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Fim de ano às margens do Cururu: crônicas de Frei Andrei Anjos

Foto: Arquivo Pessoal/Frei Andrei Anjos

Esse texto é um relato da minha “quarta experiência” na Missão Cururu. A primeira foi em 2013, ainda como postulante, acompanhando Frei Paixão em uma visita. Minha segunda estadia, e a mais extensa até agora, foi em 2019, quando vivi por oito meses junto com os Munduruku. A terceira ida ao Alto Tapajós foi no final do ano de 2021. A quarta é esta a qual passo a contar agora para vocês.  

Pelas águas, terras e ar rumo à Missão Cururu

Com o objetivo de chegar na véspera de Natal na Missão Cururu (Jacareacanga PA) eu (Frei Andrei Anjos) e Frei Edilson Rocha tivemos que correr contra o tempo. Saímos do Convento São Francisco, em Santarém, no dia 22 de dezembro para embarcar na lancha com destino a Itaituba. A embarcação estava prevista para sair às 10h e a chuva que começou na noite anterior ainda persistia. Enquanto isso, com a pressa da saída persistia algo que é comum em todo viajante; uma sensação de estar esquecendo alguma coisa. 

O local de embarque era um lugar pequeno e apertado, as pessoas estavam impacientes em busca de informações sobre passagens e transportes, lá uma funcionária gritava: – “Aveiro, Brasília legal, Itaituba…”. No interior da lancha, crianças choravam, pessoas contavam suas aventuras de viagem, outras faziam confusão por causa do assento… e de certo modo sentia que tudo estava normal por aqui. Chegamos em Itaituba às 20h, muito depois do esperado, mas com aquele alívio pela primeira parte da viagem cumprida. Tivemos a noite para repousar no conforto da fraternidade Sant’Ana, deliciamos uma pizza e usufruímos de uma boa rede de internet.

 No dia seguinte (23/12) continuamos, desta vez pela desafiadora transamazônica, saímos às 11h15. Se na primeira parte viemos por águas, nessa etapa seguimos por terra, por meio de uma caminhonete fretada, mas desta vez sem o embalo das “sofrências” e com pouca conversa. A estrada estava muito agradável e deu para tirar um cochilo. Pelo menos nas primeiras horas de viagem, porque depois a costa começou a reclamar. Mas logo chegamos no quilômetro 180 para almoçar e esticar as pernas. Lá não tinha pium e por isso almoçamos sossegados. No mesmo local, encontramos uma família da aldeia Sawmuybu com quem trocamos cumprimentos e conversamos um pouco. E após a parada para refeição continuamos o trajeto ouvindo uma “pisadinha” de leve. 

Em Jacareacanga, chegamos às 17h30, fomos acolhidos pelos freis Marcos e Ari, carmelitas. Logo depois a irmã Cláudia Moraes (SMIC) foi ao nosso encontro. Ficamos surpresos ao saber que ela tinha passado mal e por essa razão precisou vir até Jacareacanga para fazer exames com urgência. A irmã sentia uma forte dor no estômago, mas já estava bem melhor e o exame para malária tinha dado negativo. 

Na véspera de Natal, fomos ao supermercado para registrar as cestas básicas, resultado de um projeto em parceria com a Franciscans Missions, e que foram entregues para os indígenas. Aproveitamos e fizemos as compras necessárias para uma semana na Missão Cururu. Irmã Cláudia foi às compras conosco, mas não voltou para a Missão, pois iria para um retiro em Quixadá-CE. 

Ao meio-dia frei Marcos nos levou ao aeroporto para pegarmos o voo até a Missão, tivemos que aguardar um pouquinho, pois houve um contratempo. O dia estava agradável, céu aberto, poucas nuvens e uma brisa suave. Tempo ótimo para voar! A esperança era chegar ainda cedo para organizar a nossa estadia e as celebrações de Natal. E durante aquele tempo em que aguardávamos eu conjecturei que, agora sem a irmã Cláudia na Missão, ficariam um pouco exigentes estes dias de visitas. E somou-se a essa reflexão o desejo de não estarmos nos esquecendo de nada. O que era para ser alguns minutos de voo se tornaram três horas de espera, o rapaz da gasolina e o piloto atrasaram mais do que o previsto, voamos  por volta das 15h00. 

Desembarque dos paim na Missão 

Pousamos na “pista piçarra” da Missão com a trepidação já esperada. Ao desembarcar fomos recepcionados por muitos “Bekitkit” (crianças), que vieram pegar nas mãos do “Paim” (frades), eram tanta empolgação no aperto de mãos dos pequeninos que dava para pegar que de uma vez de saudar vários. Nesse mesmo momento alguns jovens guerreiros munduruku nos ajudaram a levar a gasolina para casa. 

Ao chegarmos à Casa dos Frades constatamos que o ambiente, que estava fechado desde a última visita, precisa de uma organização. Deu um certo trabalho para encontrarmos as chaves das portas, enquanto nos organizávamos, várias crianças, com sua espontaneidade e alegria seguiam correndo e brincando pela casa toda, chamando “Paim, Paim…”. 

Foto: Arquivo Pessoal/Frei Andrei Anjos

O Nascimento de Jesus em solo Munduruku

A celebração eucarística estava marcada para às 19h. Enquanto os crismandos se confessavam, caiu uma chuva muito forte e de repente parou.  O aguaceiro, embora volumoso, não conseguiu aplacar o calor intenso. Mas ainda teríamos mais surpresas, quando anoiteceu e o motor de luz da aldeia ligou, foi então que percebemos que a fiação elétrica da igreja não estava funcionando. A solução encontrada foi rezar a Missa de Natal à luz do celular. E eu rezava em meu íntimo pedindo que o aparelho celular não descarregasse naquele momento, visto que já estava como a bateria nas últimas e era a fonte de iluminação dentro da capela. 

Antes disso, tivemos que correr para encontrar os materiais litúrgicos, frei Gean Akay que já estava por lá pela Missão passando férias, nos ajudou nesta parte. E foi assim que o curumim Jesus nasceu na Missão Cururu, no escuro, mas sua luz se fez presente nos rostos das pessoas que ficaram muito felizes ao celebrar este dia especial com a presença dos pains na aldeia. Um pouquinho depois das 21h o motor desligou e tudo virou um breu, fomos dormir ao som do cricrilar dos grilos, que formaram naquela noite santa um coral natalino da natureza. 

Acordamos para o dia de Natal com o soar do sino, que não era tão pequenino assim, para avisar a missa das 7h. A chuva já estava intensa desde a madrugada, e a Eucaristia foi começar lá pelas 8h. Na mesma celebração ocorreram Crismas, primeira comunhão e batizados. E mesmo com a forte chuva, a igreja ficou bem cheia. Estávamos com o projeto de ir até a aldeia Santa Maria, logo depois do almoço, mas a chuva forte persistia, mesmo assim começamos a organizar a ida, resolvemos sair com chuva mesmo. Sorte que ao sair o tempo deu uma trégua e assim partimos.  

Durante a longa viagem até a aldeia deu para refletir bastante, acompanhado da bela paisagem que a natureza nos presenteia, realmente, mais uma vez me dei conta de que esse lugar é encantado. O rio está cheio, ficamos presos em alguns varadouros, de vez em quando eu precisei ir e ajudar a puxar a voadeira, que estava com a toldo, e além disso tinha mais um detalhe, o chão estava muito liso de limo por causa do tempo sem uso. 

Celebrações nas aldeias Santa Maria e Bananal

Chegamos em Santa Maria às 17h30 fomos recepcionado por muitas crianças, era muita gente querendo cumprimentar o Paim e desejar Feliz Natal. Ficamos hospedados na escola, pois o posto de saúde onde costumávamos ficar foi demolido. Devido aos muitos casamentos e o número de crismandos Frei Edilson já foi logo começando as confissões, segundo ele foram mais de cem pessoas para se confessar. 

Nesse meio tempo, eu e o piloto Elcio Witõ, fomos visitar a casa do irmão do pain Gean. Já era noite e lá nos deram café com sarikita (farinha de tapioca), peixe cozido e farinha, estava uma delícia. Estava com muitas saudades desse peixe, sempre lembrava deste sabor. E nós comemos ali mesmo no chão da sala, um costume tipicamente Munduruku. Depois, ao sairmos, ainda nos deram três melancias para levar. Ficamos muito agradecidos, pois não tinha previsão de horário para jantar. 

Finalmente acabaram as confissões e frei Edilson jantou o que levamos do almoço de casa. Nos acomodamos para dormir, ouvindo um agitado xepxep (palavra munduruku quer dizer dois e por conseguinte também nomeia certas danças feitas em casal como forró, xote e outras) que animava o povo ao lado da igreja. 

Às 7h30 a celebração começou, estava tudo arrumado para ser ao ar livre, pois a igreja era pequena para o número dos participantes, mas como a chuva ameaçava cair, então a missa aconteceu no barracão da aldeia. O povo estava bastante animado, foi bonito ver a energia das crianças cantando e batendo palmas, todos os crismandos estavam com trajes tradicionais da cultura muduruku, com as roupas confeccionadas por eles e ornados por pinturas do seu povo.  

Paim recebeu vários cordões de presente durante a Crisma, significando o quanto eles estavam gratos por aquele momento. Depois da realização de todos os sacramentos previstos, que durou quase a manhã toda, fomos providenciar algo para comer antes da viagem de volta. Por precaução tínhamos levado umas sardinhas e arroz para fazer, ainda bem, porque literalmente “o rio não estava pra peixe”. 

Na volta paramos na Aldeia Bananal para mais quatro batizados, depois ofereceram café, pão e suco de muruci. Depois de uma viagem tranquila chegamos a Missão sem chuva, graças a Deus, mas não demorou muito para cair uma chuva constante, daquelas que parecem demorar a cessar. 

Visita e batizados na aldeia Caroçal Cururu

No outro dia (27), surpreendentemente fez um sol bom, deu para lavar roupas, aproveitamos para arrumar a casa, limpar algumas áreas externas e organizar alguns objetos.  Às 16h partimos para aldeia Caroçal, que fic

Foto: Arquivo Pessoal/Frei Andrei Anjos

a há uns vinte minutos da Missão, ao chegarmos lá, os moradores não estavam nos esperando, no entanto, prontamente providenciaram ovos fritos para jantarmos, depois teve Missa com cinco batizados. A igreja encheu de gente, até um sapo saltava pelo meio do povo, assustando várias meninas, enquanto elas cantavam e batiam palmas. Outro fato notável é que todos sabiam as músicas da celebração de cor. Nós ficamos hospedados no posto de saúde, os funcionários estavam de férias, não tinha ninguém lá, por isso o posto estava com muita sujeira de morcego. 

O motor de luz da comunidade desligou às 21h em ponto, tudo ficou muito escuro, nem estrela no céu tinha. A noite foi um pouco mal dormida, tinha muito barulho de morcegos e roncos, no meio da madrugada começou a chover e ventar forte, as janelas estavam abertas, deu um pouco de frio, o lugar que estavamos era bem apertado. Amanheceu e eu já estava de pé cedo, a chuva persistia, tomamos café no barracão da comunidade, tinha beyo’a (beiju), sarikita e wesuda’a (pupunha), só foram poucas pessoas porque todos estavam descendo para Jacaré-be (Jacareacanga). Com um pouquinho de chuvisco partimos de volta. Pudemos descansar um pouquinho na casa do Paim. Aproveitei o restante do dia e fui visitar algumas casas onde comi peixe cozido e algo que ainda não tinha experimentado, ikopibu, larva de maribondo assada, é uma delícia. 

Chuva vai, chuva vem… 

No dia 29, fez um forte sol, parece que era “só porque íamos ficar em casa mesmo”, assim, eu aproveitei para tomar banho no rio, ficar de molho e tomar um sol e  depois caminhar. Foi aí que caiu uma forte chuva, fiquei preso na casa de um comunitário, o senhor Elcio, o nosso piloto. Aconteceu que a chuva não passava e eu precisava voltar para casa antes que o motor de luz desligasse. Foi aí que improvisamos um guarda-chuva de saco plástico, assim voltei metendo o tênis na lama e com medo de escorregar no chão liso ou de ser mordido por um cachorro. Enfim, cheguei em casa são e salvo, Paim Edílson já estava cozinhando ovos para o jantar. 

No penúltimo dia de 2022, fomos passear, voltamos à aldeia Caroçal para levar os folhetos das celebrações, o sol estava muito forte, fomos na voadeira comunitária, que é sem cobertura, sentimos bastante a força solar. Dessa vez o piloto era o Capitãozinho. Na volta fizemos uma visita a aldeia Paxiúba, foi quando a chuva caiu, logo na chegada, conversamos e tomamos café, contaram sobre a comunidade, que é bem pequena, com umas cinco casas, e que querem ter Santa Dulce dos pobres como padroeira. O lugar onde costumam celebrar é o mesmo onde é a escola, barracão e onde acontece o xexep. Quando a chuva passou, pegamos o caminho de volta. Assim foi nossa tarde, que encerramos com um café e uma boa conversa na casa dos pains, onde estavam algumas pessoas visitando. 

Nos outros dias que permanecemos na Missão, aproveitei para visitar as casas, conviver com os indígenas e aprender mais da língua deles. Na virada de ano não costuma ter festa, teve uma brincadeira com as crianças no barracão, com músicas e apresentação de dança. Eu voltei para casa antes da virada, acordei com os fogos. No dia seguinte, domingo, primeiro dia de 2023, teve missa, no final tiveram agradecimentos da comunidade, eu fiz esforço para agradecer falando tudo em Munduruku, parece que entenderam. Depois fui levar comunhão para alguns idosos que não podem ir à missa, enquanto o Paim Edilson preparava o almoço. Neste mesmo dia, havia falecido uma senhora da aldeia Pratati, à tarde fomos ao cemitério rezar por ela, tinha muita gente, muitas crianças ficaram ao redor para colocarem terra sobre o caixão.

Onde há felicidade o cansaço se torna leve

O nosso voo de volta estava marcado para o dia seguinte, mas pela manhã um pouco antes do almoço começou uma forte chuva que também entrou pela tarde, já estávamos sem esperança de que o avião ainda viesse naquele dia, embora nossas bolsas já estivessem arrumadas, tentamos contato com os pilotos através da internet da escola, para ver se ainda viriam, foi quando o tempo abriu um pouco e o avião pousou na Missão. Um avião bem pequeno, o piloto deu pouco tempo para arrumarmos as bagagens, pois teria outro voo. Éramos 5 passageiros, eu, pains Edilson e Gean, mais duas senhoras indígenas que iam para Jacareacanga. Fomos bem apertados com as bagagens, tivemos que desviar de algumas chuvas com o risco de retornar a Missão. Mas foi mais tranquilo do que esperávamos, chegamos bem. 

Paim Ari, já estava nos esperando no aeroporto. No mesmo dia eu e Paim Gean fomos providenciar uma encomenda para levar na casa de apoio da Missão que fica em Jacaré, foi aí que aproveitei para conhecer o local e reencontrar alguns amigos indígenas que não estavam na Missão. Era um lugar um pouco afastado da cidade, um salão de madeira, com muitas redes no meio. Ao adentrar o espaço vimos que estavam tomando açaí, parece que já era o jantar. No fogo tinham alguns peixinhos, mas era pouco para tanta gente. 

Dormimos na casa dos pains carmelitas, eu dormi na sala onde atei a minha rede, sendo acordado cedo com barulho de panelas. Começamos nossa viagem para Itaituba às 7h30, aproveitando a carona do frei Ari, conosco foi mais um jovem de Manaus. Apesar da chuva e da estrada estar lisa e partes alagadas, fizemos uma viagem tranquila, chegamos até mais cedo do que imaginávamos. 

Pernoitamos em Itaituba e no dia 4 de janeiro, pegamos a balsa das 8h, fomos pela estrada para chegar finalmente em Santarém. Voltamos de carro, pois o Frei Edilson trouxe o veículo da Paróquia de Sant´Ana para manutenção. Logo após a travessia da balsa, começou a estrada de chão, ou melhor de lama, pegamos um atalho e até pagamos pedágio para passar no quintal da mulher, todos os carros menores estavam indo por lá. Na estrada principal tinham muitos caminhões na tentativa de passar no lamaçal escorregadio. Demoramos um pouco naquele trecho, foi o motivo do atraso. 

Foto: Arquivo Pessoal/Frei Andrei Anjos

Frei Edilson estava ao volante, de Rurópolis em diante, foi minha vez de dirigir, a estrada estava bem melhor, quase toda asfaltada. Intercalando entre chuva e sol, chegamos em Santarém às 16h. Então pudemos descansar e assim foi o meu primeiro dia de férias. Muito cansado, mas feliz de ter voltado à Missão Cururu e reencontrado aquele povo tão querido que me ajuda a crescer como frade menor e me inspira na doação a missão e a simplicidade. 

Frei Andrei Anjos, OFM

 

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Alegria fraterna e gratidão: Frei Bruno Laviola relata a experiência na Missão Cururu – Primeira parte

Imagem: Frei Edilson Rocha

O que se eterniza

Em primeiro lugar gostaria de agradecer a Custódia São Benedito da Amazônia na pessoa do Ministro Custodial, Frei Edilson e seu governo por me proporcionar este tempo de convivência entre vocês, frades, amigos e pessoas próximas em terras além mineiras. Tempo forte que pude experimentar in loco os desafios em que a Missão São Francisco do Rio Cururu está inserida, e para além de seus desafios a força humana que gera vida e vida em abundância em terras Munduruku.

Cheguei por aqui dia 01/07 no voo Gol que aterrissou às  13:30 horas conforme horário local. O sentimento que acompanhava a viagem era de gratidão e muita positividade em poder sair de terras mineiras e conviver em outros lugares, saborear novos sabores da vida franciscana e um sonho podendo estar se realizando; conhecer a Missão Cururu. 

As conversas e a convivência foram intensas e verdadeiras. Conhecer as fraternidades e também um pouco do costume de cada lugar me encantaram ainda mais por estas terras; povo de muita piedade e força para viver.

Não poderia deixar de ressaltar a convivência com os freis da filosofia, Diogo, Walter e Jailson que de modo particular foram grandes companheiros nesta viagem. Em falar de viagem, quanta emoção vivida em cada trecho percorrido seja por terra ou por água e até mesmo no ar, momentos de medo, sim, pelas sinuosas curvas, mas muito seguros pela condução de Frei Edilson. 

O trajeto da viagem desde Santarém até a Missão Cururu é realmente desafiante. São vários os trechos e porque não extenuantes e tensos para quem, por exemplo, está dirigindo, ou coisas afins, mas é encantador quando deixamos tudo para trás e sim viver realmente os desafios que o trajeto apresenta. Desta maneira a suavidade vem em forma de beleza e brinda a viagem com momentos intensos carregados de adrenalina e emoções.

Tentarei descrever minhas emoções em cada trecho da viagem e de forma sucinta apresentar nestas linhas o que levarei comigo de volta as altas montanhas de Minas Gerais. Estar em terras “estranhas” sempre me cativou e cativa, estar em lugares diferentes sempre me proporcionou entrar em contato comigo mesmo, deixar-me modelar novamente com os aprendizados que adquirimos ao longo do período que estamos naquele lugar. Por aqui não foi diferente. Bora iniciar a aventura!

Como nos diz o ditado popular que os preparativos e a viagem valem mais a pena que a chegada no local em si, ao se tratar da Missão Cururu não posso dizer o mesmo. Tanto a viagem quanto a chegada e a estadia têm o mesmo valor. Talvez possa ser a experiência de alguém vindo de fora, mas, creio que não. Ah, posso dizer com muita firmeza que re-aprendi muito a acreditar e ter fé que a providência de Deus age na hora certa. 

Ao iniciarmos os preparativos para ida, sempre uma coisa vinha à minha mente: como vamos conseguir colocar tudo isto no carro? E na voadeira? Apesar de ser um carro grande era muita coisa e sem falar que ao longo do caminho sempre vai adicionando mais uma coisinha para aproveitar a ida, era eu e meus botões. 

 

Da esquerda para direita: Frei Diogo, Frei Edilson, Frei Marcos (OCD, Frei Jailson, Frei Walter e Frei Bruno. Imagem: Frei Edilson Rocha

Iniciamos a viagem

O primeiro trecho de estrada que é Santarém para Itaituba foi bem interessante. O sentimento inicial era de um aventureiro que se colocava para além de terras mineiras. Sentia cada detalhe daquele caminho, a cor do asfalto, os trechos ainda sem asfalto, os pequenos igarapés, que em tempo de calor intenso são a alegria de muitos, a concentração de Frei Edilson na condução do carro, as várias borboletas amarelas que estavam ao longo do caminho, tudo intenso e colorido. O almoço foi num restaurante em Rurópolis, uma comida deliciosa. Ao chegarmos em Miritituba, em frente a cidade de Itaituba, avistamos a balsa Miritituba-Itaituba e eu ainda não havia vivido travessias assim, aos poucos os carros e caminhões menores iam se ajeitando naquele longo casco até ouvir o sinal; 20 minutinhos e nas terras da Pepita do Tapajós estávamos. Alegria também em chegar e poder descansar um pouco, mas não podíamos perder tempo, pois teríamos que colocar as coisas que ali estavam para levar à Missão. Pensei de novo comigo: mas como vamos levar mais coisas neste carro? Até uma máquina de costura havia, mas fiquei quieto e tentei ajudar como podia. E não é que conseguimos arrumar tudo. Agora sim era hora de descansar e aproveitar um pouco do início dos festejos de Sant’ Ana.

Momento de convivência com os freis, com o povo e com o Bispo de Itaituba Dom Wilmar que recordou com carinho e felicidade de Frei Igor. Saímos após um café comunitário e para minha surpresa a estrada era toda de chão batido. O trecho de Itaituba a Jacareacanga me recordou estes 16 anos de vida religiosa, quantos momentos foram difíceis e desafiadores ao longo deste percurso de minha vida. A cada curva, a cada encontro com outros carros que faziam direção oposta ou até mesmo os carros que seguiam para Jacaré deixando a visibilidade difícil por causa da poeira, me faziam pensar e me associar à minha própria vida. A cada quilômetro percorrido o sentimento que me acompanhava era de gratidão e superação. E aqui, um ponto chave da vida franciscana que se chama fraternidade, que por vezes não é fácil de ser vivenciada, mas é na realidade nosso tesouro que levamos em vasos de barro, por sermos humanos e falhos. Nossa fraternidade que viajava naquele instante era minha fortaleza que com um sorriso e outro, um silêncio ou até um cochilo se mostrava presente, menos Frei Edilson que não podia cochilar porque era o piloto. 

Foram horas viajando e pensando até avistarmos o portal de “Jacaré” e com ele o asfalto se fazia presente. Momento de agradecer e preparar para o terceiro tempo da viagem. A estadia em Jacaré foi muito boa. Um fato me impressionou muito. Ficamos hospedados na casa dos frades carmelitas e Frei Edilson havia mandado mensagem para Frei Marcos que já estávamos chegando. Até aí é normal, mas, quando chegamos lá não havia ninguém em casa e daí a surpresa: Frei Marcos havia mandado uma mensagem para Frei Edilson dizendo que ele tinha saído, mas que a chave se encontrava em tal lugar e que poderíamos ficar à vontade na casa. Foram dois dias naquela cidade onde , apesar do calor e da poeira, me senti acolhido e respeitado. 

Vista da casa da Irmãs Missionária da Imaculada Conceição (SMIC)

Continuo o relato na segunda parte do texto que deve ser publicado logo!

Frei Bruno Laviola, ofm 

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A luz da Palavra na Mundurukânia: os primeiros dias do ano no Alto Tapajós

Na primeira parte do relato apresentamos as vivências de Frei Edilson, Frei Andrei e Frei Fábio nos primeiros oito dias de viagem, coincidindo com a oitava do Natal, da sua passagem pela Missão Cururu.

As narrativas que seguem se concentram do dia 31 de dezembro de 2021 até 06 de janeiro de 2022. O que embala as descrições é o forte sinal da luz, uma ilustração profunda do tempo natalino, e o simbolismo dos dons manifestados na epifania do Senhor, tudo isso mesclado com a realidade da nação munduruku do Alto Tapajós. 

 

Muita Luz no Ano Novo!

O dia que encerrou 2021 foi marcado pela celebração do Ano Novo. Em clima de vigília pela chegada de um novo tempo, as pessoas reunidas para a missa renderam graças pela vida no decurso do calendário civil que concluímos. Por algum motivo, após a liturgia da palavra, o gerador que fornece luz para a igreja deu uma parada, mas, com luz de velas e lanternas, seguiram com a eucaristia. É uma boa analogia ver que mesmo em uma capela escura sempre se pode dar um jeito e achar luzes para prosseguir. 

 

Santa Maria, Mãe de Deus

No primeiro dia de 2022, celebramos a liturgia de Santa Maria Mãe de Deus, que concluiu a oitava do Natal, com uma boa participação dos fiéis. Frei Edilson alertou que ao celebrar, temos sempre como centro da nossa fé a pessoa de Jesus, mas em Maria encontramos um exemplo de como deixar Cristo ser o mais importante em nossas vidas. Ele recordou que o ano novo representa para todos uma nova esperança, e que para os povos indígenas é uma oportunidade de buscar o bem viver, valorizando as sabedorias dos antepassados e o cuidado com a Terra. As temáticas das leituras mesclavam tanto a figura de Maria com o começo do novo tempo que chega com mais este ano civil. Na conclusão das preces, foi rezada a oração da paz, atribuída a São Francisco de Assis. No final da celebração, Frei Edilson deu a bênção para o início do ano de 2022.    

 

A luz das nações manifestou-se no Rio Cururu

No domingo da Epifania, este ano celebrado no Brasil no dia 02 de janeiro, tivemos a missa dominical na aldeia Missão São Francisco, a última celebração desta visita. Depois do Evangelho, Frei Edilson anunciou as datas das solenidades móveis, destacando a data da Páscoa (17 de abril), e afirmando a presença dos frades para essa celebração litúrgica. O Frade, ao começar sua reflexão, explicou o significado de Epifania como manifestação, derivada da sua origem na língua grega. Em seguida, pontuou que essa presença do Senhor que se revela é sentida em um só clima de Natal e de manifestação de Jesus. A luz é o grande símbolo deste tempo, pontuou ele. Vemos o mundo que se ilumina, mesmo muitas vezes sem saber e nem entender o sentido de tanta luminosidade. No entanto, no coração dos fiéis se acende a mais forte luz da fé. O nascimento de Jesus Cristo e sua manifestação acontece aos mais simples, como os pastores. Também aos magos, gente que vem de fora para adorar e reconhecer o seu esplendor. No meio do caminho de encontro com a luz, pode-se também topar com a perversidade de gente distante da claridade, nas vias da corrupção e da ganância, figurado em Herodes. Que a presença de Cristo acenda a luz que clareia os nossos passos na unidade neste ano de 2022, com clareza e lucidez para seguirmos como povo cheio de vida.

 

Primeira Missa na aldeia Paxiúba

Na tarde do domingo da epifania (02 de janeiro), os frades, irmãs e um grupo de leigos foram visitar e celebrar a eucaristia na aldeia Paixúba. O nome da aldeia, nome de uma palmeira, se deve na verdade a um igarapé de mesma denominação que passa pela comunidade. Celebraram a liturgia no barracão comunitário, e essa foi a primeira vez que a comunidade celebrou a eucaristia. A aldeia tem em torno de dois anos e ainda não tem uma capela e nem um santo padroeiro. Na ocasião, todos ficamos ao redor da grande mesa. Em seguida, no mesmo espaço, partilharam uma refeição com vinho de bacaba, beiju (beyo’a), café, chá e suco de muruci. Neste momento de partilha fraterna, as pessoas trouxeram também os seus animais de estimação para o barracão e uma diversidade de espécies de macacos, quatis e outros animais foi vista.

 

Testemunhas da luz

Os ministérios leigos na área pastoral da Missão Cururu têm se mostrado bastante fecundos na construção de uma ministerialidade eclesial com rosto amazônico. A formação e investidura de ministros da palavra tem evidenciado o protagonismo dos leigos para uma igreja missionária em saída. Uma consciência de responsabilidade pastoral frente aos desafios atuais da realidade munduruku tem crescido cada vez mais entre as lideranças da igreja local. Desde o ano de 2017, ano onde o ministério foi conferido para o primeiro grupo, os ministros da Palavra estão presidindo as liturgias com as aldeias e tem assumido seu bem papel eclesial. No ano de 2019, uma outra turma de ministros recebeu o mandato. No desempenho dessa função, que não é apenas da presidência litúrgica das celebrações, os ministros se enraízam na Palavra de Deus e testemunham a habitação dela no meio da vida dos Munduruku. A comunicação da Palavra é outra marca desse ministério, que pode muito bem ser feito na própria língua indígena. Dentro da Palavra que é luz emergem testemunhas como a de João Batista, pronta a anunciar o Cristo que ilumina as nações.

Inspirados por esse tipo bíblico, o grupo de ministros das aldeias da mundurukânia resolveu por iniciativa própria promover as “caravanas de São João Batista” como momentos de evangelização das comunidades. Esta ação se coloca como sinal da luz e efeito da Palavra de Deus. Esse trabalho também é fruto do trabalho missionário das pessoas que ajudaram na formação desses ministros e das comunidades que acolhem a Palavra de Deus.

 

 

Os dons que recebemos

No dia 04 de janeiro, os frades retornaram para Jacareacanga e seguiram rumo à Santarém, aonde chegaram no dia 06 de janeiro, dia da festa popular dos “Santos Reis”, trazendo na mala muitos presentes, que não são provenientes das “riquezas materiais”, mas simbólicas, que vem do encontro com a rica cultura no seio da Amazônia. Os frades trouxeram um paneiro cheio de boas conversas, de aprendizados e de situações inquietantes para pensar e refletir. Percebemos que estes são dons que devemos partilhar e que nos fazem crescer em comunhão com estes mais de cem anos de convivência. Outro dom desta viagem foi perceber como o Espírito faz germinar e florir as sementes dos ministérios, em especial na atuação dos(as) ministros(as) da Palavra e na sua atitude de testemunhar o Reino. Recolhemos no coração a dádiva de vocações religiosas autóctones, membros do povo Munduruku vocacionados a ser pains (paĩ) e irmãs. Isto tudo são candeeiros acesos do sonho socioecológico-eclesial da Querida Amazônia.   

Texto: Frei Fábio Vasconcelos

Fotos: Frei Edilson Rocha e Frei Andrei Anjos

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Natal Munduruku: o fim de ano na Missão Cururu

Capela de Nossa Senhora da Conceição – Aldeia Primavera

 

Frei Edilson Rocha, Frei Fábio Vasconcelos e Frei Andrei Anjos estiveram do dia 23 de dezembro de 2021 a 04 de janeiro de 2022 na Missão São Francisco do Rio Cururu. Frei Edilson havia visitado as aldeias em outubro e com eles celebrado a festa do padroeiro da Missão. Desta vez teve a oportunidade de reunir com as lideranças, ouvir diversas pessoas do povo Munduruku, dar feedback para algumas demandas levantadas, conversar com as irmãs missionárias da Imaculada Conceição (SMIC), e também presidir os sacramentos da Eucaristia, Batismo, Reconciliação e Matrimônio. Frei Fábio e Frei Andrei retornaram à Missão depois de dois anos, local onde vivenciaram a experiência do ano fraterno pastoral em 2019.

Um clima de expectativa, próprio do Advento, embalou a viagem até o Cururu, que fica na terra indígena Munduruku, município de Jacareacanga – PA. A saída da cidade de Santarém ocorreu em 21 de dezembro e, ao chegarem em Itaituba, Frei Cândido Gean Akay – que estava indo para suas férias na sua terra natal, a Mundurukânia – somou-se ao grupo.

Em solo munduruku, os viajantes foram acolhidos pelas crianças da comunidade, uma característica da Missão. Para os frades, a sensação foi de que o próprio Menino de Nazaré veio ao seu encontro. Também no clima de recepção, encontraram-se com as irmãs Cláudia e Débora (SMIC), e as vocacionadas Leila Waro e Luciane Saw, que os aguardavam para mostrar-lhes sua estadia.

A aldeia se preparou não só para a chegada do “pain” (paĩ), mas para conjuntamente celebrar o Natal. Os irmãos indígenas prepararam toda a liturgia, incluindo os cantos e leituras, tudo para ter uma boa celebração. A igreja foi muito bem ornamentada para as liturgias natalinas, inclusive com um lindo presépio.

 

Crianças da Missão São Francisco contemplando o presépio

 

O Natal é a festa do encontro e festa das culturas reunidas, a troca de dons entre o céu e a terra. Estar na missão para celebrar o Natal é um presente, pois celebrar o Natal com os munduruku é uma grande oportunidade de sentir que o Verbo também se faz carne na Amazônia. O sentido da encarnação do verbo ganha um significado amazônico nessa experiência, pois Jesus se fez Curumim daqueles que brincam nas águas do Cururu e que se admiram com o lindo presépio da igreja.

Os frades celebraram a Noite e o Dia do Natal juntamente com as pessoas vindas de diversas aldeias do Rio Cururu, que marcaram grande presença nas celebrações. Os cantos e algumas partes da liturgia foram celebrados na língua Munduruku, um gesto que nos remete à Palavra que faz morada entre nós. Nas celebrações, o Evangelho é sempre proclamado na língua Munduruku por um Ministro da Palavra da comunidade.

As leituras da noite de Natal foram proclamadas pelos jovens da aldeia e um grupo encenou o Evangelho que narra o nascimento de Jesus. No momento da dramatização, uma criança colocou a imagem do Menino Jesus com traços indígenas no presépio. Comentando as leituras da celebração, Frei Edilson destacou que devemos ter o coração aberto para acolher Jesus que vem como criança. “Quem deixa Cristo nascer nas suas vidas, vai procurar colocar em primeiro lugar as pessoas que mais necessitam”, afirmou. Aqueles que abraçam o Menino Deus sempre saberão acolher os que vem ao seu encontro. O Natal é momento de alegria e esperança para todos os povos e isso se concretiza na mundurukânia. Ao celebrarmos o nascimento do Deus que vem até nós em um inocente bebê que nasce no desabrigo, nos traz uma grande alegria: o reacendimento das expectativas do povo. Que Deus dê a todos a alegria de viver e que o Natal seja todos os dias. Que cada uma das nossas casas seja como um presépio onde Jesus é acolhido e pode se manifestar.

 

 

Viver a Palavra que se fez carne

A tônica das leituras do dia de Natal foi a encarnação como anúncio da Palavra. O Verbo encarnado nos lança na proclamação da justiça e da paz do seu Reino. Foi nesta linha de pensamento que Frei Edilson expôs a homilia do dia de Natal. No começo da sua fala, refletiu o Evangelho proclamado à luz da importância da Palavra e da linguagem no viver humano (Prólogo do Evangelho de São João). Ele afirmou que é vital o aprendizado e o desenvolvimento da língua em uma cultura, não se pode deixar que esse aspecto importante se perca ao longo do tempo. Recordou que a presença de Jesus nos traz vida plena. Sendo a solenidade do Nascimento de Jesus um festejar da vida que nasce e que deve ser preservada, destacou a importância de preservar todas as formas de existência (todas as formas de vida).

Os Munduruku têm sido por séculos defensores da cultura, da natureza e do seu território. Hoje, muitos dos poderosos, como no tempo de Jesus, têm ameaçado a vida dos povos originários do Brasil. O Natal reacende em nós a consciência daquilo que precisamos para cultivar a paz. A leitura de Isaías, proclamada da liturgia daquele dia, recorda que a paz é um belo dom que deve ser buscado, o que também inclui a preservação da nossa Casa Comum.

Também recordamos que os Ministros da Palavra têm sido grandes anunciadores do Evangelho, e nesse mesmo dia fizeram uma reunião de planejamento de atividades com a presença de Frei Edilson. Foram celebrados oito batizados e um matrimônio no dia de Natal na Missão.

 

Batizados na Aldeia Primavera

 

A Família de Deus 

O dia 26, terceiro dia na Missão, foi marcado pela celebração da festa da Sagrada Família. Ao ter presente a figura de Jesus, Maria e José, recordamos a importância dos núcleos comunitários e familiares para acolher a vida nova que chega. Na homilia, Frei Edilson destacou que as crianças chegam até nós com a sua fragilidade e com a necessidade do cuidado. De forma similar, podemos observar a realidade da aldeia e compará-la às atuais ameaças do sistema de exploração.

Os Munduruku formam uma comunidade-família, de fato, uma numerosa família. Como em todo núcleo familiar, temos que acolher as diversidades e resolver no diálogo as nossas divergências, sempre visando o bem viver de todos(as). Com os olhos na família de Nazaré, nos colocamos a pensar nas relações internas entre as famílias, com suas mudanças em cada período histórico e o repasse geracional e refletir sobre o legado que as próximas gerações Munduruku receberão. Outro aspecto bem familiar é o da acolhida. Nas aldeias, sempre que um visitante chega, recebe um sinal de aconchego fraterno. Um dos temas bem frequentes nessa visita é a pergunta sobre a possibilidade dos frades ajudarem na realização de registros civis de casamento, uma demanda levantada desde outubro de 2021. Frei Edilson tem procurado os meios para viabilizar, juntamente com as instâncias competentes, os registros de casamentos civil.

 

Aldeia Primavera

 

Nas veias dos rios da Amazônia

Navegar pela Amazônia é fazer um processo de tornar-se um elemento na corrente dos rios, deixar-se mergulhar e enveredar por varadouros como componentes de um fluir dos rios que levam vida. Dentro das veias da Amazônia, que são os rios e suas ramificações, entramos em um processo de encarnação na realidade (ideia sonhada desde o Encontro dos Bispos em Santarém, em 1972). Assim, nossos missionários adentraram no devir do Tapajós, Cururu e seus afluentes. Logo ao chegar, algumas aldeias solicitaram a visita dos pains, entre elas Primavera, Santa Maria e Paxiúba. As liturgias no tempo do Natal foram celebradas na sede da Missão e nas visitas às demais comunidades indígenas.

No dia 27, os frades, irmã Débora e uma equipe missionária partiram para a Aldeia Primavera, que fica próxima da nascente do rio Tapajós. No caminho, o grupo parou em diversas aldeias ao longo do Cururu para deixar materiais para as celebrações da Palavra e uma imagem de Santa Clara para a aldeia Saw Muybu. No dia 28, celebraram com a comunidade e depois do almoço retornaram para a Missão. A subida do Rio Cururu para a aldeia Santa Maria foi feita na tarde do dia 29 de dezembro. Desta vez a equipe de missionários foi composta por Frei Edilson, Irmã Cláudia, Frei Andrei, Frei Gean, Frei Fábio e a vocacionada Leila Waro. Materiais de celebração também foram deixados nas aldeias. Na comunidade Bananal, uma imagem de Cristo Rei foi entregue para o povo.

Na manhã do dia 30, a aldeia celebrou a eucaristia com a participação de um bom número de pessoas. Na ocasião, realizou-se o matrimônio de dois jovens casais e em seguida o batizado de nove crianças. A visita foi igualmente uma oportunidade de rever algumas pessoas conhecidas, de conversar com os Ministros da Palavra e com as lideranças da aldeia. Depois do café comunitário partilhado, a equipe partiu de volta à Missão, com paradas para momentos de encontro e sacramentos nas aldeias Bananal, Muiussu e Pratati-Cajual. Esta segunda etapa da viagem foi de certa maneira uma “maratona” de celebrações, no bom sentido do termo. Na segunda parte deste relato veremos um pouco sobre como foram as celebrações do Ano Novo e da manifestação do Senhor.

 

Texto: Frei Fábio Vasconcelos, OFM.

Fotos: Frei Andrei Anjos, OFM e Frei Edilson Rocha, OFM.

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Frei Edilson relata visita à Missão São Francisco do Rio Cururu

 

Frei Raoul, Frei Edilson, Reginaldo e Elsio em viagem pelo Rio Cururu (Jacareacanga – PA). Foto: Frei Edilson Rocha.

 

Nos dias 1º a 10 de outubro, a Ir. Lioneide Brito da Silva, Coordenadora da Unidade do Imaculado Coração de Maria, da Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição (SMIC), Frei Raoul Azevedo, OFM, e eu realizamos uma visita à Missão São Francisco, mais conhecida como “Missão Cururu”.  Desde o ano passado, a presença dos frades se tornou escassa e, por fim, ficamos ausentes da Missão já por praticamente um ano, com a exceção de algumas visitas esporádicas em algumas aldeias, feitas pelos Frades Carmelitas de Jacareacanga ou por Frei Raoul e Pe. Ronaldo, a partir de Itaituba. Num tempo particularmente difícil para o povo Munduruku, com a pandemia e as ameaças de todo tipo que pairam sobre os povos indígenas e particularmente sobre os Munduruku, deixamos as irmãs sozinhas na Missão São Francisco, com o peso enorme das responsabilidades que decorrem deste compromisso missionário da pastoral indigenista. No momento estão assegurando a presença missionária na Missão as irmãs Cláudia Regina Carlos de Morais e Antônia Débora Bernardo de Paulo. Duas missionárias, dedicadas e corajosas! 

Os “paim” e as irmãs, embora não tenham autoridade política sobre as lideranças das Aldeias Munduruku, constituem uma autoridade moral e religiosa, muito importante na vida deste povo e muito valorizada por eles. Quando percebem que há um real interesse, conhecimento de sua causa, compromisso com suas lutas por parte dos missionários, as lideranças Munduruku procuram seus conselhos e, mesmo que possam parecer desinteressadas no momento da escuta, levam estes conselhos a sério, sobretudo em situações complexas como as que estão vivendo atualmente. Depois de mais de um século de presença muito significativa de grandes missionários e missionárias franciscanos entre o povo Munduruku, a nossa ausência e omissões, num tempo de crises e de graves ameaças à vida, unidade e cultura deste povo, também ameaçam a nossa credibilidade diante deles e da Igreja Local, que confia a nós essa Missão. Outros agentes religiosos fundamentalistas e não comprometidos com a vida, valores culturais e lutas do povo Munduruku vão ocupando o vazio deixado por nós. A devastação é bem mais ampla do que a destruição do meio ambiente, da unidade das comunidades e da autoridade dos autênticos líderes e de seus velhos sábios… Um processo de destruição silencioso e perverso está em curso. “O Rio Cururu é o último de águas cristalinas que ainda está preservado, mas as pressões são enormes…” diziam-me algumas lideranças das aldeias.  

 

Frei Edilson, Irmãs e Catequistas da Missão Cururu. Foto: Arquivo Pessoal.

 

 

Esta visita em conjunto com a Ir. Lioneide estava planejada desde o ano passado. Teríamos ido à Missão São Francisco em maio de 2020, ano I da pandemia. Dom Wilmar Santin, OCarm. nos havia convidado para uma assembleia da pastoral indígena da Prelazia de Itaituba, que seria realizada na “Missão Cururu”. Mas a pandemia chegou em março e paralisou tudo e obrigou todo mundo a simplesmente cancelar as agendas. No segundo semestre de 2021, com o avanço da vacinação e relaxamento das restrições às viagens, bem como pelos dados cada vez mais positivos sobre o arrefecimento da crise sanitária, achamos possível a realização desta visita, aproveitando a festa de São Francisco de Assis, que é o padroeiro da “Missão Cururu”. Pedi ao Frei Raoul para organizar toda a logística para a viagem, o que ele fez com muita dedicação e competência, por já ter um pouco de experiência e conhecimento dos caminhos que levam à Missão. Trata-se de uma viagem extremamente dispendiosa. Neste caso, ainda mais porque levamos muitas cargas, precisando de um frete de avião entre Jacareacanga e a Missão, ida e volta, e de duas embarcações com pilotos especializados em Rio Tapajós e Rio Cururu. Além de precisar fretar uma camionete de Itaituba até Jacareacanga e depois até o Ramal do Bena, acima da maior cachoeira do Tapajós, para levar parte das cargas, divididas entre as duas embarcações que subiram ao Cururu. O suporte logístico dado por Frei Raoul foi excelente e a acolhida e apoio em nossa fraternidade de Itaituba, por Frei Paixão, também excelentes e fundamentais na ida e na volta! Nossa gratidão por todo o apoio e acolhida! 

 

Frei Edilson e profissionais que atuam na Missão. Ao fundo a vista da Casa das Irmãs. Foto: Arquivo Pessoal.

 

Nós que saímos de Santarém pela BR-163 e seguimos pela Transamazônica até Jacareacanga e Ramal do Bena (no sentido Apuí-AM), precisamos enfrentar cerca de 850 quilômetros de estradas, maior parte de trechos ruins, sem asfalto e bem perigosas, sobretudo entre Itaituba e Jacareacanga. As belezas das paisagens, sobretudo dos Rios Tapajós e Cururu, compensam todos os desafios e sacrifícios da viagem. 

Em nossos dias de visita, celebramos a festa de São Francisco, na aldeia da Missão do mesmo título. Celebramos no domingo, dia 3 de outubro, pela manhã, e à noite, participamos da encenação-celebração do Trânsito de São Francisco, feita na Praça São Francisco, ao lado da Igreja, pelos jovens da comunidade. Muitas pessoas das aldeias vizinhas vieram participar da festa e todos os momentos foram bem participados. Domingo cedo, antes das 7h, a comunidade vizinha da Aldeia do Caroçal chegou trazendo a imagem de São Francisco, acompanhado por São Benedito, na procissão que subiu da margem do Cururu até a Igreja da Missão. A juventude das duas aldeias conduziu a procissão, com participação majoritária de jovens e crianças. Houve a Missa da Festa com celebração do Sacramento da Confirmação de alguns jovens, com a autorização de Dom Wilmar Santin.  O resto do dia 4 de outubro foi só de festa, com a presença de muita gente das outras aldeias. No dia 5 de outubro, dia de São Benedito, bem cedo de manhã, a imagem de São Benedito, que viera com São Francisco de Assis no dia anterior, foi levada de volta para a Aldeia Caroçal. Celebramos a festa de São Benedito em Caroçal com duas Missas: pela manhã, às 7h30 e à noite, às 19h. À tarde, Frei Raoul celebrou um casamento e alguns batizados de crianças. Eu escutei as confissões de 14 crianças, que celebraram a Primeira Comunhão, na Missa de encerramento da festa, à noite, celebrada na pracinha ao lado do Posto Médico. Após a celebração, seguiu-se um momento cultural, com muitos cantos e danças, na pracinha. Pernoitamos na Aldeia e retornamos à Aldeia da Missão na manhã do dia 6 de outubro. Almoçamos cedo e seguimos para a Aldeia de Santa Maria, aonde chegamos no meio da tarde. No dia 7 pela manhã celebramos a Missa, com um casamento de um casal de adolescentes. Depois da Missa, Frei Raoul celebrou os batizados. Perdemos o almoço nesta manhã, porque foi servido muito cedo e não prestamos atenção à chamada. Antes do meio-dia começamos a subida para a Cachoeira do Kreputiá, onde passamos algumas horas contemplando a paisagem e aproveitando para tomar um banho nas águas ainda cristalinas e puras do Rio Cururu. Dali, descemos à Aldeia de Bananal, onde pernoitamos. Reunimos com a comunidade à noite e celebramos a Eucaristia às 7h30 da manhã do dia 8 de outubro, com a primeira comunhão de quatro crianças. Após a Missa, retomamos a descida do Cururu até à Missão São Francisco, onde encontramos a acolhida amorosa de Ir. Claudia nos esperando com o almoço já na mesa. Nestes dias, as Irmãs Lioneide e Débora nos acompanharam nas visitas às Aldeias. Ir. Débora é excelente para animar os jovens e as crianças, bem como ajudar a preparar as liturgias em cada Aldeia. A participação dos jovens e crianças na animação é impressionante! A presença dos Ministros da Palavra e Catequistas em cada Aldeia é muito animadora. Um trabalho que precisa ser continuado com o apoio e a formação necessários. Uma última visita antes da nossa partida da Missão foi feita por Frei Raoul à comunidade do Posto Indígena Munduruku. Eles pediram esta visita na nossa passagem pela Aldeia, no dia 1º de outubro. Frei Raoul retornou ao Posto Munduruku, no dia 9 de outubro e celebrou com a comunidade alguns batizados de crianças. Retornou para a Missão no dia 10 de outubro, quando retornamos para Jacareacanga. Ainda celebramos também a Missa dominical na Aldeia São Francisco, na manhã do dia 10 de outubro. Ali, como em todas as Aldeias, sentimos o esvaziamento da participação nas celebrações pelo fato de muitas famílias terem descido para Jacareacanga naqueles dias. Os primeiros dias do mês são dias de receber benefícios, salários, aposentadorias etc. Nas reuniões que tivemos com os capitães de algumas aldeias, eles reclamaram dos sacrifícios, riscos e altos custos das viagens mensais até Jacareacanga.

 

Irmã Cláudia e dois jovens Munduruku. Foto: Arquivo pessoal.

 

Em todas as aldeias por onde passamos, as lideranças da comunidade nos pediram uma reunião. Em geral, era para apresentar suas necessidades e projetos de melhorias, especialmente para as Capelas. Mas as demais carências das aldeias saltam aos olhos de qualquer pessoa atenta: os postos médicos, as escolas, as capelas…  estão em lamentável estado de deterioração. Na reunião que tivemos com os capitães de algumas aldeias do Rio Cururu, na tarde do dia 3 de outubro, escutamos um rosário de necessidades das comunidades e pedido de ajuda para superar essas carências. Anoitei tudo e prometi estudar soluções e respostas para aquelas que estiverem ao nosso alcance. Outros detalhes se encontram na crônica que redigi sobre esta visita, registrando o dia a dia da viagem ao Rio Cururu e visitas a algumas de suas aldeias. Na passagem de volta por Itaituba, expus ao Dom Wilmar algumas destas carências e os pedidos das lideranças, especialmente no que toca à questão dos casamentos civis. 

 

Frei Edilson conversando com lideranças das aldeias. Foto: Arquivo pessoal.

 

Concluo estas linhas agradecendo a Deus pelo bom êxito da nossa visita e pela acolhida e hospitalidade fraterna que experimentamos em todo o percurso da viagem, começando pela hospitalidade dos confrades de Itaituba, a solicitude dos irmãos missionários Carmelitas de Jacareacanga, tão fraternos conosco, a acolhida das Irmãs Claudia e Débora, na Missão São Francisco, os cuidadosos pilotos Munduruku, Reginaldo e Elsio, e o carinho e hospitalidade dos irmãos Munduruku em todas as Aldeias por onde passamos, começando pelos Capitães, Ministros da Palavra e Catequistas que animam as comunidades na fé. 

Se tivermos missionários disponíveis e coragem para continuarmos presentes entre o povo Munduruku, continuaremos a ser a última presença missionária franciscana, de modo permanente e comprometido, entre os povos indígenas no Brasil. 

São Francisco de Assis, Santa Clara e São Benedito nos ajudem! 

Frei Edilson Rocha, OFM

 

 

Confira mais algumas fotos da visita: