Imagem de Nossa Senhora de Nazaré. Foto: Fraternidade São Boaventura (Manaus-AM)
Tradicionalmente o Círio de Nossa Senhora de Nazaré é realizado em Belém do Pará, sempre no segundo domingo do mês de outubro. Trata-se de uma manifestação popular da fé do povo paraense a sua Padroeira. Esta manifestação de devoção mariana ocorre há mais de 200 anos, sendo que, até o ano de 2019, foi celebrada 227 vezes. Neste ano, é a segunda vez consecutiva que o Círio ocorre em formato diferente do seu modo tradicional em decorrência da Pandemia.
Recordamos que o Círio de Nazaré é um fenômeno de fé, um momento de evangelização e manifestação da piedade mariana, podendo ser configurado como uma expressão da Igreja em saída, tão sonhada pelo Papa Francisco. Assim, não é o povo que vai em direção ao templo da Igreja, mas, é a imagem peregrina que sai e vai em direção ao povo. Nas peregrinações da Imagem e nos diversos momentos do Círio (traslados, peregrinações, romarias, encontros celebrativos) a Igreja se faz caminhante com a cultura, religiosidade e identidade paraense. Fincadas essas bases podemos olhar então para o Círio de Nazaré a partir das suas origens, do achado da imagem e do começo dessa bonita devoção.
Ao comentar sobre a origem do nome “Círio de Nazaré” vemos que a etimologia da palavra “círio”, vem do latim “cereus”, que significa uma grande vela de cera. Em Portugal, os círios representavam um ajuntamento de pessoas que se organizavam para, em romaria, ir ao Santuário de Nossa Senhora de Nazaré. Posteriormente, as velas de cera ou círios levados pelos romeiros nessas peregrinações passaram a denominar a própria romaria. Deste modo, a origem da devoção a Nossa Senhora de Nazaré em Belém do Pará tem uma longa história que rompeu a fronteira transatlântica (cf. IPHAN, 2004, p. 14).
Desde o início, a devoção a Nossa Senhora tem uma origem mística, pois, conforme a crença popular, a imagem foi esculpida pelo próprio São José, tendo a própria Virgem como modelo. Posteriormente, a imagem teria passado pelas mãos de São Jerônimo, de Santo Agostinho e de um monge romano, tendo, finalmente, parado nas mãos do rei Rodrigo dos visigodos que, derrotado pelos mouros, deixou, ao fugir, a imagem numa gruta onde ficou durante séculos até ser reencontrada por pastores. Seu culto foi reavivado a partir do século XII, depois do famoso milagre de D. Fuas Roupinho, fidalgo português salvo de cair num abismo por intercessão de Nossa Senhora de Nazaré. O fidalgo, agradecido, passou a propagar a devoção em Portugal (Idem, p. 14).
Imagem peregrina na Capela de Santo Antônio de Lisboa. Foto: Paróquia Santo Antônio de Lisboa (SAL – Belém)
Um fato curioso e similar à devoção portuguesa é que a imagem paraense de Nossa Senhora de Nazaré também foi achada, por volta de 1700, por uma pessoa simples, um caboclo, agricultor e pescador, de nome Plácido José dos Santos que caminhava nas matas tortuosas da estrada do Utinga – atualmente Avenida Nazaré -, nas margens de um igarapé de nome Murutucu onde encontrou, entre pedras e trepadeiras, a imagem da Santa.
O caboclo levou-a para sua casa, mas, no dia seguinte, ao acordar, viu que a imagem havia desaparecido. Então, ele voltou ao local onde a havia encontrado e percebeu que a imagem da Santa estava no mesmo lugar, fenômeno que, segundo ele, repetiu-se por várias vezes. Esta informação chegou ao conhecimento do governador da época que ordenou que a imagem fosse levada e guardada no Palácio do Governo, onde deveria ficar sob intensa vigilância. Mesmo assim, no dia seguinte, o altar estava vazio. Impressionados, os devotos resolveram construir uma ermida no local onde a Santa fora encontrada que, com o tempo, foi atraindo pessoas de vários lugares (opcit. 2004, p. 11).
O pesquisador Amaral (1998) na sua tese de doutoramento, “Festa à Brasileira: significados do festejar num país ‘que não é sério'”, apresenta um dado importante relativo ao aparecimento da imagem, quando diz que, naquela época, passavam pelo Utinga viajantes que vinham do Maranhão onde havia o culto de Nossa Senhora de Nazaré, intuindo que, provavelmente, algum devoto tenha parado no igarapé e deixado a imagem nas pedras. Contudo, o próprio Amaral descarta sua ideia, afirmando que o que conta é que a tradição desse achado envolve hoje toda a população paraense e mesmo de outros estados, podendo-se dizer que se tornou um dos fenômenos religiosos mais importantes do Brasil.
O incentivo e a aprovação da devoção chegaram mais tarde, quando o primeiro bispo do Pará, Dom Bartolomeu do Pilar – que esteve à frente do bispado do Pará entre 1721 e 1723 -, visitou a modesta ermida onde a Santa foi encontrada e apoiou a veneração a Virgem de Nazaré iniciada pelo caboclo Plácido. O antropólogo Raimundo Heraldo Maués, entende que a aproximação das autoridades religiosas da devoção à Virgem de Nazaré em Belém – e também em Vigia – marcaria “o início do controle eclesiástico sobre essa devoção popular que se acentuou em 1793, quando o quinto bispo do Pará, Dom João Evangelista, que também visitou a imagem encontrada por Plácido, oficializou a devoção, colocando Belém sob a proteção de Nossa Senhora de Nazaré” (IPHAN, 2006, p.14).
Por conseguinte, nessa mesma ocasião, o presidente da Província do Pará, Francisco de Sousa Coutinho, desejoso de alavancar a economia e o comércio regional paraense, resolveu organizar uma feira para comercializar os produtos agrícolas e extrativistas e, estrategicamente, determinou que a feira deveria ocorrer na mesma época em que os devotos homenageavam a Santa (AMARAL, 1998). Contudo, é importante observar que a festa saiu do domínio dos fiéis e passou a ter o controle do aparato do Estado e da Igreja. Também é pertinente salientar que a oficialização da devoção pela Igreja e a feira organizada pelo presidente da Província ocorreram no mesmo ano, manifestando, assim, a união entre Igreja e Estado.
Entretanto, em junho de 1793, próximo à data marcada para a inauguração da feira, o presidente da Província, Francisco de Sousa Coutinho, caiu doente. Por causa da sua debilidade física, implorou à Santa fazendo a seguinte promessa: se recuperasse a saúde e pudesse inaugurar a feira, levaria a imagem até o Palácio do Governo e, de lá, esta seria conduzida em procissão de volta à igrejinha. Assim, tendo recuperado as forças, fez fé à sua promessa, de modo que o primeiro Círio foi acompanhado por quase dois mil soldados, além da população de Belém e do interior da Província (IPHAN, 2006, p.16).
Amaral (1998), ao descrever com mais detalhes a festa, relata que o governador carregou a imagem da Santa, apresentou-a à população e a entregou ao capelão do Palácio e ao vigário geral do bispo. A procissão, por sua vez, teve início com a tropa da cidade à frente do cortejo, seguida pelos esquadrões de cavalaria, batalhões de infantaria, duas filas de cavaleiros em traje de gala, várias seges e serpentinas transportando as senhoras. O palanquim, puxado por bois e ornamentado com flores que conduzia o padre com a Santa, percorreu o trajeto cercado por devotos, pelo governador, com um grande círio, pelos membros das Casas Civil e Militar e, por último, pelas baterias de artilharia (AMARAL, 1998).
No ano 1969, por motivo de conservação e segurança, a imagem original deixou de circular na procissão, ficando somente no altar da Basílica, tendo sido substituída pela “imagem peregrina”, que é uma réplica da original feita pelo escultor italiano Giacomo Mussner (Idem, 1998). Todavia, a proporção extraordinária que o Círio de Nazaré alcançou não foi fruto do prestígio oficial da atividade decretado pelas autoridades, mas, segundo o IPHAN (2006), o Círio se impôs por si mesmo, graças à decisiva participação popular. As lendas em torno da imagem contribuíram para a sua popularidade, bem como os muitos milagres que lhes são atribuídos. É como se a recusa histórica da Santa em ficar encarcerada no Palácio do Governo simbolizasse o espaço de transgressão que marcaria o Círio ao longo de sua história. De acordo a mesma fonte, devem ser consideradas também as motivações profanas proporcionadas pelo evento do Círio.
A festa de Nazaré, além do elemento religioso, é um espetáculo de organização, especialmente da sua procissão. Os eventos dos festejos começam muito antes da data, quando as equipes responsáveis se reúnem em comissões para pensar, organizar e arquitetar a festa de Nossa Senhora de Nazaré. Fazem parte do conselho de diretoria da festa trinta membros, os quais são divididos em funções administrativas, assim representados: o presidente, sempre o vigário da paróquia de Nazaré, o coordenador, dois secretários, dois tesoureiros e um diretor de patrimônio. Os demais membros se distribuem em comissões que tratam da divulgação, da preparação da berlinda, da instalação dos serviços de som, da decoração da cidade, enfim, cobrem um campo bem amplo para que a festa seja bem-sucedida (AMARAL, 1998). Contudo, esta festa do Círio é composta por uma sequência perfeita de eventos harmoniosos que mesclam o profano com o sagrado, de modo que, além da procissão do Círio, que constitui a alma da festa, temos o arraial ou a festa propriamente dita e o almoço do Círio.
O Círio de Nazaré, como vimos, é marcado pela união de diversas origens. Encontramos no Círio um misto de raízes das diversas culturas que formam o ser amazônida. Evidenciamos também uma origem na narrativa religiosa e histórica, temos o relato do “achado da imagem” e todo o percurso do desenvolvimento da devoção ao longo do tempo. E assim, olhar para as origens do Círio nos remete sempre à originalidade simples de Maria que nos faz caminhar junto com seu bendito Filho.
Frei Raoul Bentes, OFM
Graduado em Filosofia pela Faculdade Salesiana Dom Bosco (FSDB – Manaus, AM) e em Teologia pelo Instituto Teológico Franciscano (ITF – Petrópolis, RJ)
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Referências
AMARAL, R.de C.de M.P. Festa à Brasileira: significados do festejar num país ‘que não é sério’. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo,1998.
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Círio de Nazaré. Rio de Janeiro: Iphan, 2006. (Dossiê Iphan, 1).