Ilustração Cartaz do IV encontro da Igreja Católica na Amazônia Legal – Divulgação: REPAM Brasil

Santarém: a semente da sinodalidade plantada na Amazônia

Ilustração Cartaz do IV encontro da Igreja Católica na Amazônia Legal – Divulgação: REPAM Brasil

Em um tempo em que algumas pessoas pensam que a sinodalidade é um invento do Papa Francisco, é bom entender que estamos diante de uma forma de ser Igreja que ganhou grande impulso no Concílio Vaticano II, podendo afirmar que isso aconteceu na Amazônia a partir do Encontro de Santarém, que está completando 50 anos.

Já logo no início do Documento de Santarém aparece algo que pode nos levar a vislumbrar essa dimensão sinodal: “é um documento humano, reflexão fiel do pensamento do momento dos homens que dirigem os destinos da Igreja da Amazônia, homens sensíveis aos problemas e aspirações dos homens e dos grupos humanos que ocupam o espaço amazônico”. Nessas palavras, podemos dizer que se deixa transluzir uma atitude de escuta da realidade, algo fundamental em uma Igreja sinodal, uma Igreja que parte da realidade, dos problemas que fazem parte da vida do povo.

As linhas prioritárias da Pastoral da Amazônia que aparecem no Documento partem da realidade amazônica, “dos valores humanos e sociais do amazônida”. No Sínodo sobre a Sinodalidade, como já aconteceu no Sínodo para a Amazônia, o conhecimento da realidade, o processo de escuta, é considerado como condição indispensável na engrenagem sinodal. Foi nesse processo de escuta que foram conhecidos os clamores da Amazônia no Sínodo, algo que também esteve presente em Santarém.

O Documento fala de diversidade de ministérios, de uma Igreja em que “o cristão, pelo batismo, tem uma missão a cumprir dentro da comunidade, que consiste em testemunhar a verdade, pregar a boa-nova, viver conforme os dons e a capacidade que recebeu”, um elemento de fundamental importância em uma Igreja sinodal, estruturada como Povo de Deus, que segundo Santarém “significa Comunidade de Batizados”.

Foto: REPAM Brasil

O conceito “Agente de Pastoral”, superando uma visão clerical da Igreja, é entendido em Santarém como “todo aquele que se engaja total ou parcialmente no trabalho apostólico da Igreja, em funções diversificadas”. Nesse ponto, o Documento vai além do presbítero, e fala de “diáconos, ministros da Eucaristia, e de outros Sacramentos, dirigentes de cultos e de comunidades”.

Agentes para quem se indica a necessidade de formação desde os elementos autóctones. Nesse sentido, quando afirma que “ninguém melhor do que o homem do próprio meio de condições para exercer a liderança dentro da comunidade”, que deve “ser indicada pela comunidade a que pertence”, esses elementos podem ser considerados como uma clara escolha de uma Igreja que supera o clericalismo, um dos pecados que segundo o Papa Francisco impedem o avanço de uma Igreja sinodal. Junto com isso, se orienta o Agente de Pastoral para um trabalho comunitário, que vai se formando na troca de ideias.

Uma concreção da sinodalidade no Documento de Santarém é a Comunidade Cristã de Base, considerada em Medellín como “célula inicial de estruturação eclesial”, que leva a paróquia a “descentralizar sua pastoral”. É uma Igreja que se encontra, que sente necessidade de escutar, de viver uma “permuta de experiências e reflexões em comum”.

Em 1971, o Papa Paulo VI disse que “Cristo aponta para a Amazônia”. Hoje o Papa Francisco vê a Amazônia como a periferia que pode ajudar o centro, a Cúria Romana e a Igreja como um todo, a entrar no caminho da conversão que possibilite percorrer os novos caminhos que à luz do Evangelho é desafiada a enfrentar, os caminhos de uma Igreja sinodal.

Pe. Luis Miguel Modino

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Celebrar uma Quaresma sinodal

 

 

Não fechar o coração e escutar a voz de Deus é uma exigência não apenas do caminho quaresmal, mas de toda uma vivência cristã. Na busca pela sinodalidade temos uma bela oportunidade de escutar. A caminhada sinodal se abre em grande tempo de escuta, no que urge também fazer silêncio e prestar atenção para si e para os irmãos, e isso está bem alinhado com a espiritualidade quaresmal. Nesse processo sinodal somos chamados a converter-nos pessoal e comunitariamente. A experiência de caminhar juntos (sinodal) do povo de Deus pelo deserto mostra a necessidade de crescer na mudança de vida e no amor do Senhor. Caminhamos por um percurso que nos leva a sermos uma Igreja de irmãos e irmãs. É uma mudança que deve ser progressiva e constante, pois é indispensável no agir eclesial (uma igreja sempre em reforma). Nesse tempo favorável, onde pedimos a graça de caminhar com alegria no amor de doação total de Jesus, somos convidados a ter um coração aberto e sinodal. 

A quaresma é sim um tempo de renovação pessoal, mas também de conversão eclesial. Muitas comunidades têm aproveitado esse tempo de retiro quaresmal para “aprender a escutar”. O site da diocese de Aveiro (Portugal) traz importantes sugestões para celebrar o tempo quaresmal à luz da caminhada sinodal. É tempo de “caminhar juntos e participar” sendo mais próximos. Devemos seguir o exemplo do Deus libertador que escuta os clamores do seu povo. É tempo também de adentrar o deserto guiados pelo Espírito Santo. A oração “Adsumus Sancte Spiritus”, nos coloca diante do Espírito com nossas fragilidades e nela se reconhece que sem a luz divina podemos desviar dos caminhos da justiça e da verdade. Podemos igualmente desviar do caminho sinodal ou paralisar-nos diante dos desafios da sinodalidade.

As leituras dominicais para a quaresma (neste ano C) nos permitem também seguir com Cristo em processo sinodal. Diante das tentações de ser grande e colocar-se acima dos outros, podemos desviar das trilhas do reino. Com o Bom Jesus Luminoso somos convidados a não nos acomodar no cume da montanha e descermos para ser Igreja em Saída. Deus nos convida a escutar a voz de Jesus que nos encaminha sempre mais para a comunhão perfeita. Outra tentação em nossa estrada eclesial é a de achar-se melhor e mais perfeito que os outros. Somos convidados à mudança interna e radical de mentalidade, uma conversão para frutificação sinodal que exige atitude e cuidado. A sinodalidade é essa oportunidade renovadora. A casa do Pai misericordioso é o lugar da comunhão, participação e missão que acolhe todos os seus filhos.

A quaresma é igualmente um tempo de índole batismal, onde os catecúmenos preparam-se mais intensamente para celebrar os sacramentos de iniciação e a Igreja recorda os compromissos do batismo. O documento preparatório do Sínodo 2021-2023 nos reforça que: “Por conseguinte, todos os Batizados, participantes na função sacerdotal, profética e real de Cristo, no exercício da multiforme e ordenada riqueza dos seus carismas, das suas vocações, dos seus ministérios, são sujeitos ativos de evangelização, quer individualmente quer como totalidade do Povo de Deus”. A temática libertadora do êxodo, caminho que a cada ano a Igreja refaz na quaresma, nos impulsiona para irmos cada vez mais rumo à comunhão, participação e missão. A Igreja em saída é aquela que se converte sinodalmente.

 

 – Frei Fábio Vasconcelos, OFM.

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Da exortação “Querida Amazônia” ao Sínodo sobre a Sinodalidade: A Igreja movida pelo mesmo Espírito

Foto: vaticannews.va/

 

Ao celebrarmos o 2º aniversário da publicação da exortação apóstolica “Querida Amazônia”, escrita pelo Papa Francisco e apresentada ao público no dia 12 de fevereiro de 2020, muitos de nós podemos estar nos perguntando que impacto causaram as palavras e os sonhos compartilhados pelo Papa a respeito do Sínodo especial sobre a Amazônia, em relação à situação eclesial e socioambiental na Amazônia, como também em toda a Igreja universal.

Ora, partindo da minha experiência de ter participado do Sínodo Pan-Amazônico e de estar colaborando atualmente na realização deste novo Sínodo sobre a Sinodalidade, iniciado oficialmente pelo Papa Francisco no dia 9 de outubro de 2021 e cuja conclusão está prevista para acontecer na assembleia sinodal de outubro de 2023, tenho a nítida convicção de que estamos a testemunhar a ação do mesmo Espírito Santo, que continua a soprar ventos de renovação em nossos corações e em nossas estruturas, o que faz deste momento histórico do pontificado de Francisco, um tempo verdadeiramente de kairós e de conversão para toda a Igreja e para todos nós, apesar de toda resistência que isso provoca em alguns grupos de católicos (incluindo leigos, clérigos, bispos e até cardeais), sempre contrários a qualquer tipo de mudança no status quo, já que entendem que qualquer tentativa de “atualização” da fé cristã não passaria de uma forma de “mundanização” da mesma.

O que essas vozes críticas (e, às vezes, desrespeitosas) ao pensamento do Papa Francisco nunca conseguirão, contudo, frear, é o inequívoco movimento que o Espirito Santo tem suscitado na Igreja, sendo Ele o autor dos recentes e históricos acontecimentos acontecidos no âmbito eclesial. De fato, é ação renovadora do Espírito sempre presente na história da salvação, como recordou o Papa em “Querida Amazônia”, citando as palavras de São João Paulo Segundo, para quem “o Espírito Santo embeleza a Igreja, mostrando-lhe novos aspectos da Revelação e presenteando-a com um novo rosto”[1]. Por isso, insistirá Francisco na sua exortação apostólica que completa dois anos, “é necessário aceitar corajosamente a novidade do Espírito capaz de criar sempre algo de novo com o tesouro inesgotável de Jesus Cristo[2]. Aliás, o que o Papa atual nos ensina é o que a Igreja sempre afirmou sobre a ação do Espírito de Cristo sobre a sua Igreja, levando-a a atualizar constantemente em si mesma o mistério da comunhão com a comunidade cristã original e com a tradição apostólica, por meio da transmissão dos bens da salvação, como ensina o grande teólogo Bento XVI. E acrescenta o nosso Papa emérito que

 

esta atualização permanente da presença ativa de Jesus Senhor no seu povo, realizada pelo Espírito Santo e expressa na Igreja através do ministério apostólico e a comunhão fraterna, é aquilo que em sentido teológico se quer dizer com a palavra Tradição: ela não é a simples transmissão material de quanto foi doado no início aos Apóstolos, mas a presença eficaz do Senhor Jesus, crucificado e ressuscitado, que acompanha e guia no Espírito a comunidade por ele reunida[3].

 

Imagem: Adaptado de vaticannews.va/

 

Portanto, não há dúvida da presença atualizadora, iluminadora e guiadora do Espírito em todo este movimento que vemos acontecer na Igreja em saída do Papa Franscisco, que nos convida a todos a caminhar juntos em um grande processo de encontro, escuta e discernimento sinodal, cujo ápice se dará na assembleia sinodal de 2023, mas que desde a realização dos recentes sínodos da família, da juventude e, especialmente, o da Amazônia, vem preparando a Igreja a abrir-se para este novo tempo, impelida pelo “fogo do Espírito que nos impele para a missão”[4].

De fato, já desde o Sínodo sobre “Os desafíos pastorais da família no contexto da evangelização”, realizado em outubro de 2014, Francisco quis que o Sínodo, metodologicamente, criasse mais momentos para ouvir, sobretudo a voz dos leigos,  promovendo duas reuniões pré-sinodais, antes da assembleia. Da mesma forma, no Sínodo sobre “Os jovens, a fé e o discernimento vocacional”, em outubro de 2018, ampliou-se a modalidade de escuta, resultando em maior espaço para a participação dos jovens na fase preparatória e também na assembleia. Francisco percebeu que, para ouvir o que o Espirito Santo diz, era necessário promover um amplo processo de escuta e discernimento espiritual, anteriores à assembleia sinodal conclusiva, que se realiza geralmente no Vaticano. Contudo, o maior exemplo deste movimento do Espírito na Igreja, em direção à sinodalidade, veio com a realização do Sínodo Especial sobre a Amazônia, com o tema “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e por uma ecologia integral”, marcado por uma ampla presença do Povo de Deus em todo o processo de escuta concreta e inclusiva de todos os rostos pan-Amazônicos, como os povos indígenas, as lideranças femininas das comunidades, convidados de organismos científicos internacionais, irmãos e irmãs de outras denominações cristãs, etc. Essas experiências podem ser consideradas como as precursoras do atual momento que a Igreja vive, com a convocação de um Sínodo sobre a Sinodalidade, a ser feito em três fases distintas (diocesana, continental e universal), ao longo dos próximos dois anos. Em sua exortação “Querida Amazônia”, o Papa faz referência a experiências positivas vivenciadas pelas comunidades eclesiais pan-amazônicas, considerando-as “verdadeiras experiências de sinodalidade no caminho evangelizador da Igreja na Amazônia”.

Contudo, Francisco é consciente de que os sopros de renovação do Espírito Santo sobre a Igreja implicam também em um grande processo de conversão, pessoal e institucional. Daí o seu constante apelo a que nos deixemos converter, abrindo-nos à ação do divino Espírito. Assim que, assumindo tudo o que os padres sinodais do Sínodo sobre a Amazônia disseram a respeito da necessidade de novos caminhos de conversão integral, em suas dimensões pastoral, cultural, ecológica e sinodal, o Papa em “Querida Amazônia” afirma que somente a “conversão interior é que nos permitirá chorar pela Amazônia e gritar com ela diante do Senhor”[5]. Eis por que, na celebração do segundo ano de sua publicação, esta exortação continua a ser um grito em favor da Amazônia e da Igreja na Amazônia, que deve também nos converter.

E, quanto ao caminho sinodal que ele nos convoca a fazer, este também só acontecerá se nos deixarmos impregnar do “espírito sinodal” e passarmos pela “conversão sinodal”, abrindo o nosso coração à renovação, favorecendo o encontro e a escuta do outro, com maior participação e comunhão, discernindo juntos novos caminhos de evangelização e de nossas estruturas eclesiais.

 

Pe. Adelson Araújo dos Santos SJ

Pontifícia Universidade Gregoriana – Roma

Participou como perito no Sínodo Especial sobre a Amazônia

É membro da Comissão de Espiritualidade do Síndodo sobre a Sinodalidade

 

– Fonte do texto: https://cnbbnorte1.blogspot.com/2022/02/da-exortacao-querida-amazonia-ao-sinodo.html?m=1

 


[1] QA, 68.

[2] QA, 69.

[3] PAPA BENTO XVI, A comunhão no tempo: a Tradição, Audiência Geral, 26 de Abril de 2006.

[4] QA, 109.

[5] QA, 56.

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O Advento da Igreja Sinodal

Foto: Arquivo da Custodia

 

O tempo do Advento nos traz uma mensagem de esperança e nesta caminhada sinodal também sentimos a alegre expectativa pelo novo que vem. Ressoam fortes a ideia do Reino que veio e que vem, na encarnação e parúsia. As duas vindas de Cristo nos colocam em um caminho na história e para além dela, que a Igreja pretende trilhar de forma sinodal. Sinodalidade é uma expressão que evoca o caminhar juntos. A palavra advento nos dá a ideia de presença permanente, Deus que vem, e a nossa chegada até Ele. Temos então um percurso para comunhão no “achegar-se” junto dele que vem ao nosso encontro. O Advento do Senhor é advento da Igreja nova.  

O Advento é um tempo caminhante para a novidade que Deus nos prepara. Tempo de escuta, comunhão e missão. Os textos bíblicos nos remetem à preparação dos caminhos do Senhor e da Igreja que com Maria se põe na estrada do serviço. A gestação sinodal deve dar à luz a alegria de uma comunidade que sempre se renova, como o menino Deus. O advento é um tempo de escuta e preparação, assim como a caminhada sinodal nos coloca a necessidade de ouvir os clamores de Deus e os sinais dos tempos. Essa irrupção de Deus na nossa humanidade é como vento que sacode as coisas. Preparar os caminhos do Senhor, implica hoje no caminhar juntos. 

 

Compartilhamos os sonhos e esperanças, mas também os sofrimentos e incertezas. O apelo a caminhar juntos nestes tempos de luto e sofrimento nos convida a sermos semeadores da esperança. “Muito suspira por Ti” é um canto de autoria de Geraldo Leite Bastos que sintetiza bem essa expectativa em conjunto. Esperamos o Santo Messias em comunhão, participação e missão. A nação que sofre junto, a qual “enchem de dor”, também é aquela que espera e luta por novos tempos. A Igreja no advento deste sínodo é chamada a “fazer germinar sonhos, suscitar profecias e visões, fazer florescer a esperança, estimular confiança, enfaixar feridas, entrançar relações, ressuscitar uma aurora de esperança, aprender uns dos outros e criar um imaginário positivo que ilumine as mentes, aqueça os corações, restitua força às mãos” (Papa Francisco, 2018). Somos aqueles que no espaço do Advento se põem a mirar o sol que nasce da aurora. Estamos nos passos daquele “novo que sempre vem”, como cantam os nossos artistas.

Outra imagem coletiva do Advento é a de um povo em expectativa. “Jerusalém, Povo de Deus, Igreja santa, levanta e vai, sobe as montanhas, ergue o olhar” (Reginaldo Veloso) é o que cantamos numa união sinodal, para recordar que somos um povo que caminha junto na esperança. “Este povo que escolheste, sua sorte melhoraste”, tomado da expressão do salmista, nos lembra que vamos trilhando o Advento da comunhão. Essa eleição não é exclusivismo, mas serviço e testemunho universal. A alegria é outra tônica deste tempo, uma feliz espera e caminho sinodal com suas releituras e mudanças nos enche de felicidade. É a alegria de um encontro com o Senhor e os irmãos.  

Esperamos que esse tempo do Advento vivido em chave sinodal nos ajude a perceber que partilhamos esperanças no caminho com o Senhor. Nesta oportunidade da vida eclesial somos convidados a mudar os nossos passos para acolher o Reino. Percebamos que estamos no Advento de uma “Igreja sinodal” que acende as luzes da escuta, comunhão, participação e missão e o sonho do fim do clericalismo que imbeciliza e do autoritarismo que atrofia.

Frei Fábio Vasconcelos, OFM