Zumbi ontem, nós hoje!
O Dia da Consciência Negra que evoca a memória e resistência de Zumbi, líder negro do Quilombo dos Palmares, na data do seu assassinato em 20 de novembro de 1695, é para o povo negro tanto a lembrança quanto a certeza que Zumbi vive na sua luta diuturna contra as forças escravistas e colonizadoras do povo negro desdobradas nas inúmeras formas atuais do racismo estrutural.
O ideal seria que não precisássemos falar de racismo, de desigualdade racial, de diferenças sociais por conta da cor, da descendência e de origem étnicas, mas isso está somente no ideal. A realidade que é permeada dessas desigualdades, nos exige falar sobre isso a ponto de podermos dizer que quem não se importa com essa realidade escancarada a céu aberto, sob o incentivo do egoísmo dos tiranos, pode estar cometendo o injusto e infeliz partido da opressão e da perpetuação da escravidão.
Enquanto muitos pensam: – Ah, mas como assim? Eu não sou racista! Para mim as pessoas são todas iguais, todas têm as mesmas oportunidades etc…, como quem vive na “caverna” sob a sombra do mito da igualdade racial, a taxa de violência letal contra pessoas negras torna-se cada vez maior que entre pessoas não-negras. Ou seja, enquanto muitos fingem não enxergar que a desigualdade pela cor da pele é uma realidade presente nos nossos dias, a chance de um negro ser assassinado em relação a um não-negro torna-se superior a 2,6.
Poderíamos trazer à discussão dados sobre trabalho, educação, moradia, qualidade de vida, saúde etc. e, coincidentemente, todos os índices revelariam a discrepante desigualdade entre as pessoas no tocante à sua raça/cor, e aí se constataria que a maior parte dos negros vivem em condições completamente inferiores em relação aos não-negros.
Para além de dados estatísticos, o cenário atual continua assombrado pelo passado escravista. Não obstante os esforços sobrehumanos para conseguir o pão de cada dia numa real e brutal luta pela sobrevivência em meio ao caos da violência, da exposição à marginalidade, drogadição, criminalidade, dos preconceitos e da invisibilidade, a população negra é alcançada pela baixa autoestima, solidão, fragilidade da saúde mental e vulnerabilidade. Esses são retratos dos tormentos que acompanham os corpos negros em/e seus territórios. Mas ao mesmo tempo que o viver continua sendo uma via incerta e dolorosa, o desejo de sobreviver é a causa que faz a população negra resistir, se reinventar, viver, apesar do cansaço, apesar da injustiça, apesar da morte.
E nessa guerrilha desigual e racista
onde preto não é padrão, mas “é símbolo de virilidade”,
onde ele não é bonito mas “é a cor do pecado” e “aguenta o pesado”,
sua coragem se ancora na força e na organização
no enfrentamento contra a escravidão
aprendida de Zumbi dos Palmares e toda a ancestralidade.
Do grito de sobrevivência
surge toda a resistência
do povo preto que desperta à consciência.
O racismo não é problema de preto
Essa realidade, que não é nem aparente e nem ilusória, tem muito a ver com a vida que vivemos, com a oração que rezamos, com as opções que fazemos. Falo que não é ilusória nem aparente porque é de enfurecer quando constantemente encontramos pessoas que insistem em tentar justificar o que não se justifica. Há quem diga que preto não é maioria no Brasil, que racismo é “mi mi mi”, que certas brincadeiras sobre preto não afirmam a injustiça racial sobre eles etc.
A realidade cruel e injusta que se impõe sobre a massa populacional negra tem a ver com a vida de todos porque precisamos, onde estamos, afirmar nosso grito contra as estruturas e as forças que afirmam a escravidão. Deve nos inquietar porque são, normalmente, os negros que ocupam os últimos lugares da pirâmide social, que recebem os salários e empregos injustos, que são vítimas das oportunidades desiguais, etc.
A filósofa e militante Angela Davis nos ensina que “numa sociedade racista não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”. O questionamento que bate à nossa porta é: o que eu tenho feito para acabar essa estrutura injusta e desigual que menospreza e afirma a invisibilidade e desprezo da população preta que é, normalmente, pobre e periférica?
O problema é grande e temos consciência disso. Se olhamos para o interior dos lugares onde estamos, quem é a cozinheira, a faxineira, o porteiro, o gari? Se olharmos para nossas Igrejas, onde estão os padres, pastores, freiras, bispos pretos? Quantos negros existem em nossas casas religiosas? Quantos eles e elas são, quais lugares ocupam? E quando nos deparamos com essa realidade nos perguntamos: Por que são tão poucos? Por que não ocupam posições de destaque? Por que que os negros ocupam trabalhos tão exigentes e ganham salários tão inferiores? (Aqui vale um silêncio de pesar pela infeliz presença da injustiça social por conta da raça/cor da pele).
O Documento de Puebla afirmou que a população negra é a mais pobre entre os pobres. Se olharmos com esses óculos veremos que combater a desigualdade, enquanto fruto do racismo estrutural, é uma questão emergente, de busca da equidade entre as pessoas independente de raça, de cor, de gênero. O enfrentamento dessa realidade é um problema de todos, mas sobretudo de quem não enxerga que a grande massa da população negra tem que dobrar sua jornada de trabalho para conseguir o mínimo e nem sempre isso é conseguido. Ademais, a luta fica ainda mais difícil quando nos corpos negros se interseccionaliza a mulher, o lgbtqia+, a periferia, etc.
Onde quer que estejamos, é preciso ser antirracista. O racismo não é problema de negro, é problema de quem se utiliza dos seus privilégios para afirmar o desprivilégio dele.
Um abraço franciscano para uma vida negra consciente
A análise que acima fazemos é amarga, cheira mal e é horrenda de se encarar, mas essa é uma realidade que precisa ser abraçada sem medo. Somente quanto juntos, negros e, sobretudo, não-negros, abraçarem essa causa, será possível tornar o amargor em doçura.
Ao fazer essa analogia do enfrentamento do racismo com o abraço que Francisco de Assis deu no leproso naquele momento determinante de sua conversão, evoco, sobremaneira, à disposição também franciscana de superação dos preconceitos pela cor da pele, orientação sexual e de gênero, religião, etc. que torna os números da violência e da morte a cada dia mais alarmante.
A disposição de abraçar essas causas e, nesse caso, a causa da população negra que carrega nos ombros o que acima chamei de passado escravista, não se trata simplesmente de falar de uma consciência negra franciscana como um sonho, mas se trata de levar à reflexão e consequente ação o incentivo e promoção da vida e da história das pessoas negras que as tiveram relegadas e esquecidas ao longo dos anos.
Dia da Consciência Negra não é só o dia do despertar da consciência do povo preto, é também isso, pois um negro consciente abraça sua vida e sua ancestralidade, valoriza seus traços, suas origens, se sente parte de uma caminhada de muito suor, muito esforço e luta. Mas, esse dia é também o dia de enegrecer a consciência dos não-negros para que eles abracem o combate e enfrentamento das estruturas e forças que oprimem seu semelhante. Isso pode ser feito dos lugares onde cada um está e ocupa a partir da ressignificação do que se fala, do que se pensa e de como se vive. É a busca pelo incentivo às pessoas negras no seu protagonismo e participação, na valorização delas, fortalecendo suas vozes, cultivando e promovendo os seus direitos, a sua liberdade, admirando seus traços e suas mais variadas expressões.
Falar do dia da consciência negra é recordar o grito periférico, feminista e negro de Jurema Werneck de que “nossos passos vêm de longe”. Ele nos ajuda a reconhecer que a luta das pessoas negras aglomeradas e desassistidas, sobretudo, nas periferias dos grandes centros urbanos não são de agora. Na periferia se reinventa os novos quilombos e o despertar da consciência negra nos ajuda a cantar com Emicida que “tudo o que nós tem é nós”. Preto se apoiando em preto, se organizando, por vezes celebrando o incelebrável da vida.
Que o dia da consciência negra seja todo dia, seja diuturno, assim como é constante a luta da população negra pela sua sobrevivência. Que a resistência de Zumbi seja atualizada no esforço dessa população e que todos, em coletividade, sejam o abraço da conversão e da reparação das estruturas que ainda afirmam a população negra na opressão.
Frei Faustino dos Santos, OFM
Secretário da Província Franciscana de Santo Antônio do Brasil
Mestre em Teologia pela UNICAP/2020