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Para uma Consciência Negra: Resistente, Participativa e Franciscana

Arte: Frei Andrei, OFM.

Zumbi ontem, nós hoje!

O Dia da Consciência Negra que evoca a memória e resistência de Zumbi, líder negro do Quilombo dos Palmares, na data do seu assassinato em 20 de novembro de 1695, é para o povo negro tanto a lembrança quanto a certeza que Zumbi vive na sua luta diuturna contra as forças escravistas e colonizadoras do povo negro desdobradas nas inúmeras formas atuais do racismo estrutural.

O ideal seria que não precisássemos falar de racismo, de desigualdade racial, de diferenças sociais por conta da cor, da descendência e de origem étnicas, mas isso está somente no ideal. A realidade que é permeada dessas desigualdades, nos exige falar sobre isso a ponto de podermos dizer que quem não se importa com essa realidade escancarada a céu aberto, sob o incentivo do egoísmo dos tiranos, pode estar cometendo o injusto e infeliz partido da opressão e da perpetuação da escravidão.

Enquanto muitos pensam: – Ah, mas como assim? Eu não sou racista! Para mim as pessoas são todas iguais, todas têm as mesmas oportunidades etc…, como quem vive na “caverna” sob a sombra do mito da igualdade racial, a taxa de violência letal contra pessoas negras torna-se cada vez maior que entre pessoas não-negras. Ou seja, enquanto muitos fingem não enxergar que a desigualdade pela cor da pele é uma realidade presente nos nossos dias, a chance de um negro ser assassinado em relação a um não-negro torna-se superior a 2,6.

Poderíamos trazer à discussão dados sobre trabalho, educação, moradia, qualidade de vida, saúde etc. e, coincidentemente, todos os índices revelariam a discrepante desigualdade entre as pessoas no tocante à sua raça/cor, e aí se constataria que a maior parte dos negros vivem em condições completamente inferiores em relação aos não-negros.

Para além de dados estatísticos, o cenário atual continua assombrado pelo passado escravista. Não obstante os esforços sobrehumanos para conseguir o pão de cada dia numa real e brutal luta pela sobrevivência em meio ao caos da violência, da exposição à marginalidade, drogadição, criminalidade, dos preconceitos e da invisibilidade, a população negra é alcançada pela baixa autoestima, solidão, fragilidade da saúde mental e vulnerabilidade. Esses são retratos dos tormentos que acompanham os corpos negros em/e seus territórios. Mas ao mesmo tempo que o viver continua sendo uma via incerta e dolorosa, o desejo de sobreviver é a causa que faz a população negra resistir, se reinventar, viver, apesar do cansaço, apesar da injustiça, apesar da morte.

 

E nessa guerrilha desigual e racista

onde preto não é padrão, mas “é símbolo de virilidade”,

onde ele não é bonito mas “é a cor do pecado” e “aguenta o pesado”,

sua coragem se ancora na força e na organização

no enfrentamento contra a escravidão

aprendida de Zumbi dos Palmares e toda a ancestralidade. 

Do grito de sobrevivência

surge toda a resistência

do povo preto que desperta à consciência.

 

 

O racismo não é problema de preto

Essa realidade, que não é nem aparente e nem ilusória, tem muito a ver com a vida que vivemos, com a oração que rezamos, com as opções que fazemos. Falo que não é ilusória nem aparente porque é de enfurecer quando constantemente encontramos pessoas que insistem em tentar justificar o que não se justifica. Há quem diga que preto não é maioria no Brasil, que racismo é “mi mi mi”, que certas brincadeiras sobre preto não afirmam a injustiça racial sobre eles etc.

A realidade cruel e injusta que se impõe sobre a massa populacional negra tem a ver com a vida de todos porque precisamos, onde estamos, afirmar nosso grito contra as estruturas e as forças que afirmam a escravidão. Deve nos inquietar porque são, normalmente, os negros que ocupam os últimos lugares da pirâmide social, que recebem os salários e empregos injustos, que são vítimas das oportunidades desiguais, etc.

A filósofa e militante Angela Davis nos ensina que “numa sociedade racista não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”. O questionamento que bate à nossa porta é: o que eu tenho feito para acabar essa estrutura injusta e desigual que menospreza e afirma a invisibilidade e desprezo da população preta que é, normalmente, pobre e periférica?

O problema é grande e temos consciência disso. Se olhamos para o interior dos lugares onde estamos, quem é a cozinheira, a faxineira, o porteiro, o gari? Se olharmos para nossas Igrejas, onde estão os padres, pastores, freiras, bispos pretos? Quantos negros existem em nossas casas religiosas? Quantos eles e elas são, quais lugares ocupam? E quando nos deparamos com essa realidade nos perguntamos: Por que são tão poucos? Por que não ocupam posições de destaque? Por que que os negros ocupam trabalhos tão exigentes e ganham salários tão inferiores? (Aqui vale um silêncio de pesar pela infeliz presença da injustiça social por conta da raça/cor da pele).

O Documento de Puebla afirmou que a população negra é a mais pobre entre os pobres. Se olharmos com esses óculos veremos que combater a desigualdade, enquanto fruto do racismo estrutural, é uma questão emergente, de busca da equidade entre as pessoas independente de raça, de cor, de gênero. O enfrentamento dessa realidade é um problema de todos, mas sobretudo de quem não enxerga que a grande massa da população negra tem que dobrar sua jornada de trabalho para conseguir o mínimo e nem sempre isso é conseguido. Ademais, a luta fica ainda mais difícil quando nos corpos negros se interseccionaliza a mulher, o lgbtqia+, a periferia, etc.

Onde quer que estejamos, é preciso ser antirracista. O racismo não é problema de negro, é problema de quem se utiliza dos seus privilégios para afirmar o desprivilégio dele.

 

Um abraço franciscano para uma vida negra consciente

A análise que acima fazemos é amarga, cheira mal e é horrenda de se encarar, mas essa é uma realidade que precisa ser abraçada sem medo. Somente quanto juntos, negros e, sobretudo, não-negros, abraçarem essa causa, será possível tornar o amargor em doçura.

Ao fazer essa analogia do enfrentamento do racismo com o abraço que Francisco de Assis deu no leproso naquele momento determinante de sua conversão, evoco, sobremaneira, à disposição também franciscana de superação dos preconceitos pela cor da pele, orientação sexual e de gênero, religião, etc. que torna os números da violência e da morte a cada dia mais alarmante.

 A disposição de abraçar essas causas e, nesse caso, a causa da população negra que carrega nos ombros o que acima chamei de passado escravista, não se trata simplesmente de falar de uma consciência negra franciscana como um sonho, mas se trata de levar à reflexão e consequente ação o incentivo e promoção da vida e da história das pessoas negras que as tiveram relegadas e esquecidas ao longo dos anos. 

Dia da Consciência Negra não é só o dia do despertar da consciência do povo preto, é também isso, pois um negro consciente abraça sua vida e sua ancestralidade, valoriza seus traços, suas origens, se sente parte de uma caminhada de muito suor, muito esforço e luta. Mas, esse dia é também o dia de enegrecer a consciência dos não-negros para que eles abracem o combate e enfrentamento das estruturas e forças que oprimem seu semelhante. Isso pode ser feito dos lugares onde cada um está e ocupa a partir da ressignificação do que se fala, do que se pensa e de como se vive. É a busca pelo incentivo às pessoas negras no seu protagonismo e participação, na valorização delas, fortalecendo suas vozes, cultivando e promovendo os seus direitos, a sua liberdade, admirando seus traços e suas mais variadas expressões.

Falar do dia da consciência negra é recordar o grito periférico, feminista e negro de Jurema Werneck de que “nossos passos vêm de longe”. Ele nos ajuda a reconhecer que a luta das pessoas negras aglomeradas e desassistidas, sobretudo, nas periferias dos grandes centros urbanos não são de agora. Na periferia se reinventa os novos quilombos e o despertar da consciência negra nos ajuda a cantar com Emicida que “tudo o que nós tem é nós”. Preto se apoiando em preto, se organizando, por vezes celebrando o incelebrável da vida.

Que o dia da consciência negra seja todo dia, seja diuturno, assim como é constante a luta da população negra pela sua sobrevivência. Que a resistência de Zumbi seja atualizada no esforço dessa população e que todos, em coletividade, sejam o abraço da conversão e da reparação das estruturas que ainda afirmam a população negra na opressão.

 

Frei Faustino dos Santos, OFM

Secretário da Província Franciscana de Santo Antônio do Brasil

Mestre em Teologia pela UNICAP/2020

Curso Interprovincial de Franciscanismo. Monte Alegre (PA). Foto: Frei Flávio Lorrane Clementino, OFM.

Quatro práticas franciscanas para nos ajudar a “ver diferente”

Curso Interprovincial de Franciscanismo. Monte Alegre (PA). Foto: Frei Flávio Lorrane Clementino, OFM

 

Uma maneira que muitas vezes tenho pensado sobre o âmago da tradição espiritual franciscana é como uma hermenêutica distinta, ou como uma lente através da qual se pode ver o mundo. São Francisco de Assis estabeleceu, o que se tornou uma das maiores e mais significativas ordens religiosas da Igreja Católica, com uma instrução aparentemente simples e direta: “A Regra e a Vida dos Frades Menores é esta: observar o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo”.

Por mais básica que essa descrição pareça, sua simplicidade é precisamente a raíz de seu desafio. O compromisso de viver o Evangelho, embora de alguma forma compartilhado por todos os batizados, exige de nós franciscanos e daqueles de coração franciscano, uma maneira diferente de ver e estar no mundo. Toda a proclamação do Evangelho consiste em dar testemunho da verdade de que outra maneira de viver é possível; que a visão de Deus para a sociedade humana e para toda a criação é tão drasticamente diferente da maneira como a maioria de nós opera.

Francisco e Clara de Assis deram testemunho em palavras e atos desta realidade alternativa – não uma falsa realidade como a que vemos hoje naqueles que se recusam a aceitar a verdade, a justiça e a paz; mas a realidade de Deus, que São Paulo descreve como “loucura” de acordo com os padrões mundanos (1 Coríntios 1, 18-31).

 

Curso Interprovincial de Franciscanismo janeiro de 2020. Centro de Formação Emaús, Santarém (PA). Foto: Frei Flávio Lorrane Clementino, OFM.

 

Vemos isso nas famosas histórias do abraço de Francisco aos marginalizados social e eclesialmente, como os leprosos; suas práticas inter-religiosas corajosas e pacíficas, como o encontro com o Sultão al-Malik al-Kamil em 1219 em Damietta, Egito; e na prática radical da itinerância, da pobreza evangélica e da hospitalidade que lhe permitiu acolher todas as pessoas no relacionamento, independentemente da classe social ou posição.

Eu também acredito que o Papa Francisco, vivendo o legado daquele que o inspirou a escolher o nome papal, continua testemunhando esta forma de ver e estar no mundo. Ele tem dito isso em seus poderosos ensinamentos magisteriais, especialmente na “Laudato Si”, sobre o cuidado com Nossa Casa Comum e na “Fratelli Tutti”, ambos profundamente endividados com a tradição franciscana. Esta última encíclica também depende da insistência profética do Santo Padre de que é possível outra forma de viver e organizar nossas sociedades.

Foi por esta razão que fui imediatamente atraído pelo título de um novo livro: Seeing Differently: Franciscans and Creation (Vendo de forma diferente: Os Franciscanos e a Criação), que chegou à minha caixa de correio sem que eu tenha solicitado, como tantos outros enviados todos os anos pelas editoras e autores. Embora seja um livro publicado pela editora cristã britânica Canterbury Press, ele também está disponível para encomenda nos Estados Unidos e em outros lugares.

Este livro é um verdadeiro tesouro com a co-autoria de três franciscanos anglicanos: Samuel Double e Nicholas Alan Worssam, que são dois frades da Sociedade de São Francisco, e Simon Cocksedge, um membro da Terceira Ordem de São Francisco.

Muitos católicos romanos podem não saber que a família franciscana, que foi fundada séculos antes da Reforma se dividir entre a Igreja Romana e a Comunhão Anglicana, a Igreja Luterana e assim por diante, tem ramificações em outras denominações. Uma das coisas que gostei imediatamente neste novo livro é que ele reflete o dom ecumênico que a tradição franciscana oferece ao cristianismo, na medida em que nossa herança, tradição, recursos e visão comum transcende os limites típicos das divisões teológicas e eclesiológicas.

No coração do livro está a convicção que mencionei acima; isto é, que ser franciscano é abraçar uma outra maneira de ver o mundo – ver de forma diferente, como os autores poeticamente o colocam. Como o subtítulo sugere, a principal aplicação deste “ver diferente” é a família da criação e nosso lugar como seres humanos dentro dela.

Em muitos aspectos, este livro não é original. Os autores recorrem a muitas fontes conhecidas e menos conhecidas na tradição hagiográfica e teológica franciscana, assim como estudiosos e teólogos franciscanos contemporâneos (incluindo eu mesmo). Mas a beleza deste livro e sua mensagem não se trata de defender uma tese ou uma ideia original.

A chave é voltar às raízes da tradição espiritual franciscana para recuperar uma visão do mundo que está fundamentada no Evangelho de Jesus Cristo. O que resulta desse compromisso é uma maneira radicalmente renovada de ver o mundo que exige de nós o que o Papa Francisco chamou de “conversão ecológica”.

Organizado em três partes, as duas primeiras das quais refazem de forma competente e precisa as fontes essenciais para compreender a visão franciscana da criação desde São Francisco até os grandes pensadores franciscanos medievais, é a terceira parte do livro que mais me cativou.

Dentro desta seção, que se intitula “Franciscanos e a Criação Hoje”, eu fiquei impressionado com a apresentação no Capítulo 8 sobre quatro práticas espirituais que os autores nos convidam a empregar em resposta a ver de forma diferente. Eles nos dizem que devemos considerar a “visão sacramental e o habitar do mundo ao seu redor” de Francisco de Assis e que, ao fazê-lo, “pode transformar nossa relação com a criação e também nossa autocompreensão”.

 

Vista da Praça do Mirante, Monte Alegre (PA). Foto: Frei Flávio Lorrane Clementino, OFM

 

A primeira prática é “atender”. Aqui somos convidados a nos ancorar no tempo e no espaço, aprendendo a prestar atenção ao que está diante de nós, ao nosso redor e até mesmo parte de nós. Em uma passagem que vale a pena citar longamente, os autores relacionam esta prática com o exemplo de São Francisco

O que se vê claramente nos primeiros escritos sobre Francisco … é que ele, também, era um vidente neste sentido. Ele possuía o dom da observação aguçada das criaturas ao seu redor – sua presença, suas cores, suas canções e seus padrões de comportamento, e o que ele via muitas vezes lhe trazia alegria e deleite. Mas sua apreciação não era principalmente estética, nem sua percepção era apenas sentimental ou idealista. … Ao contrário, seu deleite pelo que observava o levou a ver no mundo natural ao seu redor, animado e inanimado, a “pegada” do Criador, a marca do Criador, um sinal da misericórdia, da generosidade, do amor e da glória de Deus.

O que é descrito aqui é o que o teólogo franciscano medieval e doutor da igreja, São Boaventura, chamaria de “contemplação”, que é a capacidade de reconhecer a proximidade e presença de Deus dentro de toda a criação.

 

A segunda prática é “habitar”. Esta é uma prática espiritual em que muitos de nós fomos forçados pelas ordens de permanência em casa (Lock down) da pandemia. No entanto, embora estivéssemos presos em um local, quantos de nós crescíamos em apreciação do lugar onde estávamos?

Os autores fazem uma distinção entre “residir em um lugar” e “habitar nele”. Este último “requer um compromisso emocional e moral com o lugar específico, imediato, onde vivemos: com todos os seus habitantes, tanto humanos quanto não humanos”. Tal moradia pode nos abrir ao reconhecimento de que o lugar, onde quer que estejamos, é “sagrado”.

A terceira prática é “a valorização”. Aqui encontramos ecos de Laudato Si, no qual o Papa Francisco também extraiu dos poços da sabedoria espiritual franciscana. Em resumo, “valorizar” é reconhecer a dignidade inerente e o valor de toda a criação de Deus e não apenas o que nós, humanos, determinamos ser útil para nós. Ver diferente significa ver o mundo através dos olhos de Deus, reconhecendo que Deus é o Criador de tudo e, portanto, ama todo o universo.

A quarta prática é “contemplar”, que flui das três práticas anteriores. Trata-se de nossos olhos e nossa visão retraídos, colocando-os em prática à medida que vamos percorrendo o mundo. O que vemos de diferente agora? O que precisa mudar? Que desafio profético Deus está nos chamando a proclamar?

Nosso mundo está sofrendo de forma tremenda, global e localmente. Durante este tempo de divisões crescentes dentro da família humana e além dela em termos da crise climática global que enfrentamos, nosso mundo está clamando para que comecemos a “ver de forma diferente”. E a tradição franciscana nos oferece recursos e orientação para responder a esse desafio hoje.

 

Daniel P. Horan*

Tradução:  Frei Erlison Campos, OFM

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*Frei Daniel P. Horan, OFM é diretor do Centro de Espiritualidade e professor de filosofia, estudos religiosos e teologia no Colégio de Santa Maria em Notre Dame, Indiana – Estados Unidos.
Siga-o no Twitter: @DanHoranOFM.
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A Igreja samaritana do Papa Francisco em meio às crises do mundo atual

Ação Emergencial em tempo de pandemia. Foto: Projeto OMOLU

 

Parece não ser novidade que mudanças geralmente são acompanhadas de crises. Paradigmas se quebram algumas estruturas e pensamentos precisam se renovar e os que estavam acostumados com uma certeza se veem sem o chão. A crise vem nos tomar de assalto e nos espantar. O susto diante da crise e nossas formas de reação são também um desafio para uma Igreja que pretende caminhar junto das “dores e alegrias” da humanidade. 

O sofrimento, as rupturas, mas também, as decisões e novas opções são todos elementos que nos podem colocar a crise. E de alguma forma essa situação crítica da atualidade, com suas múltiplas faces, nos faz recordar uma conhecida parábola de Jesus: O Bom Samaritano (Lc 10, 29-37). A humanidade nos seus caminhos se vê muitas vezes “surpreendida e assaltada” pela crise. As mudanças tomam-nos de assalto e muitos de nós nem percebem que elas se avizinham e nem sabem como agir diante delas. Esse abalo, joga as certezas humanas na beira da estrada e questiona as atitudes daqueles e daquelas que se deparam com esses efeitos da crise. Muitos são os que passam e desviam o olhar e seguem direto como se a crise não os afetasse. 

A Igreja Samaritana, imagem que inclusive ressoou no documento final do Sínodo para a Amazônia, não é indiferente aos dramas da humanidade atual. O seu oposto é o que o Papa Francisco cunhou como “globalização da indiferença”. Muitos sinais de aproximação e busca de soluções para as diversas dimensões da crise atual são tocados no pontificado de Francisco. Outros temas são também presentes no pontificado de Francisco, tais como a crise migratória, degradação socioambiental, realidade juvenil, familiar, dilemas eclesiais, ausência ética, dimensão política e outros . Ao falar de bem comum e amizade social, com a encíclica Fratelli Tutti, ele recupera as ideias da parábola do bom samaritano. Esse trecho é referenciado de forma ampla no segundo capítulo “um estranho no caminho”. 

A alteridade diante das dores do mundo é uma atitude de quem reconhece e ajuda o seu próximo. Essas são chaves necessárias diante de alguns rumos que o mundo tem tomado. A ética do Samaritano, um estrangeiro, que se compadece do Outro tem muito a nos ensinar. Em um ambiente em que parece que muitos estão focados nos seus interesses apenas e na conservação dos seus ganhos, o samaritano sabe parar. Mesmo que o fluxo prossiga, mesmo que ele se atrase ou fique para trás, mesmo assim, ele para. Ele sabe empenhar seus recursos para a promoção do bem, mesmo para alguém que não conhece e nem tem como retribuir, porque lhe fora tirado aquilo que possuía. E aqui nos é relembrado um outro elemento que urgentemente precisa ser redescoberto: o cuidado. 

 

Foto: Projeto OMOLU

 

O projeto eclesial do Papa Francisco é de uma Igreja que não se acomoda e não teme se aproximar. E mais do que discursos, muitas atitudes do atual pontífice têm evidenciado essa sua resposta às urgências do nosso tempo. O seu convite é para sairmos ao encontro das crises nas periferias concretas e existenciais. A complexidade da crise ética atual, que atinge pessoas e instituições, exige uma resposta de diálogo e comunhão com todas as dimensões humanas, para que em unidade se possa achar as soluções. 

Francisco (2020) nos chama atenção para o fato: “a misericórdia cristã também inspira uma partilha justa entre as nações e as suas instituições, a fim de enfrentar a presente crise de solidariedade”. Suas falas nos recordam que as crises humanitárias e planetárias estão cada vez mais exigindo atitudes de todos e em especial dos cristãos. Por que nós (os cristãos) devemos dar as mãos com os que buscam os caminhos de saída para o labirinto das crises.   

O “estranho no caminho” continua a ecoar no coração e interpelar o agir eclesial. Uma vez que alegrias e esperanças, bem como as dores e angústias da humanidade, sobretudo dos pobres são também as dos seguidores de Cristo (GS 1), a Fratelli Tutti (PAPA FRANCISCO, 2020) recorda que as passagens bíblicas se somam ao ícone do Bom Samaritano e afirmam o dever do amor ao próximo. Essa caridade se dá transpondo barreiras impostas. Um amor que extrapola as fronteiras. 

A situação do homem à beira do caminho é de abandono. Muitos passam e não reagem. Estão preocupados com “suas vidas, seus rituais” com seus ritmos próprios. Também hoje esse caminhar apático pode ser fruto do individualismo e do fechamento ao outro. Dar do seu tempo em nosso momento atual é uma das ofertas mais complicadas. Um dos sintomas da nossa sociedade enferma é o de não deixar de lado os seus planos diante da urgência dos sofredores. Boa parte dos nossos contemporâneos não têm concedido tempo para o gesto empático sugerido na carta aos Romanos: “alegar-nos com os que se alegram e chorar com os que choram” (Rm 12, 15).  Que tempo temos dado aos outros? Podemos nos perguntar a nós mesmos.

As circunstâncias de sofrimento em nosso tempo são para nós um desafio. “A provocação do forasteiro” nos exige uma tomada de atitude com base nas raízes da nossa fé. O amor ao próximo anunciado por Jesus tem um papel importante diante das incertezas atuais. A compaixão com os sofredores e olhar atento aos outros são também outros pontos que devem contrapor muitos ideais hodiernos. Esperamos que esse paradigma do Bom samaritano continue a iluminar os passos da Igreja na sua resposta aos muitos desafios colocados pelo contexto de crise. Somos chamados a olhar o mundo como Igreja Samaritana que tem claro o sentido social da existência, inspirada por uma espiritualidade fraterna, convicta da dignidade das pessoas e que ama e acolhe a todos (cf. FT, 86).

 

Frei Fábio Vasconcelos, OFM

Acadêmico de Teologia no ITF (Petrópolis – RJ)

 

Notas

[1] PAPA FRANCISCO. Regina Coeli (19 de abril de 2020). Disponível em: <http://www.vatican.va/content/francesco/pt/angelus/2020/documents/papa-francesco_regina-coeli_20200419.html>. Acesso em 11.jun.2020. 
PAPA FRANCISCO. Fratelli Tutti: sobre a fraternidade e amizade social. (03/10/2020). Disponível em <https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html> . Acesso em 04.out.2021.
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Reflexão vocacional: “Santidade é uma vocação para todos!”

Ilustração baseada em um afresco que retrata Santo Agostinho. Arte: Fábio Vasconcelos

 

O tempo passa e não podemos pará-lo! Embalados ao ritmo do relógio, seguimos em frente, projetados para o futuro. Devorados pelo cronos, nem sempre conseguimos fazer a experiência regeneradora do kairós. Cada história pessoal contém em si aquela centelha do mistério de Deus, que unida a tantas outras tornam visível o mosaico das relações humanas. Vocacionados à santidade somos convidados a viver no “tempo” o amor misericordioso de Deus. Ele nos chama e nos envia para a missão.

Desde 1981, por decisão da 19ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), agosto é o mês do calendário em que a Igreja do Brasil reflete o tema da vocação e do discernimento vocacional. A palavra vocação tem sua raiz no verbo latino vocare, que significa chamado. A Igreja, comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus, configura-se como a assembleia dos chamados, que pela força do compromisso batismal, são escolhidos para a vivência dos ministérios; suscitados pelo Espírito Santo e colocados a serviço da comunidade. Cada vocação é como téssera, uma pequena pedra, que unida a tantas outras compõe o belo mosaico da Igreja ministerial.

Neste ano de 2021, o mês vocacional tem por tema: Cristo nos salva e nos envia; e o lema: quem escuta a minha palavra possui a vida eterna (cf. Jo 5, 24). Assim, a cada domingo do mês de agosto celebramos uma vocação específica: no primeiro domingo os vocacionados aos ministérios ordenados: bispos, presbíteros e diáconos; no segundo domingo a vocação à vida familiar, na recordação do dia dos pais; no terceiro domingo, solenidade da Assunção de Nossa Senhora aos céus, rezou-se pelos vocacionados e vocacionadas à vida religiosa consagrada; no quarto domingo, os vocacionados aos ministérios leigos existentes na comunidade e, por fim, no próximo domingo, o quinto do mês, iremos recordar o ministério do catequista.

O que todas essas vocações e ministérios têm em comum? O chamado à santidade: “sede santos assim como vosso Pai celeste é santo” (Mt 5, 48). Na origem de cada resposta vocacional encontra-se o fortíssimo desejo de viver plenamente a santidade como projeto de vida. Segundo Papa Francisco, “A santidade é o rosto mais belo da Igreja” (nº 9). No entanto, o Papa reconhece que “muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade esteja reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim” (nº 14). Para Francisco: “Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra. És uma consagrada ou um consagrado? Sê santo, vivendo com alegria a tua doação. Estás casado? Sê santo, amando e cuidando do teu marido ou da tua esposa, como Cristo fez com a Igreja. És um trabalhador? Sê santo, cumprindo com honestidade e competência o teu trabalho ao serviço dos irmãos. És progenitor, avó ou avô? Sê santo, ensinando com paciência as crianças a seguirem Jesus. Estás investido em autoridade? Sê santo, lutando pelo bem comum e renunciando aos teus interesses pessoais” (nº 14).

Todos os batizados são chamados à santidade, cada qual na sua vocação específica. Para nos ajudar nesse caminho, a Igreja nos oferece, no decorrer do ano litúrgico, vários modelos de santidade. Entre eles figuram o exemplo de Santa Mônica (331-387) e Santo Agostinho (354-430), ambos mãe e filho, celebrados na liturgia nos dias 27 e 28 de agosto, respectivamente.

A antífona do cântico evangélico da Oração das vésperas, do próprio dos santos para a memória de Santa Mônica, retrata bem a sua vida de santidade, vivida em contínua oração pela conversão do seu filho: “Santa Mônica, mãe de Agostinho, de tal modo vivia no Cristo, que, estando ainda no mundo, sua vida e sua fé se tornaram o louvor mais perfeito de Deus”. Mônica, nasceu em Tagaste (atual Souk Ahras), na Argélia e morreu na cidade de Óstia. Ainda muito jovem casou-se com um homem chamado Patrício. Dessa união nasceram muitos filhos, entre eles, Agostinho. Rezou insistentemente durante 33 anos pela conversão de seu filho Agostinho que, antes de sua conversão levava uma “vida de heresias”.

Em suas Confissões, assim Agostinho refere-se à sua mãe: “Minha mãe, forte na piedade, já vier ao meu encontro, seguindo-me por terra e por mar, em ti confiando em todos os perigos. Era ela, nos momentos críticos da navegação, quem incutia coragem aos próprios marinheiros, que habitualmente confortam os viajantes inexperientes e timoratos, prometendo-lhes uma chegada a salvo. Foste tu, em visão quem o havias prometido a ela.” (Confissões. VI, 1. p.139).

Santa Mônica rezou e alcançou a graça que tanto desejava, a conversão do seu filho. Na sua busca pela verdade, Agostinho enveredou pelo caminho das heresias de sua época, até que, em 387, converteu-se a fé e foi batizado em Milão por Santo Ambrósio, tornando-se depois bispo e doutor da Igreja. Ao se dar conta de ter encontrado aquilo que tanto buscava, Agostinho reza: “tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora” (Confissões. X, 27. p.295).

O exemplo dos santos e santas nos inspiram na busca da santidade, pois, como bem disse o Papa Francisco, “ser santo é uma vocação para todos”. Na Igreja, todas as vocações e ministérios são importantes, e na diversidade de dons e carismas, cada batizado é como uma pequena téssera que dá forma e ajuda no desenvolvimento da vida da comunidade, para que o belo mosaico da Igreja resplandeça a face de Jesus Servo; que “não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos” (Mt 20,28).

Que ao final desse mês de agosto, mês vocacional, cada batizado cresça na consciência do seu compromisso batismal e, vivendo com fidelidade o seu projeto vocacional, possa buscar a santidade. “Santidade «ao pé da porta», daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus”. Santa Mônica e Santo Agostinho intercedam por nós!

 

Frei John Araújo, OFM

 

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO DE HIPONA.  Confissões.  17.  ed.  Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 2004.

FRANCISCO, PP.  Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate sobre a chamada à santidade no mundo atual.  São Paulo:  Paulus, 2018.

LITURGIA DAS HORAS. v. IV.  Petrópolis: Vozes. São Paulo: Paulinas/Paulus/Ave Maria, 1995.

The Mission 30

Santa Clara, pobre dama da querida Amazônia

Foto: Missão São Francisco do Cururu – Maribeth Joeright, 2016

A vida de Clara, como o nome nos permite dizer é um cadeeiro aceso na Igreja e no mundo. A virgem Clara ilumina igualmente o chão amazônico e é nisto que queremos agora centrar a nossa reflexão. Pois vemos na santa uma mulher humilde, orante e servidora que clareia os passos dos amazônidas para a busca da terra sem males. Observamos que um primeiro traço de Clara é ser uma moça sonhadora, encantada com a vida e com o projeto de Deus. A canoa da vida dela ganha novos rumos a partir de sua sede pessoal e do testemunho de Francisco. É o Divino Amor que move a Santa de Assis, como nas narrativas míticas da Lua e da Vitória-Régia. Seu Amado é um noivo crucificado-ressuscitado por quem ela suspira e age movida por uma força enorme.

O casamento de Clara com Cristo se dá em um processo de iniciação, de formação, como nas diversas culturas amazônicas. A plantinha de Assis é uma “moça nova”, transcende a casa paterna e tem seus cabelos cortados em sinal da sua mudança de estado de vida. Esse rito de passagem no existir de Clara é sinal de acolhida, de desprendimento e de união. Esse abando de Clara é gesto que educa para aprender a ter mais esse olhar para os ritmos do existir, celebrando cada conversão. Sair pela porta dos mortos e fugir de casa, na noite e ser recebida com luzes pelos frades, junto com Francisco é expressão do novo caminho de Clara, e quantos não andam na estrada do medo, da opressão, e precisam achar a caminhos novos, como nos indica ainda o sínodo para Amazônia.

(Foto das Irmãs SMIC na Missão São Francisco – Maribeth Joeright, 2016)

A união de Clara com Cristo é aliança, afeto dedicado que se desdobra em comunhão, uma procura com intenso ardor. O Cristo-Amado na Amazônia é, recordando a simbologia do Cântico dos Cânticos, aquele que se reencontra depois dos afazeres do dia. É que se espera retornar da pescaria, do roçado, ou dos seus serviços diversos e que novamente se encontra para com alegria comer juntos os frutos da Terra. Essa comunhão de Clara em Cristo que gera vida partilhada é que precisamos hoje no nosso solo amazônico para que seja fecundado por uma nova forma de relação. Os suspiros de Clara por Cristo devem nos inspirar hoje a desejar e trabalhar para que a presença de Cristo floresça mais ainda na Amazônia.

Outro aspecto luminoso da vida de Clara é sua coragem. A ousadia e o testemunho profético de Clara não se encerraram na casa da família e nem nos muros do convento em São Damião, mas se espelharam pelo mundo todo como sementes da vida de pobreza evangélica. Uma mulher firme no seu ideal de viver a pobreza. Nela o espelho que reflete Cristo é um amor que faz testemunhar a vida plena para todos e todas. O amoroso viver de Clara nos indica que partamos para uma evangelização com rosto amazônico, encarnada e libertadora. Vamos ao encontro e percebamos como são as luminosas as mulheres da Amazônia!

Na Amazônia, diversas mulheres são exemplos dessa força no amor expressa em Clara. E desse cuidado com as irmãs e filhas na pobreza, é que Clara se tornou uma mãe para os que dela se achegam. Com os conselhos sábios, com o exemplo e afeto, ela se apresenta como imagem da Amazônia que se doa. No entanto esses dons da Mãe Amazônia acabaram sendo alvos do ataque e da exploração dos que somente visam o lucro, e estamos em muitos momentos acuados e com medo, como quando ameaçaram invadiram Assis. Aqui se pode evoca novamente o destemor e a confiança de Clara em Cristo para que se possa seguir na luta.

Foto: Maribeth Joeright, 2016

Clara foi identificada como a “plantinha” que cresceu no solo de Assis e que se encantou com a vida iniciada por Francisco. Os dois, Francisco e Clara, são as duas faces de um mesmo testemunho de um modo de vida diferente e nos colocam no mesmo caminho do Cristo pobre. Ambos não ficaram sozinhos em seu projeto e começaram a viver como comunidade, no grupo dos frades menores e com as pobres damas, por isso, são também modelo de comunhão. Hoje, em meio dos gritos que ouvimos em nossa Amazônia, somos convidados e dar respostas como os de Clara e Francisco seguindo os rumos apontados pelo Sínodo para Pan-Amazônia. Como Clara reagiu diante das ameaças a vida do povo de Assis, assim precisamos despertar, e firmes em nossa fé, defender a nossa Casa Comum. No amor e na simplicidade, trabalhemos juntos pela vida em plenitude no coração da Terra. Desse modo, Santa Clara nos ilumina a viver em busca de Cristo como nosso grande amor, que pulsa no coração da Querida Amazônia.

Texto: Frei Fábio Vasconcelos, OFM