jeremias2

A profecia em Jeremias e as esperanças amazônicas

O contexto da profecia de Jeremias 

A profecia na literatura bíblica é marcada por fases, nomes, circunstâncias. Desse modo, podemos afirmar que profecia e história caminham juntas. O passado muitas vezes é apresentado no embate entre a bondade divina e a incoerência humana. A realidade presente, torna-se assim, o lugar da decisão. Podemos notar que o futuro na profecia é diferente da abordagem apocalíptica. O futuro dos textos proféticos, em sua maioria, tratam de uma dimensão dentro vista dentro do curso histórico e sem o desaparecimento do mundo presente. Esse futuro começa aqui. Uma realidade que é ao mesmo tempo distante e imediata. Sobretudo, destaca-se que a esperança e o porvir são obra divina em colaboração com o agir humano. 

A literatura profética de Jeremias se insere em um contexto histórico de pós-invasão e destruição do Templo de Jerusalém. Estamos diante de uma situação de desorientação, desolação. E o profeta Ezequiel na circunstância exílica dá um acento maior na promessa do que na condenação. O livro de Jeremias se distingue em duas grandes partes e um apêndice histórico, fruto de um laborioso processo de edição redacional. Podemos em Jeremias encontrar os juízos e as narrativas sobre o profeta com as promessas do Senhor.   

Jeremias tem uma reflexão marcada pelas tradições da sua região (Anatot). Podemos reconhecer uma ênfase do reino nortista na Tradição do êxodo. A relação entre realidade e literatura é muito forte, a profecia de esperança espelha uma realidade de clamor por novos caminhos. Os cantos de esperança são vistos também na nossa realidade nacional, os tons melancólicos ou esperançosos aparecem em nosso cancioneiro. O canto dos retirantes e dos migrantes na Amazônia hoje parecem ser essa canção do esperançar. 

Nossas esperanças franciscanas e amazônicas

O lema do nosso Capítulo Custodial de 2022 é tomado da profecia de Jeremias (Jr 29, 11): “para dar-lhes um futuro de esperança”. Essa frase é uma mensagem aos exilados para uma vivência no agora e para o futuro, que pode ser lido como geração presente e vindoura. O que vamos legar aos próximos no sentido de Custódia e de Amazônia? Deus lança uma palavra de “retorno”, uma boa nova aos exilados pela boca do profeta. Hoje em dia estamos falando muito de ponto de não retorno das crises ecológicas. O planejamento, o pensamento, e as ideias de YHWH sobre os exilados é dar, oferecer, permitir um futuro de paz e esperança. 

 

Essa carta profética aos exilados apresenta um modo de viver e de dirigir-se a Deus, um viver esperançoso. Deus que é fonte e origem do tempo nos dá não apenas mais momentos de vida qualquer, ou de sofrimentos, mas tempos de esperança. São inegáveis crises da realidade de Jeremias e da nossa, porém a resposta pode ser desespero, falta de expectativa, indiferença ou inércia. Porém, cria em nós grandes sonhos. Podemos ainda embarcar nas falsas promessas e ilusões dos pseudo-profetas, por isso é preciso ter grande capacidade de discernimento das esperanças. Desterrados e despojados da esperança podemos nos agarrar nas falsas expectativas de uma exploração total dos recursos naturais que ameaça a existência das futuras gerações. 

Um futuro de esperança e profecia 

A urgência da profecia é defendida na exortação “Querida Amazônia”, quando fala da necessidade de “um grito profético e um árduo empenho em prol dos mais pobres” (QA, 8). A Igreja deve exercer com transparência o seu papel profético no coração da Amazônia, sendo voz e ação, respondendo aos clamores da terra e dos sofredores. Essa postura que tantas vezes tem guiado o caminhar das comunidades dessa região. A denúncia e a poesia, são elementos contemplativos e  proféticos. Somos convocados então, para testemunhar “a profecia da contemplação” (cf. QA, 53-57).

Partido da ideia de qadosh (kadosh) que lembra a destinação para um fim, reservado e separado com uma vocação e missão podemos pensar o futuro amazônico. Dessa forma, nossa destinação coletiva é de sermos todos e todas consagrados para um futuro de esperança compartilhada com os povos e culturas amazônicas. A expressão qadosh se vincula a um projeto de vida pautado na esperançosa existência na Amazônia.  Região amazônica é um espaço sagrado destinado a frutificar na esperança. 

A sacralidade amazônica e a vida consagrada nessa parte do mundo se unem como chamado para um destino de vida plena, não de permanência no desterro. Nossa consagração e vocação é chamada a ser profecia do Reino, promessa maior que nos anima a viver e lutar por uma Amazônia justa e fraterna. O anúncio e serviço da esperança pertencem às características da vocação à  profecia e santidade amazônica.  

Fábio Vasconcelos, OFM    



religiosas

Profecia: substantivo feminino

 

Mensagem do Custódio para o Domingo da Vocação Religiosa Consagrada

No terceiro domingo de agosto, mês das vocações, celebramos o dia da Vida Consagrada, no contexto da solenidade da Assunção de Nossa Senhora. A Virgem Maria é modelo de consagração e seguimento, como nos atesta a Exortação Apostólica “Vita Consecrata”:  Maria é aquela que, desde a sua imaculada conceição, reflete mais perfeitamente a beleza divina. “A relação com Maria Santíssima, que todo fiel tem em consequência da sua união com Cristo, resulta ainda mais acentuada na vida das pessoas consagradas. (…) Em todos os institutos de vida consagrada existe a convicção de que a presença de Maria tem uma importância fundamental, quer para a vida espiritual de cada uma das almas consagradas, quer para a consistência, unidade e progresso da inteira comunidade.

Maria é, de fato, exemplo sublime de perfeita consagração, pela sua pertença plena e dedicação total a Deus.  Escolhida pelo Senhor, que n’Ela quis cumprir o mistério da Encarnação, lembra aos consagrados e consagradas o primado da iniciativa de Deus. Ao mesmo tempo dando o seu consentimento à Palavra divina que n’Ela Se fez carne, Maria aparece como modelo de acolhimento da graça por parte da criatura humana”. (VC 28) Nós, consagrados e consagradas, contemplamos em Maria e n’Ela encontramos o nosso modelo de entrega total e consagração a Deus e ao Seu Reino.

Neste dia da Vida Consagrada de 2021, eu gostaria de homenagear de modo especial a Vida Consagrada feminina. Às vésperas desta data, no dia 13 de agosto, recebemos a notícia, aqui em Santarém (PA), do falecimento de uma mulher consagrada, que doou grande parte da sua vida aqui na Amazônia, mais especificamente nesta cidade de Santarém, cuidando especialmente da saúde, da vida de pessoas idosas, enfermos e, muito particularmente, de outras pessoas consagradas, missionárias, aqui na nossa região. Trata-se da Ir. Alice Colleta Reckamp, da Congregação das Irmãs Filhas do Sagrado Coração de Jesus e Imaculado Coração de Maria, que foi missionária franciscana na região por 44 anos, dos quais a maior parte foi dedicada aos serviços no Hospital-Maternidade Sagrada Família. Ir. Alice era biomédica e se dedicava bastante aos trabalhos no laboratório de análises clínicas do hospital. Seu testemunho de doação, desprendimento, dedicação, cuidados pela vida e saúde das pessoas, discrição, simplicidade… e as outras pessoas que a conheceram podem acrescentar outras virtudes à lista.  Ir. Alice simboliza inúmeras outras mulheres consagradas, que deram a vida, frequentemente de forma anônima, sem “marketings” de qualquer tipo, com total dedicação, em espírito de obediência, pobreza e sem se apropriar de nada, no exercício totalmente gratuito da Missão, cumprindo o mandato de Jesus: “De graça recebestes, de graça deveis dar” (Mt 10, 8).  Lembro com carinho e respeito da Ir. Alice, e me vêm à memória uma galeria inumerável de imagens de consagradas que marcaram a minha vida, desde as primeiras catequistas, na Escola Ezeriel Mônico do Matos, as Irmãs Adoradoras do Sangue de Cristo, que moravam no Colégio São Raimundo. Depois, conheci aquelas da mesma Congregação, que marcavam presença no Seminário São Pio X, em Santarém, como professoras ou na cozinha, produzindo conhecimento e alimentos para um pequeno batalhão de Frades e Seminaristas. Entre as que atuavam junto ao Seminário, duas foram particularmente marcantes: Ir. Agostinha e Ir. Filipa. Mas, muitas outras passaram pela vida daquele educandário, onde estudaram várias gerações de rapazes de toda a região amazônica.

A vida consagrada é profecia do Reino de Deus. Profecia é um substantivo feminino, não apenas na gramática, mas especialmente na vida consagrada feminina, nas tantas mulheres consagradas, que ao longo dos tempos, têm dado testemunho profético nesta imensa Amazônia. Lembro aqui de mais alguns nomes, apenas para ilustrar, sem esquecer que são muitas pessoas.  As missões seriam impensáveis e, em muitos casos, impossíveis, sem a presença das mulheres consagradas.  E nós, como Igreja, precisamos manifestar maior e mais justo reconhecimento às Mulheres Consagradas pela grandeza de sua presença e ação na missão evangelizadora da Igreja.

Quando falo de vida consagrada feminina profética, lembro de pessoas corajosas, como a Ir. Regina Watchowska, que conheci ainda no vigor de sua juventude, trabalhando com o Frei Lucas Tupper, na Clínica dos Pobres, em Santarém, depois em Itacoatiara, de onde foi expulsa e, por fim, na periferia de Manaus (AM), já bem idosa, trabalhando com mulheres pobres e com menores infratores, que ela acompanhava na qualidade de assistente social. Era nutrida pelo compromisso com os pobres, pelo Evangelho e pela amizade com as outras pessoas consagradas, especialmente no âmbito da CRB – núcleo de Manaus.  Um testemunho eloquente de coragem, de desprendimento, de pobreza e entrega total à missão. Ir. Regina era uma espécie de “freelancer missionária”, da Congregação das Franciscanas de São José.  As Missionárias da Imaculada Conceição (SMIC), desde a sua fundação, há pouco mais de um século, trabalhando na saúde, na educação, na pastoral, na Missão São Francisco do Rio Cururu, contam com grandes figuras missionárias, que marcaram a vida de muita gente aqui na região. Impossível lembrar dos nomes de todas, mas vêm-me à lembrança as irmãs que conheci na Missão São Francisco, no Cururu: Ir. Conceição, Ir. Emiliana, Ir. Arimateia, Ir. Helena…  Atualmente, as irmãs, como em outras épocas de crise, seguraram a presença missionária entre os Munduruku, com as jovens Ir. Cláudia e Ir. Débora.  Mulheres corajosas e proféticas!

Em Manaus, reencontrei muitas irmãs Adoradoras do Sangue de Cristo, já idosas, aposentadas, depois de muitos anos de trabalho em várias áreas da Amazônia, especialmente na Prelazia de Santarém.  Elas trabalharam em parceria com os frades em vários lugares. Como morávamos relativamente próximo à casa das Irmãs Adoradoras, durante muito tempo eu ia celebrar a missa dominical com elas nas tardes de sábado, na Capela do Colégio.

Ainda na capital amazonense, encontramos duas outras congregações femininas, ambas franciscanas, que marcaram muito a minha vida e experiência como consagrado: as Franciscanas Missionárias de Maria, com quem tivemos uma convivência muito fraterna e compartilhamos a missão. Muitas das irmãs já eram idosas e a congregação dava um testemunho muito bonito de coragem, realizando um processo de reestruturação por causa da redução do número de religiosas e por causa da idade avançada de muitas irmãs. Na convivência com elas, descobri a beleza da história daquelas missionárias, ao longo de mais de oitenta anos, dedicando-se especialmente à evangelização nos interiores do Amazonas e aos cuidados com a saúde dos hansenianos.  Cresci muito na minha vocação franciscana e presbiteral na convivência com as irmãs FMM. São exemplos de mulheres corajosas, decididas, proféticas… inesquecíveis! Sou muito grato a elas por tudo o que me ensinaram em nossos encontros semanais, nas longas conversas à mesa ou nas serestas que fazíamos após o jantar.  Elas fizeram a ponte para a nossa entrada em Manaus, em 1997. As FMM nos acolheram e as Filhas de Sant’Ana nos cederam uma casa no Retiro Sant’Ana durante um ano, enquanto procurávamos um lugar em Manaus. As Franciscanas de Nossa Senhora Aparecida ou “Aparecidinhas”, que marcaram presença na área missionária de Nossa Senhora dos Navegantes, onde também servíamos pastoralmente, são outra presença feminina muito marcante na minha vida e missão como consagrado. Nós morávamos quinze quilômetros distante da área missionária, mas as irmãs “Aparecidinhas” moravam no Mauazinho, onde estava a sede da área missionária.

As Irmãs de Nossa Senhora Aparecida, além do Mauazinho, tinham também uma presença no Careiro da Várzea, do outro lado do rio – encontro dos Rios Negro e Solimões – e cuidavam de bem uma centena de comunidades ribeirinhas. É a congregação com o mais forte espírito missionário que eu conheci. As irmãs eram verdadeiras militantes da dimensão missionária, engajadas ativamente nos organismos responsáveis pelas missões na Arquidiocese de Manaus. Eram as primeiras e mais entusiastas participantes e pregadoras de missões populares. Vêm-me a lembrança alguns nomes, apesar dos anos que já se passaram desde então:  Idelsa, Iriete, Celia, Lidia…

Outras congregações femininas chegaram à esta região, nos últimos cinquenta anos, como as queridas Irmãs Franciscanas de Maristela, que têm marcado presença em algumas Igrejas locais da Amazônia, enriquecendo a presença carismática e profética da vida consagrada. E mais recentemente, sei de outras congregações que chegaram e estão atuando na evangelização, nos interiores da Diocese de Santarém. Cada grupo que chega, traz sua experiência e enriquece a Igreja e a própria vida consagrada com os seus carismas próprios.

Faço alguns acréscimos aqui neste texto, atualizando-o com a menção dos nomes de outras pessoas, que certamente não esgotam as lembranças de mulheres consagradas que considero proféticas, entre as muitas com quem tive contato direto ao longo da minha vida. Depois de concluir este texto, escrito um pouco às pressas, às vésperas do dia 15 de agosto de 2021, lembrei de outras mulheres consagradas que marcaram muito a minha história: durante os tempos de estudante de filosofia, em Belém, e, mais tarde, como professor e participante ativo da CRB – Conferência dos Religiosos do Brasil, no núcleo de Manaus. Em Belém, desde 1979, conheci a Ir. Dorothy Stang. Eu trabalhava no escritório da CPT – Comissão Pastoral da Terra, setor de documentação e acompanhamento de áreas com conflitos de terras. Eu estava no início da minha década dos 20 anos. Quando chegavam grupos de “posseiros” ou lavradores que vinham buscar ajuda e assistência jurídica, denunciar conflitos de terras etc. Às vezes eu acompanhava os grupos nas brevíssimas audiências que o então Governador do Estado, Alacid Nunes, concedia aos lavradores e aos seus acompanhantes, geralmente nós da CPT e a assessoria jurídica. Muitas vezes eu vi a Ir. Dorothy, ainda no vigor da idade, acompanhando estes grupos, que vinha da região de Marabá e da PA-150, onde ela trabalhava com o Pe. Paulinho, um missionário da Congregação dos Oblatos de Maria Imaculada – OMI. O Comprometimento da Ir. Dorothy com as causas dos lavradores, posseiros, pequenos agricultores, durou longos anos, até o seu covarde assassinato, em Anapu, Pará, já em outro tipo de ação profética, que unia a causa dos trabalhadores do campo com a preservação ambiental e a defesa da floresta amazônica. Por coincidência, o assassinato dela aconteceu em 12 de fevereiro de 2005, quando estávamos em Ananindeua, na segunda etapa da escola de formadores da CRB. Na etapa anterior, de agosto de 2004, alguns dos participantes da escola testemunharam, na mesma Ananindeua, na casa das Irmãs do Coração Eucarístico, uma decisão de Ir. Dorothy, diante dos Bispos reunidos, de continuar o seu trabalho em Anapu, apesar de já estar sendo ameaçada de morte pelos madeireiros e exploradores criminosos da região de Anapu.  Ali, no mesmo escritório da CPT, em Belém, conheci também a Ir. Rebeca Spears, da mesma Congregação das Irmãs de Notre Dame, da qual também Dorothy fazia parte. Rebeca se dedicava à pastoral indigenista, no CIMI, junto ao Pe. Nello Ruffaldi e a equipe de missionários que atuavam no regional Norte II. Mulheres muito corajosas e decididas a ir até às últimas consequências no seu compromisso com os pequenos e oprimidos.

E agora uma recordação no campo acadêmico, no antigo CENESCH e atual ITEPES (Instituto de Teologia situado em Manaus), três mulheres consagradas teólogas foram muito significativas para mim, companheiras de trabalho na formação teológica para as Igrejas locais da grande Amazonia: Sônia, Bozena Stencil e Nilda Nair Reiner. Essas dedicadas estudiosas têm seu empenho registado nas vidas de um geração de teólogos e teólogas da região norte.

A todas as mulheres consagradas, corajosas e proféticas, vai a minha homenagem neste dia da Vida Consagrada! Somos muito agradecidos a Deus pelo dom que é a presença de vocês no meio do povo de Deus, especialmente aqui na Amazônia, tão necessitada de missionários e missionários generosos, corajosos e proféticos! Somos muito agradecidos pelas numerosas mulheres consagradas que deram suas vidas na missão, aqui nesta região. E somos muito agradecidos por vocês que continuam presentes e dando testemunho corajoso e profético da consagração total a Deus, no anúncio da Boa Nova do Reino.  Deus abençoe todas as Congregações Femininas com numerosas, santas e generosas vocações!

Frei Edilson Rocha, OFM

Custódio

Santarém, Pará, 15 de agosto de 2021