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Quaresma e o tempo da purificação e iluminação

Catequese de adultos – Comunidade São João Batista (Paróquia Cristo Libertador) Foto: Fátima Carvalho (Catequista da Comunidade).

 

A Quaresma e a iniciação Cristã

O catecumenato é um tempo de vivência comunitária e instrução catequética. São os primeiros passos na comunidade dos catecúmenos, ou seja, aqueles e aquelas que se preparam para receber os sacramentos da Iniciação Cristã (Batismo, Confirmação e Eucaristia). As expressões “catecúmeno” e “catecumenato”, assim como catequese, têm sua raiz no termo grego Kat-eco, fazer ecoar ou instruir pela palavra (Adazabal, 2013). O tempo de preparação para a celebração da iniciação cristã sempre foi marcadamente um caminho comunitário e não somente dos “iniciandos”

A estruturação do processo do catecumenato pode ser datada no século II e é vista como fundamental na dinâmica eclesial até o século V. Essa prática foi aos poucos deixada de lado e retomada vivamente a pedido do Concílio Ecumênico Vaticano II. A restauração do catecumenato aparece nos números 64, 65 e 66 da Constituição sobre a Sagrada Liturgia. O mesmo documento, ao falar sobre a Quaresma, solicita que nesse tempo litúrgico seja realçada a “recordação ou preparação do Batismo” (SC, 109). O catecumenato é um processo que privilegia etapas e ritos na caminhada dos catecúmenos. Hoje em dia se fala bastante de uma catequese com inspiração catecumenal.  

 

Como o RICA descreve o tempo da Purificação e iluminação 

O Ritual de Iniciação Cristã de Adultos (RICA), ao introduzir o tempo de purificação e iluminação, nos diz que essa etapa deve ser realizada, normalmente, na Quaresma. O n. 133 do RICA apresenta a Quaresma como tempo para uma “preparação imediata para a iniciação”. O primeiro domingo da quaresma é o dia indicado habitualmente para celebrar a eleição ou inscrição do nome e o 3º, 4º e 5º domingos quaresmais são reservados para os escrutínios. A celebração dos escrutínios, realizada por meio dos exorcismos, ou que poderíamos chamar “orações de libertação”, tem por finalidade purificar os espíritos e corações, dar força contra as tentações e tudo mais em vista da mais estreita união com Cristo (cf. RICA, 154).  

Nesta segunda etapa, após sua eleição e admissão, passam a ser chamados de eleitos, iluminados ou competentes. Esse tempo se situa depois do tempo de catecumenato e antes da mistagogia. É um tempo de intensa preparação espiritual, marcado por vários ritos, especialmente escrutínios e entregas.

 

Uma comunidade que caminha para vida nova

Recordando que toda a comunidade se renova nesse tempo juntamente com os catecúmenos, a Quaresma é o tempo favorável onde fiéis e catecúmenos se entregam ao recolhimento espiritual (cf. RICA, 152). Na celebração quaresmal se “reabre o caminho do Êxodo”, o tempo do deserto e da preparação, e igualmente se refaz o itinerário de cada batizado que rememora sua iniciação. 

As leituras para o Ciclo Litúrgico do Ano A tem um acentuado caráter de catequese de iniciação. Do terceiro ao quinto domingo elas recordam a Samaritana, o Cego de nascença e a ressurreição de Lázaro. Enquanto as primeiras leituras retomam momentos específicos da história da salvação relacionados aos evangelhos. Água, luz e vida são símbolos fortes desses domingos, principalmente quando se rezam os escrutínios com os eleitos. As leituras se unem harmoniosamente com os textos das orações do RICA. Essas leituras, pela sua grande importância para a IVC, sobretudo onde há catecúmenos, são sugeridas também para os demais anos (B e C).

A celebração do catecumenato refaz a unidade perdida, ou em outros termos, reconcilia o vínculo entre catequese e liturgia. A índole batismal e catequética da caminhada quaresmal coloca a Igreja todos os anos em oração e união com os que se tornaram seus novos membros. Do mesmo modo, a cada quaresma, cada fiel revive o desejo de amar a Deus e de viver seu compromisso batismal. A comunidade é aquela que reza, instrui, acolhe e acompanha os eleitos no seu processo de iniciação. O tempo de purificação e iluminação não é somente um tempo para aqueles(as) envolvidos(as) no itinerário catecumenal, mas tempo para toda a comunidade dos fiéis. A necessidade de conversão como mudança de atitudes e mentalidade dialoga com a penitência quaresmal. 

 

 – Fábio Vasconcelos, OFM

Florencio 4

A Quaresma e a Semana Santa no interior da Amazônia

 

 

Sendo os povos indígenas e comunidades tradicionais na Amazônia muito marcados pelo catolicismo desde o início da colonização, como essas pessoas vivenciam o período da Quaresma e Semana Santa? Quais as especificidades dessas celebrações na região, em relação às outras regiões do país? Uma vez que há uma enorme diversidade de povos indígenas e ribeirinhos na Amazônia, já adianto que estou falando principalmente a partir da realidade observada entre comunidades no baixo rio Tapajós, no Oeste do Pará, de povos que têm contato com o cristianismo há quase quatro séculos.

O catolicismo tem uma importância histórica muito grande na cultura dessas comunidades, por ter ajudado a moldar as suas crenças e relações sociais de uma maneira muito particular. Influenciou as expressões não apenas religiosas, mas lúdicas e festivas também. A expressão maior dessa tradição amazônica é o culto aos santos, exteriorizado através de procissões e festas com arraial, danças e bebidas. Até a década de 1960, essas festas eram grandiosas e eram as únicas festas tradicionais nessas comunidades.

As origens mais antigas desse caldo cultural estão nas missões implantadas entre os indígenas a partir do século XVII. As longas distâncias e a presença rarefeita de sacerdotes, após a expulsão dos missionários em meados do século XVIII, resultaram em uma enorme autonomia dos grupos leigos, que celebravam e reelaboravam ao seu modo a herança missionária, criando a forma atual deste catolicismo típico da Amazônia. Mas como fazer festas de santo durante a Quaresma e a Semana Santa, se estamos celebrando a morte (e ressurreição) de Jesus, que não é um santo mas é o próprio Deus? 

Nas práticas da religiosidade popular na região, o período da Quaresma e o tríduo pascal tem como momentos fortes, a celebração das cinzas e a Paixão do Senhor. Os dias que ficam entre esses dois momentos são vividos “sem muita alteração” do cotidiano dos grupos locais. As duas datas celebrativas são igualmente dias de intensa introspecção e contrição. Inclusive, mesmo pessoas que raramente frequentam a igreja vão receber as cinzas no primeiro dia da Quaresma e participam da celebração na Sexta-feira Santa. 

Embora para o calendário litúrgico oficial a sexta-feira da Paixão não seja mais uma celebração quaresmal, ela parece condensar o sentido dos quarenta dias de recolhimento. No interior das capelas, as imagens dos santos e do Cristo na cruz são cobertas por toalhas de cor roxa, o que cria um clima de algo fora do comum. Todos entram na fila para o rito do beijo na cruz, e o fazem com o semblante contrito. Quase sempre, nas comunidades, há a procissão do Senhor Morto, que conduz pelas ruas a imagem do Cristo morto ou a cruz. Os cânticos, as leituras bíblicas e as orações, tudo fala da morte de Jesus. Além das celebrações, em muitas cidades e comunidades, grupos de leigos realizam a encenação da Via-Sacra, quando as dores do Cristo e de Maria são teatralizadas e sentidas por todos.

É na Sexta-feira da Paixão que os fiéis, silenciosos e introspectivos, se deparam com a realidade da morte do Filho de Deus e da sua mesma. O silêncio reservado para o sábado santo parece ser antecipado para a sexta-feira. Para a maioria dos fiéis o dia de maior silêncio e respeito é o dia da Paixão. E as pessoas demonstram viver com gosto e intensamente aqueles momentos, muito mais do que as celebrações da ressurreição de Jesus (no sábado à noite e domingo), quando a maioria nem volta mais à capela. 

Nas décadas anteriores eram comuns os rituais de “encomendação das almas”, quando um grupo de moradores vestido de branco se dirigia à noite ao cemitério para buscar as almas dos mortos e levá-las à capela. Antes da meia noite de sexta-feira o grupo voltava ao cemitério para levá-las de volta. Tudo era feito num clima de muito respeito, temor e mistério. Mas ao mesmo tempo, é um temor que atrai. As pessoas gostam de viver esses ritos voltados para a realidade da morte. Isso pode estar ligado às tradições indígenas pré-coloniais de culto aos mortos. Atualmente em Oriximiná, Oeste do Pará, existem pelo menos uma dezena de grupos de encomendadores de almas.

O fato de os moradores se sentirem atraídos mais pela morte do que pela ressurreição de Jesus não significa que não acreditem que o Cristo venceu e reina sobre a morte. É que nesse tempo específico eles aproveitam para se deparar com a finitude da vida terrena e renovar seus esforços de serem pessoas melhores, mais humanas e solidárias, merecedoras da vida eterna. As cinzas e a cruz parecem ser os elementos fortes de uma espiritualidade amazônica que não usa tanto o discurso da “penitência”, mas segue o Caminho real da conversão mirando o testemunho de Cristo na sua Paixão. 

 

 – Frei Florêncio Almeida Vaz (Curso de Antropologia – UFOPA)

QuaresmSin

Celebrar uma Quaresma sinodal

 

 

Não fechar o coração e escutar a voz de Deus é uma exigência não apenas do caminho quaresmal, mas de toda uma vivência cristã. Na busca pela sinodalidade temos uma bela oportunidade de escutar. A caminhada sinodal se abre em grande tempo de escuta, no que urge também fazer silêncio e prestar atenção para si e para os irmãos, e isso está bem alinhado com a espiritualidade quaresmal. Nesse processo sinodal somos chamados a converter-nos pessoal e comunitariamente. A experiência de caminhar juntos (sinodal) do povo de Deus pelo deserto mostra a necessidade de crescer na mudança de vida e no amor do Senhor. Caminhamos por um percurso que nos leva a sermos uma Igreja de irmãos e irmãs. É uma mudança que deve ser progressiva e constante, pois é indispensável no agir eclesial (uma igreja sempre em reforma). Nesse tempo favorável, onde pedimos a graça de caminhar com alegria no amor de doação total de Jesus, somos convidados a ter um coração aberto e sinodal. 

A quaresma é sim um tempo de renovação pessoal, mas também de conversão eclesial. Muitas comunidades têm aproveitado esse tempo de retiro quaresmal para “aprender a escutar”. O site da diocese de Aveiro (Portugal) traz importantes sugestões para celebrar o tempo quaresmal à luz da caminhada sinodal. É tempo de “caminhar juntos e participar” sendo mais próximos. Devemos seguir o exemplo do Deus libertador que escuta os clamores do seu povo. É tempo também de adentrar o deserto guiados pelo Espírito Santo. A oração “Adsumus Sancte Spiritus”, nos coloca diante do Espírito com nossas fragilidades e nela se reconhece que sem a luz divina podemos desviar dos caminhos da justiça e da verdade. Podemos igualmente desviar do caminho sinodal ou paralisar-nos diante dos desafios da sinodalidade.

As leituras dominicais para a quaresma (neste ano C) nos permitem também seguir com Cristo em processo sinodal. Diante das tentações de ser grande e colocar-se acima dos outros, podemos desviar das trilhas do reino. Com o Bom Jesus Luminoso somos convidados a não nos acomodar no cume da montanha e descermos para ser Igreja em Saída. Deus nos convida a escutar a voz de Jesus que nos encaminha sempre mais para a comunhão perfeita. Outra tentação em nossa estrada eclesial é a de achar-se melhor e mais perfeito que os outros. Somos convidados à mudança interna e radical de mentalidade, uma conversão para frutificação sinodal que exige atitude e cuidado. A sinodalidade é essa oportunidade renovadora. A casa do Pai misericordioso é o lugar da comunhão, participação e missão que acolhe todos os seus filhos.

A quaresma é igualmente um tempo de índole batismal, onde os catecúmenos preparam-se mais intensamente para celebrar os sacramentos de iniciação e a Igreja recorda os compromissos do batismo. O documento preparatório do Sínodo 2021-2023 nos reforça que: “Por conseguinte, todos os Batizados, participantes na função sacerdotal, profética e real de Cristo, no exercício da multiforme e ordenada riqueza dos seus carismas, das suas vocações, dos seus ministérios, são sujeitos ativos de evangelização, quer individualmente quer como totalidade do Povo de Deus”. A temática libertadora do êxodo, caminho que a cada ano a Igreja refaz na quaresma, nos impulsiona para irmos cada vez mais rumo à comunhão, participação e missão. A Igreja em saída é aquela que se converte sinodalmente.

 

 – Frei Fábio Vasconcelos, OFM.