Foto: Frei Andrei Anjos, ofm.

Suicídio na Amazônia: como a injustiça e a infelicidade estão matando nosso povo

Foto: Frei Andrei Anjos, ofm.

Ainda hoje, para muitas pessoas, falar de suicídio é considerado um verdadeiro tabu. Por muito tempo acreditou-se que ao evitar abordar o assunto, menos pessoas tentariam tirar a própria vida. Para ajudar a prevenir e combater esse problema, a Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio, juntamente com a Organização Mundial da Saúde, escolheram o dia 10 de setembro como o “Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio”. E com o intuito de reforçar a luta em favor da vida, foi criada no Brasil, em 2015, a campanha “Setembro Amarelo”, que é uma iniciativa do Centro de Valorização da Vida (CVV), da Associação Brasileira de Psiquiatria e do Conselho Federal de Medicina.

Mas, o que é o suicídio e quais as suas causas? Simone Weil, filósofa francesa, definiu o suicídio como: “Qualquer ato realizado com a ideia de que acarretará a morte” (WEIL, 1991, p. 204). Entre os quatro tipos de suicídio, elencados por ela, lê-se: 1) Por consciência; 2) Por honra; 3) Por devoção; 4) Por desespero.  A mesma filósofa encontra na injustiça e (ou) infelicidades as grandes causas do suicídio, já que estes fatores podem levar as pessoas a desenvolverem ideias autodestrutivas. 

Na região amazônica, suicídio tornou-se uma realidade tanto nos grandes centros urbanos, quanto nas pequenas cidades interioranas. Porém, o que mais tem chamado a atenção dos pesquisadores, é o alto índice de casos, ocorridos especialmente em cidades afetadas por fenômenos migratórios e projetos governamentais de “desenvolvimento econômico” instalados na região. Para sustentar essa ideia, não nos faltam exemplos de situações de injustiça e infelicidades vividas pela população local nos últimos anos. Exemplo disso é a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu, no estado do Pará. A usina está localizada próxima da cidade de Altamira, que possui cerca de 115 mil habitantes. A obra provocou danos irreparáveis no modo de vida e na cultura dos povos que vivem na região. De acordo com o Jornal El País, somente entre os meses de janeiro e abril de 2020, foram registrados 15 casos de suicídio no município; entre eles, nove crianças e adolescentes. Um fenômeno assustador se considerarmos que a média nacional é de 4 a 5 casos para cada 100 mil habitantes.

O alto índice de suicídio praticado por indígenas que vivem no município de São Gabriel da Cachoeira localizado no Estado do Amazonas, também chama atenção. Na cidade, onde nove entre cada dez pessoas são autodeclaradas indígenas, foram registrados 15 suicídios entre os anos de 2001 e 2006 (SOUZA; ORELLANA, 2012a). Para buscar compreender as causas desse fenômeno entre os indígenas, também é necessário mergulhar na sua cosmovisão repleta de lendas, mitologias e crenças. Alguns deles, por exemplo, acreditam que as pessoas que cometem suicídio podem ter sido alvos do que eles chamam de “sopro ou estrago” (encanto xamânico que teria como motivação a inveja de uma outra pessoa); ou seja, as pessoas seriam alvo de uma espécie de feitiço (Pereira, 2013). Para determinados grupos, como é o caso do povo Sarowaha o suicídio não é entendido como o fim da vida e sim um processo de transformação da mesma. Este grupo, alimenta a crença de que é preferível morrer jovem. Isso porque, eles acreditam na existência de uma outra vida após a morte, onde poderão encontrar seus antepassados e gozar de uma vida onde ninguém envelhece (POZ, 2000).

Foto: Frei Andrei Anjos, ofm.

Entretanto, estudos apontam que as causas mais comuns para os suicídios praticados entre os indígenas, estão relacionados ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas, possíveis conflitos familiares e dificuldades de adaptação à uma realidade urbana onde seus modos de vida são praticamente inviabilizados. Os indígenas sofrem o que pode ser chamado de “desenraizamento social e cultural.” Forçados a abandonar seus territórios, a única alternativa que lhes resta é arriscar a sorte nas periferias das cidades. Sem educação de qualidade, nem formação profissional adequada, vão às duras penas tentando sobreviver. Separados de seus parentes e do contato com a natureza, eles também vão aos poucos perdendo importantes laços comunitários e simbólicos que são fundamentais para a manutenção de suas vidas e de sua cultura. Dessa maneira, os sofrimentos aos quais são submetidos tem efeitos devastadores na sua saúde mental, física e social. Mergulhados nessa nova realidade acabam tendo contato com padrões e valores culturais muito diferentes daqueles que antes eram vividos dentro de suas comunidades tradicionais. Como consequência de todo esse processo, muitos indígenas acabam experimentando um sentimento devastador de profundo vazio interior, bem como perda de sentido da vida.

Isso tudo, só reforça a tese defendida do sociólogo e antropólogo Émile Durkheim, que desenvolveu um estudo detalhado sobre o suicídio. Segundo ele, o fenômeno do suicídio não é uma causa individual, mas sim uma causa social (DURKHEIM, 2004). Portanto, ao se levar em consideração a gigantesca desigualdade e exclusão social existente hoje na região de Altamira, resultantes da construção de Belo Monte, expressas de maneira visível através da violação dos direitos individuais e coletivos, desestruturação das relações sociais e culturais, degradação do meio ambiente, tráfico de drogas, exploração sexual infantil, desemprego, entre outros, bem como, a realidade vivida  pelos indígenas de São Gabriel da Cachoeira, é possível considerar que todos estes fatores, influenciam de maneira significativa para que sentimentos  de injustiça e infelicidade sejam experimentados por um número cada vez maior de pessoas que vivem nessas cidades. Consequentemente, isso as levaria a ficar mais suscetíveis à prática do suicídio.

 Diante da realidade apresentada, o que se percebe é a importância de procurar compreender o suicídio dentro de um contexto social muito mais amplo, isso ajuda a evitar pré-julgamentos pautados apenas na polarização entre o certo e o errado. Além disso, é fundamental que as pessoas tomem consciência de que o modelo econômico atual, baseado na exploração da Amazônia a qualquer preço, é na verdade um verdadeiro suicídio para toda humanidade. Isso porque este modelo não causa somente a destruição de ecossistemas essenciais para manutenção da vida humana; ele também produz uma fragmentação e destruição dos laços socioculturais que tem sido o elo entre famílias e comunidades inteiras durante séculos. 

Para finalizar esta reflexão, é fundamental alimentar a esperança e reconhecer o papel de cada pessoa frente aos casos de suicídio, procurando contribuir para o desenvolvimento de estratégias que possam dar o suporte necessário para as famílias e principalmente, ajudem a salvar vidas e sonhos, de maneira ainda mais especial, a vida e os sonhos de crianças e jovens. 

 

Frei Vagner de Sena Ferreira, OFM

Graduado em Filosofia pela Faculdade Salesiana Dom Bosco (Manaus – AM) e acadêmico de Teologia na Catholic Theological Union (Chicago – IL)

 

Referências: 

BRUM, Eliane; GLOCK, Clara. A Cidade que mata o futuro: em 2020, Altamira enfrenta um aumento avassalador de suicídios de adolescentes. Disponível em: brasil.elpais.com. Acessado em 3 de Setembro de 2021.

DURKHEIM, Émile. O Suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 

PEREIRA M.M. Representações sociais sobre suicídio indígena em São Gabriel da Cachoeira–AM: um estudo exploratório. Dissertação (Mestrado multidisciplinar em saúde, sociedade e endemias na Amazônia) – Fundação Oswaldo Cruz/Instituto Leônidas e Maria Deane. Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2013; p.127. 

POZ, J. D. Crônica de uma morte anunciada: do suicídio entre os Sorowaha. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 43, n. 1, p. 89-144, 2000.

SOUZA Maximiliano Ponte de, ORELLANA, Jensen Douglas Yamall. Suicide mortality in São Gabriel da Cachoeira, a predominantly indigenous Brazilian municipality. Revista Brasileira de Psiquiatria, 2012; 34(1): 34-37.

WEIL, Simone. Aulas de Filosofia. Trad.: Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1991. p. 204-205.