Uma Igreja de mulheres: 50 anos do “Documento de Santarém”

Em primeiro plano, Jandira Pedroso e Frei Rainerio Dolesh (já falecido). Foto: Arquivo da Custódia São Benedito da Amazônia

Fazer memória do Caminho 

Muitos católicos talvez não saibam, mas Santarém (PA) teve  grande importância na guinada da evangelização libertadora da Igreja Católica na Amazônia, que começou nos anos 60. Na primeira metade dos anos 60, o padre sociólogo Camilo Torres, na Colômbia, começou a falar de opção preferencial pelos excluídos em vista da sua libertação. Ele se juntou à guerrilha do Exército de Libertação nacional (ELN) e foi morto em combate em 1966. Em 1968, aconteceu em Medellín (Colômbia), a II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, que colocou no foco da missão dos cristãos(ãs) a urgência da libertação das pessoas e dos povos.

Tratava-se de libertação não só no sentido espiritual, e sim econômico e político também. Até porque naquela época a maioria dos países da região viviam sob ditaduras militares. Veio dali o apelo à formação das “comunidades de base” e à “opção pelos pobres”, com seus rostos concretos: indígenas, negros(as), famintos, desempregados, camponeses etc.

Inspirados nessa mensagem e buscando lhe dar consequências, os bispos da Amazônia Brasileira se reuniram em Santarém, de 24 a 30 de maio de 1972. Aquele encontro histórico “definiu o rosto da Igreja na Amazônia”, como disse Dom Moacir Grecchi. Viu-se a necessidade de uma encarnação da Igreja na realidade do povo, incluindo seus sofrimentos, suas lutas e sua cultura. Se achamos o clero católico elitista hoje, naquela época era bem pior. As linhas pastorais discutidas e definidas indicavam novidades: a formação dos agentes leigos, a pastoral indígena e a formação sociopolítica dos cristãos em suas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

Na verdade, esses encontros dos bispos em Medellín e Santarém refletiam já uma efervescência de renovação vivida nas igrejas locais. Os bispos legitimaram e deram mais vigor a um processo de libertação que já era experimentado em vários cantos da América Latina, inclusive na então Prelazia de Santarém.

Aqui, desde o início dos anos 60, ganhou corpo a Catequese Rural com as suas “semanas catequéticas”, com forte conteúdo político crítico. Mas tendo sempre como referência a Bíblia. Nos anos 70, veio a Catequese Urbana, com a mesma inspiração. A criação da Rádio Rural de Santarém (1964) e o Movimento de Educação de Base (MEB) promoviam uma alfabetização na linha de Paulo Freire. Tudo isso resultou na formação das “comunidades” (termo que ficou até corriqueiro para se referir aos povoados rurais) e de movimentos sociais, como o Sindicato dos Trabalhadores/as Rurais (STTR) e, mais recentemente, do Movimento Indígena.

Irmã Cláudia na Missão Cururu. Foto: Frei Edilson Rocha

O rosto feminino da Igreja na Amazônia

É muito bem vindo o IV Encontro da Igreja Católica na Amazônia Legal, que vai celebrar os 50 anos daquele Encontro de Santarém. É preciso voltar às origens, fazer memória do Caminho, para seguirmos ainda mais fiéis ao Evangelho. Um aspecto que salta aos olhos nessa mirada para trás é que, apesar de se falar “encontros dos bispos”, quem mais provocou aquelas mudanças em 1972 foram os leigos, homens e mulheres. E não é exagero dizer que foram principalmente as mulheres que trabalharam para moldar a nova cara da Igreja na região.

É questão de justiça que essas mulheres sejam lembradas na comemoração desses 50 anos. E elas eram e são muitas. Muitas. Lembrarei só de alguns nomes, como exemplo: Francisca do Rosário Carvalho (falecida) e Aurenice Gabler, no MEB; Jandira Pedroso, Lourdinha Silva Makoto, Elianai Pereira Brasil, Benedita Brasil e Enoy Sena, na Catequese Rural; Eunice Sena (falecida), Antônia Canté, Isabel Maria Matos Miranda Peloso da Silva, Tia Concy (falecida) e Ângela Tereza (Teca), na Catequese e Pastoral Urbana; Rainilza Rodrigues, nos Direitos Humanos. E muitas outras agentes de pastoral e catequistas nas comunidades.

Se a hierarquia católica ainda continua em grande parte clericalista e machista, a Igreja nas bases (pastorais e comunidades) se sustenta principalmente no trabalho dos leigos e das leigas, as mulheres catequistas. Um filme sobre esses 50 anos deveria ter como título “Uma Igreja de Mulheres”. 

 

Prof. Frei Florêncio Almeida Vaz Filho (Programa de Antropologia e Arqueologia – PAA/UFOPA)

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