Foto: Acervo da Custódia
Ancorada no testemunho evangélico de João 1, 14 (1), desde os seus primórdios a Igreja ensina que o mistério da Encarnação “é o fato de o Filho de Deus ter assumido uma natureza humana para realizar nela a nossa salvação” (CIC 461). A graça da Encarnação é intimamente ligada à salvação humana, é o grande dom de Deus-Pai que ama toda criatura; e, por isso, comove-se com o gênero humano e quer que todos tenham a vida eterna (2).
A Tradição fez eco desta verdade bíblica como um dos sinais distintivos da fé cristã. Com a Encarnação, Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A Igreja teve que clarear e defender tal verdade de fé perante as heresias, que começaram a surgir nos primeiros séculos do Cristianismo (3) e ameaçavam ruir a doutrina da Encarnação de Cristo como parte do plano amoroso de Deus de fazer a humanidade participar da sua natureza divina: “Pois o Filho de Deus se fez homem para nos fazer Deus” (4).
A humildade da Encarnação
Há treze séculos de distância do nascimento de Cristo Salvador, São Francisco de Assis (1181-1226) respirou e viveu o ensinamento da Tradição acerca do mistério da Encarnação. Para ele, o Natal era “a festa das festas, em que Deus, tornando-se criança pequenina, dependeu de peitos humanos” (2Cel 199,1). A festa do Natal o enternecia mais do que as outras solenidades, pois essa evoca “a humildade da Encarnação de Deus” (1Cel 84, 3; 4CtIn 19-22), que permanecendo o Deus que sempre era, assumiu o ser humano que nem sempre era.
A tal mistério de humildade do Deus-Menino, o Pobrezinho de Assis não quis somente professar a sua fé ortodoxa, mas ir além das teorias. São Francisco quis abrir o coração, alegrar-se totalmente e celebrar “a memória daquele Menino que nasceu em Belém e ver de algum modo com os olhos corporais os apuros e necessidades da infância dele” (1Cel 84, 8). Ele bem entendia que se todos os homens tivessem presente e concreta a imagem do Salvador, amariam a Deus com obras, e não somente em palavras. É o mistério da noite abençoada do Natal, na qual “Deus nos deu um Presente sem preço: deu-se a si mesmo num Menino” (5).
A celebração do Natal de 1223, realizada pelo santo de Assis (cf. 1Cel 84-87), deu-se num vilarejo da Itália, próximo de Assis, chamado Greccio, onde havia uma gruta semelhante àquela de Belém; e próprio ali, São Francisco pediu que tudo fosse preparado diligentemente para celebrar a Eucaristia, de maneira digna num dia tão santo e festivo. Ao representar, ao vivo, o nascimento do Menino de Belém, o santo demonstrou a todos os presentes a certeza que a humanidade inteira foi realmente salva naquela noite santa, através da humildade da Encarnação de Deus.
São Francisco de Assis não foi o idealizador do presépio que hoje conhecemos. Representações teatrais da Natividade de Jesus – com canções, máscaras e roupas luxuosas – já existiam naquele tempo (6). Contudo, ao contrário de todas aquelas majestosas encenações – muito mais folclóricas que realistas – na manjedoura franciscana preparada para a solenidade da missa “se honra a simplicidade, se exalta a pobreza, se elogia a humildade; e de Greccio se fez como que uma nova Belém” (1Cel 85, 5). A originalidade de São Francisco está, portanto, na sua celebração vivida com grande fervor, simplicidade e festosa alegria, estabelecendo “uma ligação entre a vinda de Jesus no presépio de Belém e sua vinda sacramental no altar da Eucaristia” (7).
Toda Eucaristia celebrada é Natal
O presépio vivo organizado por São Francisco transmite a manifestação real do encontro entre o divino e o humano, e é neste encontro que Deus se humilha pela salvação da humanidade. Porém, na manjedoura não está o Menino de Belém representado por uma criancinha, pois é na hora da consagração eucarística que Ele descerá invisivelmente, vivo e verdadeiro, sobre as formas humildes do pão e do vinho, e assim, em pessoa estará sobre o altar-manjedoura.
Para o santo de Assis, todos os dias Deus se humilha e vem até nós em aparência humilde, já que “diariamente ele desce do seio do Pai sobre o altar nas mãos do sacerdote (…) Ele se manifesta a nós no pão sagrado” (Ad., I, 18-19). Isto é, a realidade da carne física do Filho de Deus é presente verdadeiramente na realidade da “carne” eucarística de Jesus. A conjunção manjedoura-altar é a originalidade de São Francisco, que no seu presépio vivo em Greccio atualiza no sacramento da Eucaristia o mistério do nascimento histórico de Jesus de Nazaré.
É muito claro o pensamento deste santo medieval, isto é, Eucaristia e Encarnação remontam ao mesmo cenário de fundo: o amor gratuito de Deus. E a maior prova do seu amor é a Encarnação do seu Filho para a salvação humana, recordada em cada Eucaristia celebrada. Sendo assim, “a Eucaristia perpetua a Encarnação de Cristo na história” (8). É por isso que em São Francisco a viva voz grita, exortando: “Pasme o homem todo, estremeça o mundo inteiro, e exulte o céu, quando sobre o altar, nas mãos do sacerdote, está o Cristo, o Filho de Deus vivo … Vede, irmãos, a humildade de Deus e derramai diante dele os vossos corações!” (Ord 26; 28).
O Natal não é somente um dia do ano. Jesus se oferece no altar todos os dias, como num novo nascimento. Em toda celebração eucarística Ele está vivo no pão sagrado, renasce no meio de nós, como outrora em Belém. Portanto, toda Eucaristia celebrada é Natal.
Noite Feliz
Já dizia o papa S. Leão Magno na vigília de Natal: “Alegremo-nos. Não pode haver tristeza no dia em que nasce a vida; uma vida que, dissipando o temor da morte, enche-nos de alegria com a promessa da eternidade” (9). E São Francisco experimentou o mesmo sentimento jubiloso quando ficou “contrito de piedade e transbordante de admirável alegria” (1Cel 85, 10) diante do presépio, e contemplou na Eucaristia natalícia o nascimento do Menino Deus.
A noite de Natal não deve ser como as demais noites! Aquela noite foi uma noite feliz. Se até os anjos cantaram jubilosos “glória a Deus nas alturas” (Lc 2, 14), como também não devem alegrar-se os homens para os quais o Filho de Deus nasceu? Em Greccio, a multidão que acorreu à celebração natalina se alegrou, cantou, dançou a Cristo como Luz de felicidade que irradiou as trevas da tristeza, salvando toda criatura. Então, a causa de alegria nesta noite deve ser comum a todos: “Exulte o justo, porque se aproxima da vitória; rejubile o pecador, porque lhe é oferecido o perdão; reanime-se o pagão, porque é chamado à vida” (10).
São Francisco, inclusive, queria que todos comessem carne fartamente, sobretudo os pobres e os famintos, recusando a prescrição do jejum no dia de sexta-feira; queria que os animais e os passarinhos também tivessem feno e ração com fartura (cf. 2Cel 200). O santo entendeu bem o mistério da Encarnação, pela qual também “o Filho enobrece toda a criação…fazendo-a divina e tornando-a filho e assim a conduz ao Pai” (11).
Sinal de tão grande júbilo de festa no Natal de Greccio foi a luz. Velas e tochas foram trazidas pela multidão com ânimo exultante para iluminar aquela noite (cf. 1 Cel 85, 2), na qual o Bendito Menino Deus, novo astro cintilante, iluminou a noite como o dia. A sua luz é para sempre! Na época de São Francisco de Assis, sabe-se que era uma prática litúrgica reforçar a iluminação nas igrejas na noite de Natal, como uma forma de representar aos fiéis a clareza e o fulgor daquele evento divino celebrado (12). O povoado de Greccio e São Francisco agiram de acordo com a práxis e as normas litúrgicas do tempo.
Não pode reinar no coração humano a indiferença quando o Natal ilumina, alegra e encoraja a vida. Celebrar a Encarnação de Cristo implica mais do que saber e refletir. Assim como fez o Pobrezinho de Assis, o Natal nos lembra que é preciso reconhecer humildemente nossa pobreza humana tão necessitada da graça divina. E, ao mesmo tempo, reconhecer também a realidade sagrada existente em nossa vida tão necessitada de amparo. E neste tempo obscuro pelo qual a humanidade passa com a pandemia da COVID-19, mais uma vez é Natal. E só será Natal real e significativo quando a luz da caridade e do cuidado com os mais vulneráveis da sociedade se transformam em ações generosas de solidariedade, que são gestos de esperança e vitalidade que afugentam a tristeza e a morte.
Frei Elder de Sousa Almeida, OFM
(1) Cf. Jo 1, 14: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós”; cf. também Jo 3, 16; 1 Jo 4, 10. 14
(2) Cf. G. de Nissa, Or. Catechesis, 15: “Doente, nossa natureza precisava ser curada; decaída, ser reerguida; morta, ser ressuscitada. Havíamos perdido a posse do bem, era preciso no-lo restituir. Enclausurados nas trevas, era preciso trazer-nos à luz; cativos, esperávamos um salvador; prisioneiros, um socorro; escravos, um libertador. Essas razões eram sem importância? Não eram tais que comoveriam a Deus a ponto de fazê-Lo descer até nossa natureza humana para salvá-la, uma vez que a humanidade se encontrava em um estado tão miserável e tão infeliz?
(3) Cito algumas: Docetismo, Gnosticismo, Arianismo e Nestorianismo.
(4) S. Atanásio, De Incarnatione, 54, 3; Cf. Credo Niceno-Constantinopolitano, DS 150.
(5) L. Boff, Natal: A humanidade e a jovialidade de nosso Deus, Petrópolis 2001, 37.
(6) C. Van Hulst, Natal, em Dicionário Franciscano, Petrópolis 1999, 471.
(7) Van Hulst, 469.
(8) F. Accrocca, Il Natale di Francesco a Greccio nel 1223, 170: “ L’eucaristia perpetua quindi l’incarnazione di Cristo nella storia …”
(9) S. Leão Magno, Sermo in Nativitate Domini, 1.
(10) S. Leão Magno, 1
(11) S. Atanásio, Ad Serapionem, 1, 25.
(12) Cf. F. Accrocca, 172.