O dia 21 de janeiro é o dia nacional de combate à intolerância religiosa. Neste contexto, propomos uma reflexão sobre o sentido da tolerância religiosa. No presente texto, buscamos apresentar o conceito de tolerância e de intolerância nas suas bases filosóficas e históricas, para depois discutir um pouco com elementos da realidade brasileira.
A Tolerância ao longo da história: questões conceituais
A tolerância, do latim tolerantĭa, tem como definição “o ato ou efeito de tolerar, ou boa disposição para admitir ou respeitar modos de pensar, agir e sentir diferentes ou opostos aos seus” (DICIONÁRIO BARSA, 2005). Conforme o Léxico das Religiões, “a ideia de tolerância tem sua origem no esforço para superar as diferenças religiosas-filosóficas, políticas e culturais. […] significa coexistência e aceitação. […] tem seu limite na não-aceitação da intolerância totalitária” (KÖNIG, 1998, p. 588).
O filósofo Habermas (2007) conceitua tolerância como sendo um termo derivado de tolerare, relativo a suportar, aceitar, tendo associação com temas religiosos. Na sua acepção no campo do direito remete a aceitação de grupos religiosos minoritários. Para o referido filósofo, a tolerância possui três componentes: recusa, aceitação e repulsão. São partes de um processo que começa quando se desconstrói preconceitos em relação aos outros grupos religiosos.
A definição do conceito de tolerância está situada em meio às lutas históricas pelos direitos humanos, principalmente em combate aos massacres sangrentos e traumatizantes causados pelo cunho religioso no período da Idade Média (CARDOSO, 2003). Assim sendo, a tolerância surge da luta em combate à intolerância, principalmente da intolerância religiosa.
Ao final do século XVII, a noção de tolerância e intolerância são largamente utilizadas, sobretudo por adeptos do Iluminismo que se viam injustiçados, perseguidos e discriminados pelo “fanatismo medieval”. Os iluministas “mobilizaram a opinião pública contra os horrores da intolerância, proclamaram o direito sagrado de discordar, de guiar-se por sua consciência e por sua razão, e não pela religião oficial do Estado e da maioria” (MENESES, 1996 p. 6).
O filósofo John Locke, escreve na “Carta acerca da tolerância” (1689): “Se se acredita no Evangelho e nos apóstolos, ninguém pode ser cristão sem caridade, e sem a fé que age, não pela força, mas pelo amor” (LOCKE, 1983, p. 3). E na obra de Voltaire (1694-1778), “Tratado sobre tolerância” (1763), o autor ressalta a natureza frágil dos seres humanos, definidos como “fracos e ignorantes”, como fator que clama para que se auxiliem na fraqueza e na sua ignorância se instruam e tolerem-se mutuamente.
Embora o conceito e prática da tolerância tenham avançado, ainda se observa que a sociedade carece de um olhar frente ao outro, não como o “incomum” ou o “diferente”, que o eu deva suportar, mas o veja com respeito. Ainda precisamos valorizar a liberdade, autonomia e dignidade presente na humanidade. Desse modo, vemos como é “artesanal” e exige treino para alcançarmos a tolerância. E sobre isso, Jacques Le Goff (p. 38, 2000) afirma: “A ideia de que a tolerância não é natural, mas exige um certo esforço para ser aceita, uma disciplina, perdura até nossos dias. A tolerância é uma construção, uma conquista”.
Uma das repercussões históricas sobre o conceito debatido está na Declaração dos Princípios sobre a Tolerância (UNESCO, 1993), ao afirmar que são direitos fundamentais à liberdade, à autonomia e à dignidade de cada ser humano e ao defender que “tolerância é respeito, aceitação e valorização da rica diversidade das culturas, formas e dos modos de ser humano”.
Nesses pontos principais da tolerância, encontramos sua promoção pelo “conhecimento, abertura, comunicação e liberdade de pensamento, consciência e crença”. Outra noção rica que o documento nos oferece é a de que “a tolerância é harmonia na diferença, não é apenas um dever moral, é também uma exigência política e legal”. Para construirmos um mundo pacífico, precisamos da virtude da tolerância, visto que “a tolerância, virtude que torna a paz possível, contribui para a substituição da cultura da guerra por uma cultura da paz”. (UNESCO, 1993)
O ato de não aceitar, ou a incapacidade de aceitar e respeitar o pensamento e a ação do outro ligado à religião, é intolerância religiosa. Diz respeito a uma afirmação do eu, onde o outro não é visto com possibilidade de crescimento humano das minhas convicções e das minhas crenças. O outro é colocado como obstáculo para afirmar que a verdade absoluta pertence à crença que é professada pelo próprio indivíduo se autoafirmando sobre o outro. Por outro lado, o fato de não aceitar o outro com suas escolhas, pode estar atrelado à não capacidade, produzida pela insegurança do eu, de aceitar a posição oposta como uma crítica geradora de uma reflexão sobre minhas convicções.
Já a tolerância religiosa parte, principalmente, do respeito ao outro, não é um ato de clemência ou compaixão, mas atitude de reconhecer os direitos, dignidade e a liberdade presente no homem. Segundo o Artigo 18° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, todos têm direito a ter, escolher e como praticar, assim como não ter uma religião. É uma liberdade que cada indivíduo possui e precisa ser respeitada.
Tolerância religiosa no contexto brasileiro
A noção descrita pode ser observada no cenário brasileiro, ao se tratar de tolerância e intolerância religiosa. Diante da concepção do conceito de tolerância, Santos e Filho (2017, p. 424-425) observam que “com a ampliação do campo religioso, surgem desarmonias que chegam a práticas abusivas e violentas, com o objetivo de blindar e proteger sua concepção religiosa”. Fato este que acompanha a história do Brasil com sua rica diversidade religiosa.
Fazendo um salto para a atualidade, é importante descrever a situação da intolerância religiosa no Brasil e, necessariamente, da discriminação religiosa. Todos os dados de pesquisas sobre a realidade de intolerância religiosa no Brasil, apontam para o quanto, infelizmente, essa ainda é uma realidade presente na sociedade brasileira.
No Brasil, a laicidade passou a constar na legislação do país a partir do ano de 1891, na Constituição Federal daquele ano (Art. 72, § III), ou seja, uma nação que não detêm em sua Carta Magna uma religião oficial (BRASIL, 1891). Desde então, essa lei foi mantida nas demais Constituições, até receber na Carta Magna de 1988 um destaque, quando passou a considerar a liberdade religiosa como um direito fundamental (MIALHE; OLIVEIRA, 2013). Na mesma linha, o Art. 5°, inciso VI afirma que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias” (BRASIL,1988).
Nesse ambiente, sentimos que o ser humano precisa cultivar e criar ações que visam o respeito à dignidade e liberdade de toda pessoa. No entanto, para chegar a um ideal de humanidade convicta do valor do outro, faz-se necessário atitudes de uma genuína tolerância que não exige uma concordância, mas sim a estima, que supera a indiferença e negação do outro (FREIRE, 2013).
No entrelaçamento entre a ética, que vislumbra o ser humano como o fim da práxis, e o desejo de uma sociedade que viva na diversidade religiosa com o parâmetro da tolerância religiosa, o respeito é ou deve ser uma expressão fundamental do caráter ético. Além disso, a tolerância demanda respeito e aprendizado com as diferenças (FREIRE, 2013). Portanto, podemos inferir o respeito como possibilidade da relação entre ética e as diversas expressões religiosas. Uma religião que dialoga com a ética por meio do respeito, trilha os passos da tolerância.
Frei Lauro Matheus Costa Dos Santos, OFM
Bacharel em Filosofia pela Faculdade Salesiana Dom Bosco (Manaus-AM)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição Federal (1891). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1891.
BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
CARDOSO, Carlos Manoel. Tolerância e seus limites: um olhar latino-americano sobre diversidade e desigualdade. São Paulo: UNESP (Universidade Estadual Paulista), 2003.
DICIONÁRIO BARSA DA LÍNGUA PORTUGUESA. São Paulo: Barsa Planeta Internacional, v.2, 2005.
FREIRE, PAULO. Pedagogia da tolerância.2ª ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2013.
HABERMAS, J. 2007. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. p. 282.
KÖNIG, Franz (org.); WALDENFELS, Hans. Léxico das Religiões. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da intolerância. In: A Intolerância. Trad. Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
LOCKE, John. Carta acerca da tolerância: segundo tratado sobre o governo; Ensaio acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
MENESES, Paulo. Filosofia e Tolerância. Belo Horizonte; Síntese, v. 23, n° 72, 1996. p. 5-11. Disponível em: http://periodicos.faje.edu.br/index.php/Sintese/article/view/1081 . Acesso em: 10 de maio de 2021.
SANTOS, Murilo Silva; FILHO, José C. A. Silva. O neopentecostalismo e a intolerância religiosa praticada contra as religiões afro-brasileiras. UNITAS: Revista eletrônica de Teologia e Ciências das Religiões, v. 5, n°2, 2017. Disponível em: http://revista.faculdadeunida.com.br/index.php/unitas/article/view/576. Acesso em: 27 de maio de 2021.
UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Declaração de Princípios sobre Tolerância. 16 de nov. de 1995. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/paz/dec95.htm>. Acesso em: 10 de maio de 2021.
VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, p. 142, 1993.