WhatsApp Image 2022-01-11 at 17.09.03 (1)

A luz da Palavra na Mundurukânia: os primeiros dias do ano no Alto Tapajós

Na primeira parte do relato apresentamos as vivências de Frei Edilson, Frei Andrei e Frei Fábio nos primeiros oito dias de viagem, coincidindo com a oitava do Natal, da sua passagem pela Missão Cururu.

As narrativas que seguem se concentram do dia 31 de dezembro de 2021 até 06 de janeiro de 2022. O que embala as descrições é o forte sinal da luz, uma ilustração profunda do tempo natalino, e o simbolismo dos dons manifestados na epifania do Senhor, tudo isso mesclado com a realidade da nação munduruku do Alto Tapajós. 

 

Muita Luz no Ano Novo!

O dia que encerrou 2021 foi marcado pela celebração do Ano Novo. Em clima de vigília pela chegada de um novo tempo, as pessoas reunidas para a missa renderam graças pela vida no decurso do calendário civil que concluímos. Por algum motivo, após a liturgia da palavra, o gerador que fornece luz para a igreja deu uma parada, mas, com luz de velas e lanternas, seguiram com a eucaristia. É uma boa analogia ver que mesmo em uma capela escura sempre se pode dar um jeito e achar luzes para prosseguir. 

 

Santa Maria, Mãe de Deus

No primeiro dia de 2022, celebramos a liturgia de Santa Maria Mãe de Deus, que concluiu a oitava do Natal, com uma boa participação dos fiéis. Frei Edilson alertou que ao celebrar, temos sempre como centro da nossa fé a pessoa de Jesus, mas em Maria encontramos um exemplo de como deixar Cristo ser o mais importante em nossas vidas. Ele recordou que o ano novo representa para todos uma nova esperança, e que para os povos indígenas é uma oportunidade de buscar o bem viver, valorizando as sabedorias dos antepassados e o cuidado com a Terra. As temáticas das leituras mesclavam tanto a figura de Maria com o começo do novo tempo que chega com mais este ano civil. Na conclusão das preces, foi rezada a oração da paz, atribuída a São Francisco de Assis. No final da celebração, Frei Edilson deu a bênção para o início do ano de 2022.    

 

A luz das nações manifestou-se no Rio Cururu

No domingo da Epifania, este ano celebrado no Brasil no dia 02 de janeiro, tivemos a missa dominical na aldeia Missão São Francisco, a última celebração desta visita. Depois do Evangelho, Frei Edilson anunciou as datas das solenidades móveis, destacando a data da Páscoa (17 de abril), e afirmando a presença dos frades para essa celebração litúrgica. O Frade, ao começar sua reflexão, explicou o significado de Epifania como manifestação, derivada da sua origem na língua grega. Em seguida, pontuou que essa presença do Senhor que se revela é sentida em um só clima de Natal e de manifestação de Jesus. A luz é o grande símbolo deste tempo, pontuou ele. Vemos o mundo que se ilumina, mesmo muitas vezes sem saber e nem entender o sentido de tanta luminosidade. No entanto, no coração dos fiéis se acende a mais forte luz da fé. O nascimento de Jesus Cristo e sua manifestação acontece aos mais simples, como os pastores. Também aos magos, gente que vem de fora para adorar e reconhecer o seu esplendor. No meio do caminho de encontro com a luz, pode-se também topar com a perversidade de gente distante da claridade, nas vias da corrupção e da ganância, figurado em Herodes. Que a presença de Cristo acenda a luz que clareia os nossos passos na unidade neste ano de 2022, com clareza e lucidez para seguirmos como povo cheio de vida.

 

Primeira Missa na aldeia Paxiúba

Na tarde do domingo da epifania (02 de janeiro), os frades, irmãs e um grupo de leigos foram visitar e celebrar a eucaristia na aldeia Paixúba. O nome da aldeia, nome de uma palmeira, se deve na verdade a um igarapé de mesma denominação que passa pela comunidade. Celebraram a liturgia no barracão comunitário, e essa foi a primeira vez que a comunidade celebrou a eucaristia. A aldeia tem em torno de dois anos e ainda não tem uma capela e nem um santo padroeiro. Na ocasião, todos ficamos ao redor da grande mesa. Em seguida, no mesmo espaço, partilharam uma refeição com vinho de bacaba, beiju (beyo’a), café, chá e suco de muruci. Neste momento de partilha fraterna, as pessoas trouxeram também os seus animais de estimação para o barracão e uma diversidade de espécies de macacos, quatis e outros animais foi vista.

 

Testemunhas da luz

Os ministérios leigos na área pastoral da Missão Cururu têm se mostrado bastante fecundos na construção de uma ministerialidade eclesial com rosto amazônico. A formação e investidura de ministros da palavra tem evidenciado o protagonismo dos leigos para uma igreja missionária em saída. Uma consciência de responsabilidade pastoral frente aos desafios atuais da realidade munduruku tem crescido cada vez mais entre as lideranças da igreja local. Desde o ano de 2017, ano onde o ministério foi conferido para o primeiro grupo, os ministros da Palavra estão presidindo as liturgias com as aldeias e tem assumido seu bem papel eclesial. No ano de 2019, uma outra turma de ministros recebeu o mandato. No desempenho dessa função, que não é apenas da presidência litúrgica das celebrações, os ministros se enraízam na Palavra de Deus e testemunham a habitação dela no meio da vida dos Munduruku. A comunicação da Palavra é outra marca desse ministério, que pode muito bem ser feito na própria língua indígena. Dentro da Palavra que é luz emergem testemunhas como a de João Batista, pronta a anunciar o Cristo que ilumina as nações.

Inspirados por esse tipo bíblico, o grupo de ministros das aldeias da mundurukânia resolveu por iniciativa própria promover as “caravanas de São João Batista” como momentos de evangelização das comunidades. Esta ação se coloca como sinal da luz e efeito da Palavra de Deus. Esse trabalho também é fruto do trabalho missionário das pessoas que ajudaram na formação desses ministros e das comunidades que acolhem a Palavra de Deus.

 

 

Os dons que recebemos

No dia 04 de janeiro, os frades retornaram para Jacareacanga e seguiram rumo à Santarém, aonde chegaram no dia 06 de janeiro, dia da festa popular dos “Santos Reis”, trazendo na mala muitos presentes, que não são provenientes das “riquezas materiais”, mas simbólicas, que vem do encontro com a rica cultura no seio da Amazônia. Os frades trouxeram um paneiro cheio de boas conversas, de aprendizados e de situações inquietantes para pensar e refletir. Percebemos que estes são dons que devemos partilhar e que nos fazem crescer em comunhão com estes mais de cem anos de convivência. Outro dom desta viagem foi perceber como o Espírito faz germinar e florir as sementes dos ministérios, em especial na atuação dos(as) ministros(as) da Palavra e na sua atitude de testemunhar o Reino. Recolhemos no coração a dádiva de vocações religiosas autóctones, membros do povo Munduruku vocacionados a ser pains (paĩ) e irmãs. Isto tudo são candeeiros acesos do sonho socioecológico-eclesial da Querida Amazônia.   

Texto: Frei Fábio Vasconcelos

Fotos: Frei Edilson Rocha e Frei Andrei Anjos

WhatsApp Image 2022-01-11 at 17.05.46 (7)

Natal Munduruku: o fim de ano na Missão Cururu

Capela de Nossa Senhora da Conceição – Aldeia Primavera

 

Frei Edilson Rocha, Frei Fábio Vasconcelos e Frei Andrei Anjos estiveram do dia 23 de dezembro de 2021 a 04 de janeiro de 2022 na Missão São Francisco do Rio Cururu. Frei Edilson havia visitado as aldeias em outubro e com eles celebrado a festa do padroeiro da Missão. Desta vez teve a oportunidade de reunir com as lideranças, ouvir diversas pessoas do povo Munduruku, dar feedback para algumas demandas levantadas, conversar com as irmãs missionárias da Imaculada Conceição (SMIC), e também presidir os sacramentos da Eucaristia, Batismo, Reconciliação e Matrimônio. Frei Fábio e Frei Andrei retornaram à Missão depois de dois anos, local onde vivenciaram a experiência do ano fraterno pastoral em 2019.

Um clima de expectativa, próprio do Advento, embalou a viagem até o Cururu, que fica na terra indígena Munduruku, município de Jacareacanga – PA. A saída da cidade de Santarém ocorreu em 21 de dezembro e, ao chegarem em Itaituba, Frei Cândido Gean Akay – que estava indo para suas férias na sua terra natal, a Mundurukânia – somou-se ao grupo.

Em solo munduruku, os viajantes foram acolhidos pelas crianças da comunidade, uma característica da Missão. Para os frades, a sensação foi de que o próprio Menino de Nazaré veio ao seu encontro. Também no clima de recepção, encontraram-se com as irmãs Cláudia e Débora (SMIC), e as vocacionadas Leila Waro e Luciane Saw, que os aguardavam para mostrar-lhes sua estadia.

A aldeia se preparou não só para a chegada do “pain” (paĩ), mas para conjuntamente celebrar o Natal. Os irmãos indígenas prepararam toda a liturgia, incluindo os cantos e leituras, tudo para ter uma boa celebração. A igreja foi muito bem ornamentada para as liturgias natalinas, inclusive com um lindo presépio.

 

Crianças da Missão São Francisco contemplando o presépio

 

O Natal é a festa do encontro e festa das culturas reunidas, a troca de dons entre o céu e a terra. Estar na missão para celebrar o Natal é um presente, pois celebrar o Natal com os munduruku é uma grande oportunidade de sentir que o Verbo também se faz carne na Amazônia. O sentido da encarnação do verbo ganha um significado amazônico nessa experiência, pois Jesus se fez Curumim daqueles que brincam nas águas do Cururu e que se admiram com o lindo presépio da igreja.

Os frades celebraram a Noite e o Dia do Natal juntamente com as pessoas vindas de diversas aldeias do Rio Cururu, que marcaram grande presença nas celebrações. Os cantos e algumas partes da liturgia foram celebrados na língua Munduruku, um gesto que nos remete à Palavra que faz morada entre nós. Nas celebrações, o Evangelho é sempre proclamado na língua Munduruku por um Ministro da Palavra da comunidade.

As leituras da noite de Natal foram proclamadas pelos jovens da aldeia e um grupo encenou o Evangelho que narra o nascimento de Jesus. No momento da dramatização, uma criança colocou a imagem do Menino Jesus com traços indígenas no presépio. Comentando as leituras da celebração, Frei Edilson destacou que devemos ter o coração aberto para acolher Jesus que vem como criança. “Quem deixa Cristo nascer nas suas vidas, vai procurar colocar em primeiro lugar as pessoas que mais necessitam”, afirmou. Aqueles que abraçam o Menino Deus sempre saberão acolher os que vem ao seu encontro. O Natal é momento de alegria e esperança para todos os povos e isso se concretiza na mundurukânia. Ao celebrarmos o nascimento do Deus que vem até nós em um inocente bebê que nasce no desabrigo, nos traz uma grande alegria: o reacendimento das expectativas do povo. Que Deus dê a todos a alegria de viver e que o Natal seja todos os dias. Que cada uma das nossas casas seja como um presépio onde Jesus é acolhido e pode se manifestar.

 

 

Viver a Palavra que se fez carne

A tônica das leituras do dia de Natal foi a encarnação como anúncio da Palavra. O Verbo encarnado nos lança na proclamação da justiça e da paz do seu Reino. Foi nesta linha de pensamento que Frei Edilson expôs a homilia do dia de Natal. No começo da sua fala, refletiu o Evangelho proclamado à luz da importância da Palavra e da linguagem no viver humano (Prólogo do Evangelho de São João). Ele afirmou que é vital o aprendizado e o desenvolvimento da língua em uma cultura, não se pode deixar que esse aspecto importante se perca ao longo do tempo. Recordou que a presença de Jesus nos traz vida plena. Sendo a solenidade do Nascimento de Jesus um festejar da vida que nasce e que deve ser preservada, destacou a importância de preservar todas as formas de existência (todas as formas de vida).

Os Munduruku têm sido por séculos defensores da cultura, da natureza e do seu território. Hoje, muitos dos poderosos, como no tempo de Jesus, têm ameaçado a vida dos povos originários do Brasil. O Natal reacende em nós a consciência daquilo que precisamos para cultivar a paz. A leitura de Isaías, proclamada da liturgia daquele dia, recorda que a paz é um belo dom que deve ser buscado, o que também inclui a preservação da nossa Casa Comum.

Também recordamos que os Ministros da Palavra têm sido grandes anunciadores do Evangelho, e nesse mesmo dia fizeram uma reunião de planejamento de atividades com a presença de Frei Edilson. Foram celebrados oito batizados e um matrimônio no dia de Natal na Missão.

 

Batizados na Aldeia Primavera

 

A Família de Deus 

O dia 26, terceiro dia na Missão, foi marcado pela celebração da festa da Sagrada Família. Ao ter presente a figura de Jesus, Maria e José, recordamos a importância dos núcleos comunitários e familiares para acolher a vida nova que chega. Na homilia, Frei Edilson destacou que as crianças chegam até nós com a sua fragilidade e com a necessidade do cuidado. De forma similar, podemos observar a realidade da aldeia e compará-la às atuais ameaças do sistema de exploração.

Os Munduruku formam uma comunidade-família, de fato, uma numerosa família. Como em todo núcleo familiar, temos que acolher as diversidades e resolver no diálogo as nossas divergências, sempre visando o bem viver de todos(as). Com os olhos na família de Nazaré, nos colocamos a pensar nas relações internas entre as famílias, com suas mudanças em cada período histórico e o repasse geracional e refletir sobre o legado que as próximas gerações Munduruku receberão. Outro aspecto bem familiar é o da acolhida. Nas aldeias, sempre que um visitante chega, recebe um sinal de aconchego fraterno. Um dos temas bem frequentes nessa visita é a pergunta sobre a possibilidade dos frades ajudarem na realização de registros civis de casamento, uma demanda levantada desde outubro de 2021. Frei Edilson tem procurado os meios para viabilizar, juntamente com as instâncias competentes, os registros de casamentos civil.

 

Aldeia Primavera

 

Nas veias dos rios da Amazônia

Navegar pela Amazônia é fazer um processo de tornar-se um elemento na corrente dos rios, deixar-se mergulhar e enveredar por varadouros como componentes de um fluir dos rios que levam vida. Dentro das veias da Amazônia, que são os rios e suas ramificações, entramos em um processo de encarnação na realidade (ideia sonhada desde o Encontro dos Bispos em Santarém, em 1972). Assim, nossos missionários adentraram no devir do Tapajós, Cururu e seus afluentes. Logo ao chegar, algumas aldeias solicitaram a visita dos pains, entre elas Primavera, Santa Maria e Paxiúba. As liturgias no tempo do Natal foram celebradas na sede da Missão e nas visitas às demais comunidades indígenas.

No dia 27, os frades, irmã Débora e uma equipe missionária partiram para a Aldeia Primavera, que fica próxima da nascente do rio Tapajós. No caminho, o grupo parou em diversas aldeias ao longo do Cururu para deixar materiais para as celebrações da Palavra e uma imagem de Santa Clara para a aldeia Saw Muybu. No dia 28, celebraram com a comunidade e depois do almoço retornaram para a Missão. A subida do Rio Cururu para a aldeia Santa Maria foi feita na tarde do dia 29 de dezembro. Desta vez a equipe de missionários foi composta por Frei Edilson, Irmã Cláudia, Frei Andrei, Frei Gean, Frei Fábio e a vocacionada Leila Waro. Materiais de celebração também foram deixados nas aldeias. Na comunidade Bananal, uma imagem de Cristo Rei foi entregue para o povo.

Na manhã do dia 30, a aldeia celebrou a eucaristia com a participação de um bom número de pessoas. Na ocasião, realizou-se o matrimônio de dois jovens casais e em seguida o batizado de nove crianças. A visita foi igualmente uma oportunidade de rever algumas pessoas conhecidas, de conversar com os Ministros da Palavra e com as lideranças da aldeia. Depois do café comunitário partilhado, a equipe partiu de volta à Missão, com paradas para momentos de encontro e sacramentos nas aldeias Bananal, Muiussu e Pratati-Cajual. Esta segunda etapa da viagem foi de certa maneira uma “maratona” de celebrações, no bom sentido do termo. Na segunda parte deste relato veremos um pouco sobre como foram as celebrações do Ano Novo e da manifestação do Senhor.

 

Texto: Frei Fábio Vasconcelos, OFM.

Fotos: Frei Andrei Anjos, OFM e Frei Edilson Rocha, OFM.