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Primeiro ano do falecimento dos freis Dubán e Manoel

Faz um ano que perdemos dois confrades da Custódia São Benedito da Amazônia, que atuavam no Oeste do Pará. Morreram de covid no início de 2021, quando vários freis também foram acometidos pela doença, inclusive eu. Frei José Dubán Tabarquino Vargas foi hospitalizado em Santarém no início de fevereiro, e faleceu em 29 de março, com 59 anos. Frei Manoel da Silva Lima ficou hospitalizado durante um mês em Itaituba (PA) e faleceu dia 16 de abril, com 62 anos. Cada um deles, com seu jeito particular e o serviço que prestavam, deixou uma lacuna nas nossas fraternidades e na vida do povo de Deus que os queria tão bem. Os frades compartilharam esse sofrimento com milhares de famílias que perderam seus parentes e amigos(as) ao longo desses dois anos.

Eu gostaria de compartilhar a experiência de ter sido bem próximo aos dois confrades e de como foi o processo para superar essas perdas. Conheci Frei Manoel Lima assim que entrei para a formação franciscana, no início dos anos 80. Ele era um dos mais entusiasmados com uma Igreja vivida na inserção entre os mais pobres e os movimentos sociais, com irreverência e muita alegria. Muita alegria mesmo. Onde ele estava, estavam o abraço, a música, as piadas e as risadas. Não era possível ficar imune à sua animação, sempre presente nas nossas reuniões, capítulos e retiros. Junto com o saudoso Frei Juvenal Carlson, “Mané” era entre nós o símbolo da alegria franciscana.

 

Foto: Maribeth Joerigth.

 

Seguimos bem próximos durante quatro décadas. Claro que nem tudo foi só alegria. Frei Manoel ficou afastado da fraternidade durante três anos no início dos anos 2000, para pensar melhor sobre sua vocação de frade. Mas logo retornou, e a vida seguiu seu curso. Às vezes eu me estranhava com ele, porém, logo o “emburramento” passava, e estávamos fazendo brincadeiras e sonhando juntos. Ele tinha críticas à condução do governo da nossa entidade e ideias de como as coisas poderiam ser diferentes. E foi eleito conselheiro custodial por dois mandatos, com o apoio de grande parte dos freis mais jovens, experiência que provocou nele maior envolvimento com a vida institucional da entidade. E assim, Frei Manoel parecia mais tranquilo e feliz. Mas, no meio do caminho houve uma pandemia…

No final de fevereiro de 2021, Frei Manoel veio a Santarém e, assim, passou seu último aniversário conosco (26/02). Estava com o ânimo um pouco abalado porque sua irmã mais jovem estava muito mal de covid, e viria a falecer em poucos dias (em seguida, outra irmã dele junto com o esposo também morreram de covid, mas ele já não soube disso). Mesmo assim, tivemos uma recreação no convento, com as risadas de sempre. Naquele dia, ele postou uma mensagem no grupo de WhatsApp dos freis expressando suas angústias e temores. Poucos meses depois, a mensagem pareceria um tipo de profecia ou despedida, como se lê nos seguintes trechos:

“Hoje é meu aniversário! 62 anos de vida! 62 que poderá ser o último a ser comemorado, ou, o primeiro de mais um ciclo de vida […]. Não sei se rio, não sei se choro. Não sei se canto, ou se lamento! Se faço festa ou se […] saio a chorar pelas ruas, solidário com tantos que, inconsoláveis, sabem que não mais verão seus entes queridos que se foram. A morte bate à porta de minha família; e eu, impotente, busco socorro naquele que fez o céu e a terra. Mesmo assim, teimosamente meus lábios sorriem, dando alento ao coração abatido. […] Olho para o meu Seráfico Pai Francisco, chagado como Cristo, mas que nunca perdeu a alegria e a doçura da paz e do Bem. Obrigado, irmãos! Obrigado, amigos!! Louvado sejas meu Senhor, pela vida e pela morte! Pelo teu infinito amor!”

Antes de ser entubado, Frei Manoel pediu ao médico um tempo para rezar, o que fez em silêncio, e logo disse que estava preparado para o procedimento. Quem esteve perto dele diz que era como se ele soubesse que seu fim estava perto. É capaz. O que sabemos é que viveu intensamente bem, até o fim.

Como ele morreu em Itaituba e eu estava em Santarém, não pude viver os rituais de despedida do meu irmão. E ficou aquela sensação de que ele não teria morrido e que ainda poderia voltar. Já o carro com o caixão do Frei Dubán, um mês antes, passou rapidamente pela garagem do convento, onde houve um ritual de encomendação, antes de seguir para o cemitério. Também não me pareceu uma despedida completa. Mas os tempos não permitiam mais do que aquilo. Esse também foi o drama de outras famílias que não puderam viver como gostariam os ritos fúnebres de despedida, muito necessários para os que ficam.

 

Foto: Maribeth Joerigth.

 

Frei Dubán era um pouco diferente do Frei Manoel, pois tinha o rosto mais sério, mas gostava de conversar, principalmente sobre a realidade social e política, quando se mostrava muito crítico. E nisso, tínhamos muito em comum. Ele gostava de trabalhar com os mais pobres nas periferias. Como um tipo de xamã, atendia muitos enfermos, que recuperavam a saúde através de terapias alternativas (massagem, acupuntura, chás de plantas etc.). Estava em Santarém havia um ano, e já tinha iniciado uma presença no bairro Vista Alegre do Juá, onde celebrou algumas missas. Ele e eu estávamos construindo um plano de trabalho pastoral e social para aquela área, incluindo o atendimento de saúde e formação política, o que foi interrompido pela pandemia.

Indígena do povo Embera Chamí, Frei Dubán nasceu na Colômbia. Eu o conheci em Bogotá, na minha primeira viagem àquele país em 2000. Ele disse que queria experimentar mais intensamente uma Igreja no estilo da Teologia da Libertação, como imaginava que havia no nosso país. E se animou em vir pro Brasil, o que aconteceu em 2006, quando entrou para a Custódia São Benedito da Amazônia. Já tinha estudado medicina tradicional na China durante quatro anos e, mais recentemente, estudava fisioterapia. Ele se formou poucas semanas antes de morrer, quando já estava entubado. O seu sonho era ajudar e servir às pessoas através da cura. Talvez tenha contraído o vírus enquanto estagiava no Hospital Regional de Santarém. E assim, morreu fazendo o que gostava.

 

Foto: Arquivo da Custódia São Bene

 

Após o falecimento dos dois confrades, comecei tratamento devido às sequelas da covid. O médico identificou meu sofrimento emocional e recomendou procurar um(a) psicólogo(a), pois eu apresentava dores de cabeça e melancolia persistentes, com crises de choro sempre que me lembrava dos dois. Isso me levou a ser afastado das atividades docentes na Ufopa e a ter que fazer um acompanhamento psicológico desde maio de 2021, que se estende até agora (abril de 2022). Esse processo me fez reconhecer a importância dos freis falecidos na minha trajetória e na minha vivência como franciscano. Era como se nós fôssemos irmãos mesmo, compartilhando ideias, sonhos e um projeto de vida. Até então, eu não tinha a real noção disso, e a compreensão mais profunda da nossa amizade e fraternidade veio só depois, quando a morte já tinha se metido no meio. Daí, a dor da perda.

Ainda hoje é difícil falar desses irmãos sem sentir sua ausência. Mas já superei o pior, pois a psicologia me ajudou a redimensionar as emoções e até mesmo a minha existência. Descobri que minha vida e meus projetos precisam continuar, inclusive com os demais freis ao redor. E que eu também deveria deixar que os dois falecidos seguissem seu caminho. Eu precisava me despedir deles, cortando os laços terrenos que minha mente insistia em manter. Já chorei e rezei muito, já acendi velas e já conversei com eles. Mas uma das coisas que eu precisava fazer para fechar este ciclo era uma despedida pública, pois de alguma maneira meu sofrimento os prendia comigo, aqui neste mundo, onde eles já não estão.

Por isso este texto de adeus. Doloroso, mas necessário. 

Assim, finalmente, eu me despeço dos meus queridos irmãos Manoel e Dubán, dizendo que  sou muito grato pela amizade que tivemos e pelo caminho que trilhamos em conjunto. E agora, eu os deixo seguir sua Viagem para o Reino de Deus, sem mais amarras da minha mente. Vocês seguem e eu continuarei aqui neste chão amazônico que pisamos juntos, buscando ser fiel aos nossos sonhos de viver o Evangelho, em fraternidade e – sempre – com os mais pobres. E quando chegar a hora, haveremos de nos reencontrar. E tudo será só alegria. Amém! 

 

 – Frei Florêncio Almeida Vaz Filho, OFM.