Uma voz da Amazônia brasileira ressoou em Glasgow, na abertura da 26ª conferência da ONU para mudanças climáticas, a COP26. Diante de lideranças mundiais a jovem ativista indígena Txai Suruí, de 24 anos, natural do estado de Rondônia, fez um discurso em nome da defesa da Terra e dos povos originários. Como guardiã da Casa Comum, Txai, mandou um recado que vem do ventre do chão amazônico, um clamor pela vida e pela escuta dos conhecimentos tradicionais.
A jovem começou sua fala se apresentando, dizendo que mesmo com pouco mais de duas décadas, ela vem de um povo que habita há pelo menos seis mil anos na região amazônica. Recordou também seu pai e os ensinamentos por ele transmitidos. Txai aprendeu com os antepassados a ouvir o cosmos. Ao afirmar que ela aprendeu com o pai a linguagem e comunicação com a natureza, rememoramos um trecho da Missa da Terra sem males: “Eu era a Terra livre, eu era a Água limpa, eu era o Vento puro, fecundos de abundância, repletos de cantigas” (CASALDÁLIGA e TIERRA, 1980). Ademais, a fala da jovem se liga às afirmações de Querida Amazônia, ao dizer que os indígenas nos ensinam, inspiram cuidado e respeito com a Terra. O sonho da jovem moça Suruí é um sonho em consonância com o caminho pós-sinodal da Igreja na Amazônia.
Essa recordação das raízes e dos aprendizados com os antepassados recordam a importância que tem para os jovens indígenas o ato de cuidar das raízes, como pontua a exortação Querida Amazônia. Convido os jovens da Amazônia, especialmente os indígenas, a “assumir as raízes, pois das raízes provém a força que [os] fará crescer, florescer e frutificar” (QA, 33). A Querida Amazônia convida os jovens amazônidas a beber da fonte das culturas que durante séculos tem transmitido sabedoria e um modo de viver em diálogo com a Criação. Desse modo, precisamos ver a urgência de aproximar conhecimentos e crescer no diálogo intercultural, colocando saberes técnicos contemporâneos e tradicionais a serviço do Bem-viver.
O papa recorda que “o equilíbrio da terra depende também da saúde da Amazônia”, e por sua vez, Txai nos relembra que a terra está falando, aliás gritando, que “não temos mais tempo”. O clamor da Terra, e da Amazônia também, é um ecoar de dor, semelhante ao grito do povo de Deus oprimido. O sofrimento do povo ultrajado e da natureza ferida, recordados na oração final de Querida Amazônia, aparecem na fala da jovem Suruí ao falar que esse ferimento profundo é tratado de modo superficial. Passamos apenas pomadas e analgésicos em uma chaga que se alastra cada vez mais. Temos uma Terra sangrando com as veias abertas pela ambição do lucro e do poder.
O discurso de Txai mais uma vez nos remete ao tema do Sínodo Pan-Amazônico, que tratou de novos caminhos para Igreja e por uma ecologia integral, ao afirmar nas palavras da jovem que precisamos tomar outro caminho. São novos os desafios diante das mudanças drásticas no clima e devem comportar novas posturas, uma conversão ecológica, para não chegar ao “ponto de não retorno” da Terra.
No discurso, Suruí lembrou ainda dos guardiães da floresta perseguidos e assassinados pela defesa da Casa Comum. Evocando a memória de Ari Uru-Eu-Wau-Wau, se somam tantos que tombaram na defesa da Mãe Terra. O sangue feito semente desses mártires nos recordam que ainda vemos o tempo da paixão dos defensores da Casa Comum. Seu testemunho é martirial nos une a Cristo, “sangue mesclado com todos os sangues”, e se torna força pascal na luta pela Ecologia Integral. A memória desses defensores da Terra gera indignação e um clamor urgente pela paz e justiça para o Planeta.
As palavras do discurso que destacaram que os indígenas são” linha de frente no combate a mudanças climáticas”. E que os povos originários têm “ideias para adiar o fim do mundo”, uma expressão que remete ao pensamento exposto por Ailton Krenak. O pensador indígena que observa a importância dos sonhos na vida indígena e sua interação e integração com a Mãe Terra. No sonho se buscam orientações, as utopias instigantes que nos devem, neste tempo de crise climática nos nortear para pensamentos e gestos novos.
A pesquisadora Márcia Oliveira relembra que cada um dos eixos da proposta da exortação Querida Amazônia se estrutura em sonhos. Não apenas sonhos que embalam, mas que desafiam. Sonhos tem duas importantes dimensões, “de olhos fechados e abertos”, são aquelas visões em estado de sono e aquelas imaginações que a pessoa desperta. Sonhos são uma categoria importante na linguagem das sagradas escrituras vista como sinal de comunicação em inúmeras passagens bíblicas. Igualmente a ancestralidade amazônica vê nos sonhos uma ponte de comunicação deste mundo com outra realidade. Lideranças políticas sonham para orientar o povo e os pajés sonham, conversando com o Sagrado, para propor uma cura. A dinâmica dos sonhos está profundamente ligada com as profecias, com a boca de Deus falando das novas realidades que precisam ser construídas.
Sonhar não é abdicar da realidade, mas, a busca de resoluções ainda não vislumbradas. Sonhar é um caminho de aprendizado, nos recorda Krenak (2020). As ideias, não como divagações abstratas, mas como realidades concretas. Sonhos possíveis, sonhos que precisam frutificar e florescer. E aqui mais uma vez nos reportamos a categoria dos sonhos utilizada pelo Papa ao escrever Querida Amazônia. Assim se interligam os sonhos ecológicos, cultural, social e eclesial por uma Casa Comum e pela Terra sem males.
Fábio Vasconcelos, ofm
Acadêmico de Teologia no ITF
REFERÊNCIAS
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