Encontro sobre o Sínodo (fevereiro de 2020). Foto: Luis Miguel Modino

2 anos do Sínodo Amazônico: “O caminho sinodal hoje se enraíza e se fortalece”

Divulgação do Encontro On-line. Fonte: Redes sociais da REPAM

 

Em 27 de outubro de 2019, com uma Eucaristia na Basílica de São Pedro, foi encerrada a Assembleia Sinodal do Sínodo para a Amazônia. Dois anos mais tarde, a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM) e a Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA) quiseram trazer de volta o que haviam vivido durante as três semanas da assembleia.

Um webinar intitulado “2 anos do Sínodo Amazônico: avanços e perspectivas para uma Igreja sinodal“, contou com a presença do Cardeal Cláudio Hummes, relator do Sínodo para a Amazônia e atual presidente da CEAMA, Yesica Patiachi, indígena do povo Harakbut, auditora na assembleia e atual assessora da presidência da REPAM, e Tania Ávila, teóloga indígena boliviana que esteve presente na assembleia sinodal como auditora.

A participação dos povos indígenas em um Sínodo é um marco, como afirmou Yesica Patiachi. A indígena do povo Harakbut insistiu em que não se sentiu discriminada, algo importante para os povos que sofreram “em sua própria carne muitas crueldades e injustiças”. A conselheira da REPAM destacou a forma como o Papa Francisco olhou para os povos indígenas da Amazônia, sua escuta atenta, seu tratamento especial, “um papa muito próximo e muito humano“.

 

Papa em Puerto Maldonado. Foto: Vatican Media.

 

Patiachi insiste que assim como o Papa Francisco é muito claro sobre o que ele quer para a Amazônia, isto deve ser compreendido e assumido por todos aqueles que vivem na Igreja da Amazônia. É por isso que ele assinalou que “muitos padres, religiosas, congregações têm dificuldade de entender que a Igreja está sendo transformada”. Neste sentido, ela disse que tinha medo que “tudo o que foi dito no Sínodo não dê em nada”, recontando suas palavras ao Papa: “Eu sinto que você está remando sozinho, mas os povos indígenas estão com você e nós vamos remar juntos“.

Em seu discurso, ela insistiu em ver o futuro como uma possibilidade de poder mudar, de construir novos caminhos a partir dos erros. É por isso que ela vê como necessário que o missionário entenda que “ele não vem com uma receita mágica, o que ele tem que fazer é ouvir seu irmão, algo que é possível através da sinodalidade”. A partir daí, “aplicar a interculturalidade, sem impor”, porque, segundo a indígena peruana, “a Igreja não pode ter uma relação tóxica com os povos indígenas”, algo em que ela reconhece que já há progresso. É uma questão de tomar medidas para entender o que uma Igreja com rosto amazônico implica, de entender que não há receita para a Amazônia, que o caminho está sendo aberto, em um acompanhamento de longo prazo, em uma Amazônia que é complexa.

conversão a Jesus Cristo e a sua Igreja como parte de todo processo eclesial. Esse tem sido o ponto de partida da reflexão do cardeal Cláudio Hummes, quem afirmou que “essa conversão por sua vez nasce de um encontro forte, pessoal e comunitário com Jesus Cristo”, algo que aconteceu com os discípulos, que “sentiram um fogo novo em si que os levou a ser missionários”. Essa conversão, “ela precisa ser constantemente retomada e alimentada durante a vida”, segundo o purpurado.

Sem essa conversão, “nossa ação missionária na Amazônia será fogo de palha e não terá nada de eclesial, sinodal ou pastoral”, insiste Dom Cláudio. Segundo ele, “alimentado pela conversão eclesial o caminho sinodal da Igreja na Amazônia hoje se enraíza e se fortalece”, algo que se concretiza em que “na Amazônia, a Igreja hoje convoca não apenas os bispos como agentes do processo, mas também as outras categorias do povo de Deus”.

 

Encontro sobre o Sínodo (fevereiro de 2020). Foto: Luis Miguel Modino

 

Tudo isso gerou uma Assembleia Eclesial Latinoamericana, afirma o cardeal, que convoca todas as categorias do Povo de Deus. Segundo ele, “também ela representará uma inovação na Igreja mundial e reforça a grande reforma da Igreja querida pelo Papa e assinalada na sua encíclica Evangelii Gaudium”. No mesmo sentido, ele referiu-se ao reconhecimento canônico da Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA) pelo Papa Francisco. Isso fortalece o trabalho da Igreja na Amazônia, segundo o presidente da CEAMA, pedindo que a “ereção canônica nos reconvoque para o trabalho, nos inspire e alargue nosso coração”.

O cardeal chamou a “não esquecer que sempre trabalhamos em rede”, colocando como exemplo a REPAM. Ele refletia sobre a dificuldade das conferencias episcopais para entrar na metodologia sinodal. Mesmo assim vê fundamental que a CEAMA e as conferencias dos países que formam parte da Pan-Amazônia, elaborem juntos o Plano de Pastoral de Conjunto, para assim “promover o processo pastoral e sinodal na aplicação do sínodo no território”.

Junto com isso, Dom Cláudio refletiu sobre a necessidade de “incentivar uma maior Inculturação da fé no citado território”.  Sobre isso já refletiu São João Paulo II, lembrou o cardeal, e está sendo promovida pela CEAMA, insistindo em que “inculturação, como sabemos, demanda processos longos”.

Através de símbolos diferentes, Tania Ávila relatou seus sentimentos sobre o que ela havia vivido nos últimos dois anos à luz da Querida Amazônia e do Documento Final do Sínodo. A teóloga boliviana lembrou o que disse há dois anos, quando comparou o Sínodo com uma tecelagem, na qual “fios seriam deixados para continuar tecendo”, algo expresso em conversões e sonhos. A auditora sinodal defende a aprendizagem de relações de colaboração, reconhecendo o povo como os principais interlocutores, uma insistência do papa na Querida Amazônia.

A experiência da escuta, a busca do diálogo, o reconhecimento das diversas vozes de diferentes culturas e formas de sentir a Igreja, são vistos como desafios pela teóloga. Trata-se de entender, com o rio Amazonas, onde existem muitos rios que convergem, que “cada rio traz as vozes de seus territórios, das pessoas que fazem parte dele, dos antepassados que cantaram em suas margens, trazem sonhos do presente, do passado e do futuro“. Mas eles também trazem elementos negativos, que “em vez de gerar vida criam morte”.

Tania expressou as contribuições nos símbolos do poliedro, uma imagem com a qual o Papa Francisco nos lembra que “os povos são os principais interlocutores”; pequenas sementes misturadas, que nos convidam a discernir juntos; raízes, que mostram a corresponsabilidade necessária; espiral, que expressa a sororidade, destacando a importância decisiva da participação das mulheres no Sínodo; cuia com água, mostrando que temos que reaprender a ser uma Igreja sinodal; e uma semente, que nos chama a plantar para o futuro, a sonhar.

Pe. Luis Miguel Modino

Assessor de comunicação CNBB Norte 1

Fonte: CNBB Norte 1

Ilustração com base na foto de  Pisco Del Gaiso/Folhapress.

A espiritualidade dos corpos femininos

Ilustração com base em uma representação da Pachayaya

 

Sinto-me atraída, surpresa e fascinada pelo caminho de comunhão com o Deus da natureza, que os anciãos das comunidades vivem e pudemos constatar nos diferentes povos com quem contatamos nas Itinerâncias:

A sua conexão profunda com todo o criado é admirável. Em Angoteros, falando com Walter – pai do atual cacique – de 75 anos, ao mostrar-lhe a imagem de Pachayaya, iniciou uma oração em kichwa com devoção. Mais do que as palavras, nos assombrou a sua espontaneidade e o seu semblante iluminado como se visse ao Invisível. 

Ou ao compartilharmos com o xamán David, em Pucallpa, que nos mostrava um vídeo de umas luzes que apareciam no meio da mata quando ele entoava os cantos que os xapiris, lhe inspiravam: “Tudo é energia. Eles se mostram, são os espíritos dos nossos antepassados se manifestando, entrando em comunicação”, afirmava.

Mas não é uma prática restrita aos homens. As relações das mulheres com a natureza, especialmente com a Terra, possuem um substrato simbólico vital, e inerente ao corpo delas, de fecundidade e natalidade. O corpo delas, como prolongação dessa terra, que gera, cuida, alimenta: a Pachamama.

 

Ilustração com base na foto de Pisco Del Gaiso/Folhapress.

 

A mulher Awà Guajá da imagem, com o joelho no chão, carregando a criança do seu ventre, alimenta o porquinho que a natureza lhe ofereceu, alimentando a cria que perdeu a mãe por alimentar ao ser humano, talvez à própria família dela ou aos parentes da comunidade. Uma relação de reciprocidade e integração, na espontaneidade da vida, que vá para além da racionalização, e que muitos de nós vimos nas nossas visitas às comunidades.

A Mãe Terra, como essas mulheres e como tantas mulheres que carregam a vida em suas entranhas, busca um espaço seguro para dar à luz e deixar brotar a vida que leva dentro, ou simplesmente partilhá-la, amamentando a todo aquele que com humildade se aproxime dela, não em uma relação mercantil ou de comércio, mas de necessidade e equilíbrio elementar do ecossistema, como a cria ou a criança que nasce.  Evoca-nos ou simboliza uma expressão bíblica: “A terra geme com dores de parto” (Rm 8,32), por dar vida.  E como podemos aprender das mulheres!

 

Mãe Munduruku com a filha nos braços. Foto: Frei Andrei Anjos

As mulheres sábias e parteiras: uma prática concreta

O testemunho de Lorenza, nos abre uma janela a esta espiritualidade vivida pelas mulheres que vivem nas margens dos rios, longe da atenção médica, mas que guardam em si o poder da vida. Seguem seu instinto e se solidarizam entre si, apoiando-se mutuamente quando se trata de defender a vida de um ser vivente. 

A vida chega de cócoras: LORENZA, parteira consagrada em Angoteros.

Sentadas em um tronco, enquanto se celebra uma minga na casa, a mamãe de Geni, Lorenza, nos conta sua experiência como parteira. Uma conversa tranquila, quase sussurrando, pois o kichwa não alça a voz. Prestamos atenção às suas frases entrecortadas, com o espanhol que maneja, e nos confirma que ajudou muitas mães a dar à luz de cócoras. Detalha que amarram uma corda ao pau transversal da maloca (ou casa de fusta), e o marido ajuda agarrando as costas por trás. É interessante, o escutamos também de outras mulheres da região, que continuam dando à luz nas próprias casas, e que são os maridos os que atendem diretamente a suas mulheres nesses momentos, estão“ do lado” – como Gênesis [1]  sugere- na criação do homem e da mulher.

Alumbrar sem luz

As mulheres dessa região (Río Napo- Perú) acostumadas a dar à luz nas suas casas, contam as suas experiências, e uma nos comentou que havia dado à luz na cozinha, em uma casa de tábuas a vários metros de altura do chão, e conta: “Como era de noite e sem luz, tinha medo que, na hora de nascer, o bebê escorregasse pelas frestas que se abrem irregularmente. Meu marido foi buscar ajuda, e eu lhe supliquei: Volta logo! ”.  Ao observar o espaço, e as condições, percebemos que as mulheres são muito corajosas e acreditam que o poder da vida sempre vence.  O bebê aí estava, correndo no meio de nós.

Experiências como estas não são para salientar o exótico ou diferente dessas situações, mas a capacidade de defender a vida. Um poder ancestral: dar vida seja qual for as condições. A história das parteiras, e o poder da vida no corpo e mãos das mulheres, é ancestral. Temos referência não só na história desses povos, mas também na história de outros povos de outras partes do mundo, como sabemos por outros estudos, como é o caso do povo de Israel [2]

A primeira arte da terra é das parteiras: dar vida, deixar que as crianças vivam, nossas crianças e as dos demais. Todas as crianças de todos. Um ofício da Antiguidade única e totalmente feminino. Quando essa primeira arte se eclipsa, a vida perde o primeiro lugar e as civilizações se confundem, enfermam e decaem. E sabemos que permanecem na sombra, ocultando seu poder, sem que se fale delas.

Dizer não a tudo aquilo que coloca em perigo o nascimento e dizer sim à vida, por cima de qualquer outra lei, é expressão e símbolo do que prevalece: o valor da vida. Um valor que se perpetua por séculos e é símbolo de resistência. Quantas mulheres se aliam pela vida, como parteiras, mães de leite, ou apadrinham os filhos de parentes, para além do círculo estritamente familiar, deixando que a vida lhes irmane e aparente, na unidade da família universal.

 

Mulheres do Povo Munduruku. Foto: Andrei Anjos

 

Espiritualidade dos corpos femininos

As mulheres no seu corpo, como continuidade e símbolo da relação com a terra, revelam uma espiritualidade da vida e da fecundidade que integra e envolve tudo, passando pelo seu próprio ser. Uma relação que as leva sempre além, estabelecendo uma irmandade que não se limita ao território, nem a família parental, mas que as inclui na irmandade universal de sermos filhos da terra. Pertencer à terra, como identidade primigênia. 

Seus corpos, são casa que nos acolhe. Uma relação que elas experimentam no próprio corpo como continuidade de si, e que revelam nas relações com os outros (iguais a si), o outro (animais) ou os bens (a natureza, os frutos que nos oferece a terra), fazendo-nos nascer constantemente à vida: são parteiras.

Um corpo que fecunda, alimenta, como a terra mesma. A terra é útero da nossa existência, lar e casa. E as mulheres, como parteiras, nos ajudam a romper águas, ensinando-nos uma relação nova com os outros (iguais a si) de irmandade, com o outro (animais) de reciprocidade, e com os bens (a natureza, e bens que nos oferece a terra) de cuidado. É essa espiritualidade o que lhes permite resistir no tempo, para além das condições físicas ou geográficas. Perpetuar-se e perpetuar a espécie.

A espiritualidade indígena enriquece as nossas próprias espiritualidades, ao indicarmos: a relação com a natureza e o criado, como parte de nosso ser, integrando-o de maneira natural. O cuidado com a terra e os outros seres, é algo constitutivo de nós, por sermos corpos abertos à vida, dedicados a acolher a vida, cuidá-la e alimentá-la, porque na origem e ao final da existência: Somos terra.

E seria um sonho que como mulheres exercêssemos nosso poder ancestral, “ do lado” de Adão, como os kichwa assistem às suas mulheres: na igualdade e reciprocidade da diferença do ser. 

 

Maria Eugenia Lloris Aguado, FMVD

Missionária da Equipe Itinerante de BOLPEBRA

 

Notas

[1] Génesis, 2 – Bíblia Católica Online: Considerando o termo em hebreu, há varias traduções ou sinônimos:“ צֵלָע – tsela, lado, costado, viga, rayo, costilla. Eva foi formada do lado de Adao: “Y le quitó una de las costillas, rellenando el vacío con carne. 22.De la costilla que Yahveh Dios había tomado del hombre formó una mujer y la llevó ante el hombre. 23.Entonces éste exclamó: «Esta vez sí que es hueso de mis huesos y carne de mi carne. Esta será llamada mujer, porque del varón ha sido tomada». 

[2] Bruni Luigino in https://www.ciudadnueva.com/libro/19911/las-parteras-de-egipto . Editorial Ciudad Nueva 2017, pp 6: Ao compararmos ambas vivencias, o povo hebreu – povo nômade de partos difíceis em tendas portáteis – colocou na origem de sua história de liberação o testemunho das parteiras do Egito, Sifrá(«la bella»)  y Puá, («esplendor», «luz»),  das quais sabemos pouco, mas quase seguro que foram egípcias, e provavelmente as parteiras responsáveis dos israelitas o de todo Egito. São um símbolo da capacidade que tem as mulheres de ultrapassar normas, leis, e obstáculos, quando o que está em jogo é a vida. E a vida de um ser indefenso, frágil e dependente. Um gesto que nos relembra o mito de Antígona, que desobedece ao rei para obedecer a lei mais profunda da vida