras de 2009. Foto: Arquivo Custodial.

 

 

Neste dia de São Francisco, a  série de reflexões franciscanas para o Tempo da Criação 2021 se encerra com um artigo de apontamentos práticos e troca de  experiências para cuidar do Oikos de Deus. Quem partilha conosco os seus sonhos e os pensamentos sobre o tema é Frei Francisco Paixão, OFM, mestre em Comunicação e atualmente administrador paroquial da catedral de Sant’Ana em Itaituba (PA).

 

 

O Sonho dos pequenos 

Ao me propor escrever este artigo no contexto do Tempo da Criação, que se encerra na festa do nosso Pai Seráfico São Francisco de Assis, sobre pequenas ações que cuidam da Oikos de Deus, me reportei para a noite do dia 21 de julho de 2009, na praça Madeira Mamoré, em Porto Velho, Rondônia. Era a cerimônia de abertura do 12º Intereclesial das CEBs do Brasil; cerca de 4 mil pessoas ouviam atentamente as palavras acolhedoras do bispo-profeta Dom Moacyr Grechi. Foi nesta noite que ouvi pela primeira vez o provérbio africano repetido por Dom Moacyr naquele discurso: “Muita gente pequena em muitos lugares pequenos, fazendo coisas pequenas mudarão a face da Terra”. E é sobre isso que desejo tratar, descrevendo algumas experiências que vi e ouvi na caminhada missionária amazônica do meu ser franciscano.

Quem, quando criança, não sonhou em ser protagonista de uma ação que mudasse o mundo? Eu me lembro de momentos em que, junto aos meus amigos de infância, ficávamos absortos olhando para o céu e fixando as estrelas imaginando um mundo distante criado a partir de nossos horizontes. Tudo era pequeno, mas os sonhos eram grandes, enormes. Pena que muita gente ao crescer, esquece essa capacidade de sonhar e não dão nenhum passo a mais no sentido de lutar por um mundo melhor. Eu continuo sendo sonhador, ainda que na porta da terceira idade. E quando posso, invento. Porque acredito, tal qual o provérbio africano, que o mundo que sonhamos será construído, não a partir de unzinho que se faz mito, ou um todo poderoso que se impõe pela força, mas sim, com as pequenas ações que mudam as mentalidades, as consciências e as atitudes pessoais em busca de um bem maior para todos. Só assim vamos cuidando do Oikos de Deus que é dom e graça para toda a humanidade.

 

Os sonhadores em tempos de crise: hortelãos da Casa Comum  

Durante o forte da pandemia do covid-19, vivi os “lockdowns” ou as bandeiras vermelhas, em Belém do Pará. A ordem era ficar em casa, não abrir a Capela ao público, celebrar na fraternidade e transmitir as missas via Facebook e YouTube. A vida ficou reclusa ao quarto, à sala de jantar e à cozinha. Nenhuma reunião de grupo, nenhuma reunião pastoral. O jeito era reinventar a vida interna de casa. Foi aí que surgiu a ideia de criar a “hortinha franciscana do alpendre”. Juntamente com uma colaboradora do convento, começamos a “brincar” de plantar verduras, tomates cerejas e pimentas. No início tratei como passa-tempo jocoso, mas depois senti que nossa pequena ação influiu no comportamento e atitude de alguns paroquianos que, vencendo o medo da pandemia, visitavam a capela e o convento. De repente nos vimos incentivados por eles a fazer crescer nossa horta, nosso projeto de compostagem caseira, etc. Percebi que uma pequena ação concreta – parecia brincadeira – podia ajudar as pessoas a mudar de mentalidade em relação ao cuidado do Oikos de Deus. Essas são sementes que com certeza serão lançadas longe, como as sementes da samaumeira amazônica, que quando explodem, espalham ao longe sua altivez e longevidade. Valeu brincar de hortelão. Todos devemos ser um hortelãos do Oikos de Deus!

 

 

Foto: Arquivo Custodial.

 

Grandes gestos de pequenos movimentos  

Antes desta minha última “aventura natureba”, fui membro fundador e incentivador do Comitê em Defesa do Igarapé do Urumari, que é um dos igarapés amazônicos que resiste à urbanização, na cidade de Santarém, Pará. Como um paciente com Covid, ele resiste respirando com dificuldade, mas com muita gente do lado de fora torcendo por sua recuperação. O comitê surgiu como fruto das reflexões feitas pelas Comunidades Eclesiais de Base da Região II de Pastoral, na então Diocese de Santarém, por onde o igarapé tem seu curso. Tem o apoio e o amparo da Federação das Associações de Moradores do Município de Santarém. Também o Comitê começou com um pequeno grupo de sonhadores, mas gente comprometida com o cuidado do Oikos de Deus. 

Diversas experiências foram desenvolvidas pelo Comitê: visitas ao longo do curso para conhecer in loco a beleza e as dores do ecossistema do Urumari; visitas educativas aos alunos das escolas em torno do Igarapé; duas romarias que mobilizaram centenas de pessoas, caminhando por suas margens; conversações com o ministério público e o governo municipal; ações de vigilâncias aos ataque e invasões… Pequenas mas significativas ações que ainda hoje colocam na agenda dos gestores municipais a preocupação da população daquelas comunidades com o futuro daquele ecossistema tão necessário para a cidade de Santarém. 

Com os mesmos objetivos e até bem anteriores ao Comitê em Defesa do Urumari, Santarém é palco de uma outra ação de cuidado com Oikós de Deus. É o Movimento Tapajós Vivo, que também iniciou com com um pequeno grupo de sonhadores e defensores da Amazônia, levando a cabo grandes embates em defesa do Rio Tapajós contra os depredadores da natureza que só vêem o Rio como lugar de produção de energia para seus projetos de exploração madeireira e mineral, sem importar-se com as sequelas e desgraças que a construção de uma hidrelétrica deixa para o povo da Amazônia. O Movimento (MTV) já mobilizou milhares de pessoas em jornadas, caravanas, estudos e lutas pelo Rio Tapajós e suas populações ribeirinhas.

E assim poderíamos ir contando inúmeras ações concretas em defesa do Oikos de Deus nesta vasta Amazônia. Infelizmente o inimigo tem poder diabólico de enganar e fazer muita gente acreditar que essas atividades não levam a nada, cooptando certas lideranças comunitárias que passam acreditar nos pequenos presentes enganadores que lhes aliciam e quebram a força da luta popular. Mesmo assim a esperança move aqueles que acreditam que todos juntos, ainda que “gente pequena e em muitos lugares pequenos, fazendo coisas pequenas mudarão a face da Amazônia”.

 

Frei Francisco Paixão, OFM